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segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Festa. Nem tudo é...

Sobre a Festa (fête) - ou modernamente:  "Balada"

Segundo A. Comte-Sponville, momento privilegiado, em que - antigamente - era precedido de um momento de recolhimento [como no Carnaval]; hoje em dia não há mais recolhimento - só regozijo. É por isso que as festas tendem a ser um pouco tristes ou forçadas, não fosse o álcool. Excesso permitido, senão ordenado, segundo Freud em Totem e Tabu. Quer algo mais opressivo que uma alegria programada, um excesso obrigatório? Bem, a própria festa faz esquecer isso. 

Fonte (adaptada): COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo, Martins Fontes, 2003. p.247

Explicando.
Bebe-se muito, e cada vez mais, em festas. Alguns afirmam que é "para esquecer". Esquecer do quê? Do trabalho mal remunerado? Da traição dos amigos? Do amor perdido? Da "amolação" do chefe e dos colegas de trabalho? Da infidelidade geral das pessoas? De si mesmo, tendo em vista se considerar um fracasso? Ou beber para lembrar que é um super-homem e poder fazer tudo que se quer?
De fato, nossa vida precisa ser bem amarga para na festa - e apenas na festa - fazer tudo que não se pode. Já não foi dito que em "baladas" você se realiza, isto é, você "pode tudo"?  Sim, nas festas atuais tudo pode acontecer e mais um pouco, pois talvez na vida diária nada aconteça assim de tão interessante. O que é realmente triste. Então a vida é triste e a festa é alegre?
Na verdade, a festa tornou-se obrigatória, não para ser feliz, mas apenas para restabelecer o indivíduo como um ser normal, na segunda-feira, no trabalho. Bem, alguns não vão assim tão normais (fisicamente) ao trabalho na segunda, devido aos excessos. Mas é verdade que é assim que ele consegue manter sua integridade psicológica, ao menos até a sexta-feira. Mas é verdade também que  durante a festa a gente se diverte muito. Ou pelo menos ainda há uma aparência de felicidade, pois o tempo da celebração da vida na festa já se foi há um bom tempo.

E.T.: festinha de criança não conta, mas é nessas que - apesar da péssima música que geralmente é tocada - ainda existe um grau de verdadeira felicidade. Ao menos para os pequenos, a observar como se divertem sem nenhuma gota de álcool, embora com muito açúcar.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Perspectivas do mundo hoje. 
O Estado-nação e os movimentos independentes. O caso europeu

Após a recessão de 2008, que afetou o mundo todo inclusive Europa, volta à tona o debate sobre a independência das "regiões-nações" - pequenas regiões com demandas de cultura e língua própria, como na Bélgica, Escócia, Catalunha, País Basco, Groenlândia, etc. e também expressos em movimentos políticos, inclusive nos parlamentos locais.
Volta à tona o discurso da autodeterminação dos povos, agora como palavra-chave contra a integridade territorial e união econômico-financeira. A Europa parece ser o principal palco desse embate hoje. O que está em jogo é a União Européia. Com a interferência dos governos centrais europeus, por meio do judiciário (tribunais), esses movimentos conseguem ser contidos. Por quanto tempo? Vai depender, na minha opinião, da evolução da crise mundial instalada pós 2008.

O que há de velho nisso tudo.
Revela-se aqui a superficialidade cultural e de identidade dos estados nacionais, que não conseguem mais impor uma fachada (cultural) comum à população de um território. Antigas demandas locais são reavivadas em tempos de crise e se tornam o aglutinador de movimentos de independência - que permaneciam, até então, um tanto olvidados. O que explica, na longa duração, o caráter artificial do Estado-nação, que sempre tentou recobrir com tinta forte todas as diferenças locais no(s) território(s) onde sua força (político-militar) fez prevalecer.
O que não significa, por seu turno, que esses novos movimentos para a independência de pequenas regiões sejam totalmente espontâneos ou "naturais". No fundo, refletem distorções históricas no que diz respeito à autonomia econômica e fiscal, considerando sua inserção no Estado. Reaviva-se e fortalece-se símbolos que estavam enfraquecidos, bem como a própria língua local - como é o caso catalão. Só é possível uma autonomia política total se houver uma identidade muito forte. E é isso que as personalidades políticas, tanto à esquerda como à direita, vêm tentando estabelecer.

O que há de novo nisso tudo.
A solução desses conflitos se dará (pelo andar da carruagem) pela ação dos parlamentos locais - assentados em bases e movimentos populares,  evidentemente, dado que o voto ainda é algo que funciona - bem ou mal - contra os parlamentos nacionais. E desse choque poderá sair coisas interessantes, tal como o debate sobre um novo modelo de representação política. Sem falar nas velhas questões fiscais e de desigualdades econômicas regionais, envolvendo inclusive a pobreza - o que pode suscitar, por fim, o debate sobre o modelo de desenvolvimento econômico.
Como resultado da interação dialética entre o novo e velho, mencionados acima, o que poderemos vislumbrar são dois caminhos: 1) uma independência total dessas "regiões-nações", na base de estados nacionais; ou 2)uma autonomia razoável, com um estado político independente, mas associado ao Estado-nação principal, dado que todas essas pequenas regiões estão "enclavadas" numa região maior e, até o momento, numa relação de dependência econômica mútua. Um regime federativo? Talvez.
Considero esta última opção como a mais provável, mesmo que seja observada uma retomada econômica européia muito forte.

No resto do mundo.
A atual reestruturação do capitalismo, mesmo na Europa, demanda uma centralização dos poderes. E é isso que coloca em choque o Estado-nação contra essas micro-regiões, muitas delas não tão micros assim. Nos países que não enfrentam esse "problema", de maneira séria, o que observamos, casos como no Brasil e EUA, é o fortalecimento dos estados-membros, com o surgimento de novas lideranças estaduais. O que não quer dizer que, em um certo sentido, que o poder central tenha perdido parte de sua força. Pelo contrário, é o que se observa nos BRICs. E mesmo nos EUA o que observamos também é uma ação do governo central muito forte naquilo que conduz - ou seja, ação militar e manutenção das bases econômicas neoliberais. Ressuscita-se a ideia de "grandeza da nação", em quaisquer dos casos -  somado a um imaginário fundamentalista - no caso norte-americano. Portanto, temos um apelo nacionalista assentado em outras bases, que não aquelas que historicamente conhecemos: não se trata de construir e edificar a nação, mas sim de manter um status quo. O que é interessante é que os mesmos personagens - tanto políticos, como agentes econômicos - que defendem agora uma ação forte do Estado-nação, a sustentar as atuais bases da economia (neo)liberal, pregavam, lá nos anos 80 o fim desse mesmo estado, decretando-o como entidade moribunda. "Decretou-se" também o "fim da história", não foi? Talvez o que tenha morrido mesmo, embora dê sinais de ressuscitar, é o membro "indesejável" do monstro: sua face social. 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O Morcego. Augusto dos Anjos.

O Morcego

Uma vez fomos morar um pouco mais para o interior, Vargem Grande Paulista, que naquele tempo ainda era bem pequena, e acho que não mudou muito. Minha filha, Catharina, devia ter uns dois anos, acredito. A casa era de tijolo, com reboco. O piso era também de tijolo, assentado e bem unido. Não havia forro. Fazia um frio tremendo à noite. Um dia chego da faculdade e após colocar a Catha para dormir em seu quarto, entro no meu, para fazer o mesmo. A esposa não havia chegado ainda. Leitura antes de dormir. Luz acesa. Sinto algo roçar no meu cabelo. De novo. E eis que o morcego se apresenta, "voando" por sobre minha cabeça. Bem, o resto encontrei aí nesse poema de Augusto dos Anjos. Deparei-me com ele de novo recentemente e lembrei do tal morcego, que se instalou nos interstícios do teto sem forro. A propósito apelidei-o de Lincoln. Talvez em homenagem a aquele presidente americano.


O morcego

Meia noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vêde:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o tecto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

Augusto dos Anjos


Fonte: Eu e outras poesias. Augusto dos Anjos. L&PM Pocket, p. 16

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O Homem Elefante. David Lynch, 1980.
A resenha abaixo não dá revelação sobre o final da obra.

O filme de David Lynch é uma obra de arte, tanto em texto, imagem, como em reconstituição histórica. Pode se afirmar que o século XIX está bem retratado ali: o barulho do bairro industrial (periferia), na mistura de todos os ruídos, inclusive música; a sujeira; o carvão e energia; chaminés fumarentas e paisagem escura, enegrecida pela fuligem; a vida burguesa representada pelo médico; a preocupação excessiva com a ciência. Esta última, podemos certamente considerar, a idiossincrasia mais acentuada daquele obscuro século XIX.
Por meio de uma narrativa simples, mas de alta densidade, com imagética de forte carga simbólica, D. Lynch nos apresenta o "Homem Elefante", que no percurso de sua saga de anti-herói, por meio de uma antiapresentação, se dá a conhecer por John Merrick, um "Ser Humano".
Dificilmente eu conseguiria explorar aqui todos os detalhes simbólicos do filme, pois isso seria trabalho para um artigo grande. No entanto, há um em particular que denota o forte moralismo vigente - ainda - no século XIX. Ao entrar no circo, na parte de "Freaks" - as aberrações, o médico - Dr. Treves, passa por uma placa onde está escrito: "Fruto do pecado original". Ao lado, um feto ou um bebê com deformidades num pote com líquido de conservação. Pecado original, nestes termos, foi o homem ter conhecido o sexo com a mulher, tendo como resultado um "monstrinho".  Sim, claro, é uma interpretação restrita e moralista das escrituras, mas bem ao gosto do moralismo do XIX, bem ao gosto da era vitoriana, do mundo conhecido como "civilizado" e onde a sexualidade é muitíssimo vigiada e circunscrita.
Uma outra simbologia: com a máquina. Na sala de cirurgia um homem sendo operado porque ocorreu um acidente com uma máquina na indústria. Dr. Treves diz mais ou menos assim, com relação às máquinas: "...não podemos confiar nelas...". De fato, uma outra mazela do XIX, mas que no século XX se tornaria algo banalizada, apesar de mais trágico: acidentes com máquinas, resultando sempre, é claro, em prejuízo para a vida. A vantagem dos homens no XIX, com relação ao XX, é que lá ainda havia uma séria desconfiança na máquina. O século XX enterrou essa desconfiança - ao menos ideologicamente, ainda que não totalmente no senso prático - deixando de lado qualquer questionamento sobre a utilidade da máquina e da técnica. Preocupação destacada no texto dessa semana, de Peixoto Júnior, sobre a questão do homem-ciborgue, uma espécie de novo monstro hodierno.
Enfim, o que temos, é John Merrick, o "homem elefante", nascido com uma enorme deformidade por todo o corpo, que é "apresentado", "mostrado" como atração de um circo, mantido por um indiferente proprietário, que o vê apenas como um negócio. Nenhum sentimento em que haja algum afeto.
Uma vez descoberto pelo médico, Dr. Treves, John é arrancado dali e levado a um hospital, para tratamento de suas enfermidades. Há um sentimento de compaixão do médico para com John, inicialmente. O médico chega a comover-se tanto que se põe a chorar.
 No entanto,  uma vez que este é tratado como um "achado" pelo médico, "mostrado" novamente - agora a uma nova platéia, de homens da ciência - a relação parece deslocar-se para o interesse profissional. A exibição do "homem-elefante" para a platéia de cientistas: mudou algo para a platéia de circo? apenas um braço e o órgão genital, "normais". Parece haver aqui uma inversão: no circo, a curiosidade era pela deformidade; na platéia de cientistas, pela normalidade.
Ocorre que praticamente todos se interessam por John como um espetáculo: a alta sociedade, os artistas, a própria multidão - representada pelo vigia do hospital e seus "clientes".
Uma vez que demonstrou ter inteligência e discernimento sobre as coisas, John desperta cada vez mais interesse. A medida que vai se "civilizando", isto é, adotando as convenções sociais mais "normais" nos relacionamentos com os outros, vai sendo cada vez mais aceito, vai se integrando. Ganha admiração até mesmo da rainha Vitória, que agora o vê como um digno cidadão inglês. É comparado a Romeu (de Romeu e Julieta, de Shakespeare) pela atriz Kendal, numa espécie de atração platônica por John. E apesar de suas deformidades, "demonstra" grande habilidade manual, ao fazer uma réplica em papel da catedral que observa da janela. A associação com o animal, o elefante, não se dá apenas pela aparência das deformidades - também no que diz respeito à memória: John possui uma boa memória, memória de elefante, demonstrada pela recitação de partes da Bíblia e naquele momento com a atriz, quando decora uma fala de Romeu na peça e a declama. Por isso, para a atriz, John se tornou o "Romeu".
A parte do espetáculo continua - o "homem elefante" ainda é "mostrado", como advertiu a enfermeira-chefe ao Dr. Treves, numa determinada passagem. Interessante sua descrição a respeito do sentimento por John: cuidava dele, portanto, também se importava com ele - mas à sua maneira. Daí o médico refletir sobre tudo que ocorreu. Por isso mesmo, posteriormente, o médico vai refletir e fazer uma autocrítica. Evidente, não podemos entrar nos pensamentos da personagem, mas podemos até admitir que havia algo de monstro no médico, tal como Mr. Hyde em Dr. Jekyll, fazendo uma citação não muito honrosa.
Podemos arriscar a dizer que John passa a ser mais aceito por duas coisas: primeiro, quando sua forma vai sendo assimilada pelos outros - o diferente, o que causa estranheza, passa a ser melhor compreendido quando se descobre a origem das deformidades, da feiura; segundo, quando demonstra uma "normalidade" interior, uma ontologia própria ao ser humano - lê, aprecia teatro, é "cavalheiro e refinado"; uma série de coisas que já estavam contidas nele, mas não "demonstradas". Podemos pensar também naquela inversão de que fala José Gil, no texto de Peixoto Junior, o "interior abortado" do monstro, mas mostrando que ali há uma alma. E realmente John mostra a sua, expressada por ele mesmo, quase ao final do filme, quando retorna para a Inglaterra: cercado por curiosos que o confundem com um criminoso, acossado, ele grita: "eu sou um ser humano". Nada mais que justa tal reivindicação naquele intolerante século XIX.
O monstro havia mesmo de ser mostrado, a todas as platéias, para que toda sua condição fosse e pudesse ser interpretada em toda sua multiplicidade, codificada em toda sua singularidade, ressignificada, para que, ao fim, o monstruoso fosse apenas uma forma, uma externalidade, e explodisse dali de dentro o humano para as inteligências exteriores. Acredito que essa tenha sido a mensagem mais forte do filme. Talvez outras, como a de mostrar as pequenas monstruosidades que podemos cometer - cada um à sua moda, mostrando seu próprio monstro interior.

Fonte histórica: BRESCIANI, Maria Stella M. Londres e Paris no século XIX: O espetáculo da pobreza. São Paulo, Brasiliense, 1994 (1982);
Fonte citada: GIL, José. Monstros. Lisboa, Relógio D'Água Editores, 2006.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Literatura e Gramática.

CAMPOS, Carmen Lucia da Silva & SILVA, Nilson Joaquim (orgs.). Lições de Gramática para quem gosta de Literatura. São Paulo, Panda Books, 2007.


Há muitos que gostam de literatura. De gramática, nem tantos. Talvez gostar, gostar mesmo, só os professores...Porém este livro trata dos dois assuntos, associando-os, de um modo divertido e sob uma perspectiva bem irônica. São textos e crônicas dos melhores de nossa língua, antigos e modernos, desde um Machado de Assis e um Artur Azevedo, passando por Raquel de Queiroz, até Moacyr Scliar e Marcelo Duarte (aquele do "Loucos por Futebol" e o "Guia dos Curiosos"). Fecha-se o circuito com Paulo Leminski, num texto fantástico.
E os temas são os mais variados: os estrangeirismos, analisados por Machado de Assis (!) e Rachel de Queiroz; o internetês, visto por Rosana Hermann; o uso do plural, por Ivan Jaf; os neologismos, estudado por Walcyr Carrasco; os vícios de linguagem, tal como o gerundismo - saborosamente descrito por Ruy Castro; o uso do pleonasmo, explorado por Marcelo Duarte; termos difíceis de explicar...às crianças, por Lourenço Diaféria; a língua falada e a língua escrita, por Luis Fernando Verissimo; a pontuação, por Moacyr Scliar; Ignácio de Loyola Brandão explica o significado de duas novas palavras: "poblema" e "pobrema" e outros.
Destaque para duas crônicas. Uma de Artur Azevedo, "Plebiscito". Outra de Paulo Leminsky, "Meu professor de análise sintática". Na primeira, temos uma história sobre o uso "envergonhado" do dicionário - considerado popularmente pelos brasileiros como o "pai dos burros" - expõe de modo sutil nosso comportamento diante desse grosso compêndio da língua portuguesa. O segundo, de Leminski, trata de um impulso que talvez já tenhamos tido: quem não quis "matar" seu professor de gramática durante as lições de análise sintática?
Recomendo fortemente a leitura deste pequeno livro de 100 páginas, com textos ótimos, inclusive para uso em sala de aula.

Abaixo, o curto texto de Leminski - que além de tudo, exprime fortemente o concretismo:

MEU PROFESSOR DE ANÁLISE SINTÁTICA

Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida,
regular como um paradigma da 1ª conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial,
ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito
assindético de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas expletivas,
conectivos e agentes da passiva, o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.


O texto de Artur Azevedo (jornalista no Império):

PLEBISCITO

A cena passa-se em 1890.
A família está toda reunida na sala de jantar.
O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.
Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.
Silêncio

De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta: 
— Papai, que é plebiscito?
O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
O pequeno insiste: 
— Papai?
Pausa:
— Papai?
Dona Bernardina intervém: 
— Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.
O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos. 
— Que é? que desejam vocês?
— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?
— Se soubesse, não perguntava.
O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola: 
— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei. 
— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito? 
— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...
— A senhora o que quer é enfezar-me!
 Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!
— Proletário — acudiu o senhor Rodrigues — é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.
— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!
— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!
— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho.
O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada: 
— Mas se eu sei!
— Pois se sabe, diga!
— Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!
E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.
No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...

A menina toma a palavra: 
— Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
— Não fosse tolo — observa dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!
— Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.
— Sim! Sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito!
Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto: 
— Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.
O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente.
Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.

— É boa! — brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio — é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...
A mulher e os filhos aproximam-se dele.
O homem continua num tom profundamente dogmático:
— Plebiscito...
E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.
— Ah! — suspiram todos, aliviados.

— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Verdade e Falsidade. 

FRANKFURT, Harry G. Sobre a Verdade. Companhia das Letras, 2007.

Dizer a verdade é importante para o dia-a-dia, para nossa vida prática, para a engenharia, para a medicina, para tudo onde se precise obter dados fidedignos e para tomar decisões. Por que não seria a Verdade importante para as relações sociais e pessoais, já que dizer a verdade só favorece a vida? É isso que o autor quer tentar nos demonstrar (não apenas convencer).
Este livro poderia ser um tratado contra a retórica, a arte do convencimento, mas Frankfurt não faz isso. Preferiu fazer um livrinho pequeno para dizer poucas coisas, de bom senso, sobre a verdade. Não a verdade no sentido forte - filosófico, mas no sentido mais prático, quase de senso comum. Daí este livro ser uma continuação de seu primeiro, On Bullshit ("Sobre falar merda"). Há muita gente falando besteira por aí e na verdade - verdade mesmo - é que elas não estão preocupadas com outros, apenas com si mesmas, pois apenas fingem acreditar naquilo que não acreditam. Essas pessoas querem é lesar os outros e por isso temos que nos precaver - procurando pela verdade e não pela mentira.
No entanto, o autor não demonstra como, propriamente, identificar, separar a verdade da mentira. Fala de senso comum, senso prático, pequenas verdades - tudo bem, mas como discernir em meio a tanta informação veiculada, inclusive as verdadeiras, a mentira ou falsidade? No capítulo 3, quando menciona Espinosa (o filósofo), o autor até nos dá uma pista, mas não aprofunda. Dizer a verdade, identificar a verdade, separar a verdade da falsidade, é o que favorece a vida - a vida ativa, a felicidade. De fato, quando realizamos um exame médico, por exemplo, queremos um diagnóstico, um "retrato" o mais fiel possível de nosso estado de saúde. Por outro lado, nem tudo pode se apresentar, na vida, como um exame médico, pois nem tudo se reduz a um laudo. E não é muito difícil imaginar situações ambíguas e multifacetadas da vida, onde a distinção entre verdade e falsidade não é mesmo fácil e muitas vezes (talvez na maior parte das vezes) muito pouco provável ou até impossível.
Mas este livro, como dissemos, não é um tratado sobre a verdade - no sentido estrito e filosófico. Nem um livro contra o discurso retórico - esse, que usa sempre, com certeza, asserções não-verdadeiras, embora nem tudo seja necessariamente falso no discurso retórico. O pessoal da área do Direito que o diga.
É um bom livro de se ler, especialmente para os leigos em filosofia. O autor defende, indiretamente, que haja investigação por parte das pessoas a fim de identificar o falso do verdadeiro, o verdadeiro do falso. Como fazer a tal investigação? Isso também ele não aprofunda. E não poderia ser de outro modo - posto que o livro é para leigos. Portanto, ele tentou dar seu recado da seguinte maneira: "fique esperto com o que dizem, podem estar querendo te enganar". Mais nada. Simples? Simples assim. 

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Filosofia para iniciantes.

FEARN, Nicholas. Aprendendo a Filosofar, em 25 lições. Do poço de tales à desconstrução de Derrida. Rio de Janeiro, Zahar, 2004 (2001).

A leitura deste foi realizada em Outubro de 2007. Logo no início, o autor prepara o leitor para o livro:
"Para pensar racionalmente é preciso lançar mão da ferramenta filosófica certa na hora certa..." (p. 7).
Muito bem. Para um livro de introdução à filosofia ele pretende dar um pouco mais que isso: o ensino de alguns "truques" - ferramentas de pensamento. É válido? Acredito que sim. A linguagem clara, fixada pela boa tradução (Maria Luiza X. de A. Borges), aliada a uma descrição despretensiosa, faz desse livro uma boa introdução à filosofia.
Os truques, quer dizer, as ferramentas de pensamento, ficam por conta do leitor relacioná-las ao filósofo em questão. Por exemplo, descobrir o porquê do "poço de tales", da "navalha de Occam", etc.
Ademais, no meu entendimento, ele cumpre - ao menos parcialmente - o objetivo proposto: demonstrar não apenas o que os filósofos pensaram, mas também como pensaram.  Parcialmente, pois sendo um livro de introdução é preciso aprofundar mais para saber bem dos filósofos. Para quem quiser ficar, por enquanto, apenas neste livro, também recomendo. É possível consultá-lo sempre que se quiser tirar uma dúvida ou iniciar um pequeno debate, pois o autor quer que o livro sirva também a um objetivo prático: "Só sabemos verdadeiramente uma coisa quando já a aplicamos..." (p.08). Daí ele oferecer as tais "ferramentas".


Se alguém ler e quiser "discutir" algum capítulo em especial, mande e-mail ou entre em contato pelo face.
Euclides Roberto.

domingo, 13 de outubro de 2013

Entendendo Filosofia, um Guia Ilustrado.

História da Filosofia para iniciantes.

ROBINSON, Dave; GROVES, Judy. Entendendo Filosofia, um Guia llustrado. Trad. Marly N. Peres. São Paulo, Ed. Leya, 2012.

Costumo ler obras de introdução ao pensamento e à filosofia e mesmo aqueles que nunca fariam parte de uma bibliografia mais séria. Este é um deles, bem ilustrado. 
Poderia ser um bom guia introdutório, mas o autor faz simplificações demais sobre alguns autores, a começar pelos antigos. Além disso, adota uma posição nitidamente parcial ao dar como certo alguns elementos da filosofia e como equivocado outros. Com relação aos pensadores da Igreja, por exemplo, há um total preconceito com relação a eles, tratando-os de forma estereotipada e caricata.
Apesar de algumas partes bem inspiradas, no geral não recomendo, nem como livro de introdução, nem como base de consulta. No todo, não faz jus a outros livros da mesma coleção, como os de psicologia, por exemplo. Mas quem ainda quiser ler alguma parte bem aproveitável, pode comprá-lo e ler a partir da página 100, aproximadamente. Ou ler com reservas as primeiras cem páginas, não descuidando das demais. 
As ilustrações são excelentes. Há um gráfico interessante ao final do livro - uma espécie de evolução cronológica da filosofia. 

O início até que é bom, como podemos verificar à página três, na introdução, onde o autor coloca "questões" que a filosofia procura responder, tais como:

-Qual é a natureza da realidade? O que vem a ser efetivamente a existência humana, o que são os seres humanos?
-Podemos ter certeza efetiva a respeito de alguma coisa?
-O que é a verdade? O que é significado?
(...)

Entre outras questões muito interessantes, como "somos realmente livres para decidir o que somos e o que fazemos?" , "o conhecimento científico é melhor dos que os outros", "qual a relação entre a linguagem humana e a verdade?"

Quem se basear nesta introdução para comprar o livro vai se arrepender, pois ele não responde de forma satisfatória às questões propostas, pelos motivos já expostos na chamada desta resenha,  seja uma delas, a versão simplificadora e de senso comum (demais) a respeito dos filósofos. Um livro de filosofia cheio de clichês, é o que temos ao final - não é possível ter uma boa ideia a respeito dos autores filosóficos. É bem verdade que o livro começa a ficar bem melhor no final, especialmente quando debate as questões da linguagem e quando trabalha os autores pós-modernos. A parte das origens da Filosofia Moderna, à página 54, também está boa e bem explicada.

Vejamos algumas "deturpações":
A chegada do cristianismo - p.41 e segs. Simplifica demais os argumentos teológicos, reduzindo-os à questão do poder da Igreja. Afirma também que a Igreja "reprimia ativamente qualquer ideia ou visão de mundo independente". Isso não é verdade, pois a repressão às ideias não veio como a chegada do cristianismo, mas sim com a Reforma Católica, já na modernidade. Além disso, o que se denomina por "monopólio" nada mais foi do que o exercício de um saber em que somente alguns estavam preparados para isso, tal como os membros da Igreja. É bem verdade também que a Igreja, a partir de fins da Idade Média e início da Modernidade, requisita a exclusividade sobre o saber, pois está em jogo a questão da Verdade. Não se impediu com isso que se desenvolvesse um pensamento autônomo, independente - e mesmo dentro Igreja. Não se impediu também que a própria Igreja fosse combatida e atacada. Portanto, houve uma tentativa de monopólio, sim, inclusive jurisdicionado pela própria Igreja, mas nunca foi totalmente exercido, nem tampouco totalmente obedecido. Ademais, como eu já disse, houve pensamento independente dentro da própria Igreja, tal como Marsílio de Pádua, para ficar apenas em um exemplo.

O primitivo estado de inocência de Rousseau - p. 71. Aqui está um bom exemplo de total desinformação a respeito do filósofo. O autor afirma que Rousseau pregava uma volta ao primitivismo e à natureza. Onde Rousseau escreveu isso? Essa "volta à natureza" foi explorada depois pelo romantismo, como afirma corretamente o autor, mas Rousseau nunca disse isso assim. O que Rousseau afirma em seus escritos é que isso seria bom, mas não é mais possível. A civilização torna o homem "mau", ao passo que nas sociedades primitivas o homem é "bom". Portanto, o homem não é essencialmente "mau", sendo possível torná-lo melhor com a educação - uma visão que seria mais tarde aproveitada pelos revolucionários franceses.

Pragmatismo - p.107. Faz uma avaliação elogiosa demais à essa corrente filosófica, ao afirmar que ela seria a filosofia norte-americana libertária mais importe e autêntica. Mas, libertária em relação a quê? ao Estado?ao indivíduo? ao poder econômico? ou à metafísica? Parece que mais em relação a esta última, mas o autor poderia ter deixado isso mais claro.

Sobre Noam Chomsky - p. 104. Não é verdade que Chomsky se coloca somente contra o governo e as agências estatais. Ele o faz também com relação à mídia e às grandes corporações privadas, que por sua vez influenciam e exercem seu poder sobre a mídia. O autor parece não ter lido nada sobre Chomsky, nem ter acompanhado sua luta política.

Teoria da falsificação. Sobre a tradução deste termo - p. 150. Afora alguns termos que nos parecem "esquisitos", há um que realmente peca, apresentado na página 150: "falsificação". A teoria de Popper não é a da falsificação, mas a da refutação. Ocorre que dentro da teoria da refutação, temos o que denominamos de "doutrina do falseamento". Veja: falseamento, não falsificação. Os termos em filosofia (não só nela) têm que ser preciso, pois expressam conceitos. Além da tradução ser imperfeita, a explicação da teoria filosófica, própria do autor (Robinson), também é confusa.  Nesta mesma página menciona a psicanálise freudiana como "pseudociência".  O que seria uma pseudociência para o autor? Uma quase ciência? Uma ciência em que não é possível apresentar provas materiais ou que não possui método científico? Isso seria suficiente para algumas teorias receberem a alcunha de "pseudociência"?

Obrigado amigos.







segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Lições de um ignorante. Millôr.

MILLÔR. Lições de um ignorante, São Paulo, Círculo do Livro, s/d (1963).


Um livro "socrático": recomendo a todos. Além de divertido -- mesmo considerando as piadinhas como de época -- é bastante reflexivo. Pensa um Brasil que ainda está aí.

 

Millôr inicia este livro com a seguinte crônica: "Notas de um ignorante". A pergunta básica, ou melhor o questionamento fundamental, que inclusive permeia todo o texto, é "que fiz eu de minha vida?" Há um toque bastante irônico do autor nesta espécie de miniautobiografia. Parece que todos foram melhores em alguma coisa com relação ao humorista:

"Quem está a meu lado sempre leu mais livros do que eu, conhece mais política do que eu, já teve mais casos sentimentais do que eu, estudou mais do que eu, praticou e pratica mais esportes." (p.11)

Ou será que todos quiseram, de alguma forma, fazer-se prevalecer, contar vantagem, aparentar o que não é e que sabe alguma coisa? O humorista foi apenas ele, sem mais nem menos; daí a posição privilegiada para fazer humor: não é melhor que ninguém, não sabe tudo e não faz qualquer coisa melhor que ninguém - mas ao menos ele sabe disso.

Há um "sabor" socrático nesse questionamento. Será mesmo que todos são assim tão melhores em tudo que o nosso autor? De qualquer forma, essa crônica parece ser mesmo uma "introdução socrática", do tipo "sei que nada sei", para ficar numa definição de senso comum. Assim, uma introdução para o mais do livro, que questiona praticamente tudo de nossa vida nacional. Ninguém escapa: de jornalistas a advogados, da cultura à ciência.

Crônicas em destaque:
"O banheiro". Demonstra que esse é último refúgio da vida privada (!) de um homem.
"Genealogia e Biografia do Rico". Faz humor com a ideia de que os ricos se consideram os melhores, descendentes das melhores linhagens e de "gente boa", distintos, "os mais iguais", os fundadores, os criadores, etc., etc.. Fica a pergunta: não passa tudo isso de um mito? Um mito originário, que se faz repetir nas eternas recitações dos ricos.
"Do dinheiro". Destaco um trecho: "O dinheiro é um mito de tal forma acreditado que se transformou numa super-realidade, uma senha para o respeito alheio..." (p.49).
"Notas sobre a arte de entrevistar". Texto meta-jornalístico, onde seria melhor colocado o título: como não fazer uma entrevista, mas que todo jornalista assim o faz. Ou: como ser um cínico jornalista.
"Brasil, país comunista". Em dez lições. Uma brincadeira linguística de Millôr, numa época em o comunismo era "demonizado" pela cultura geral.
"A máquina da justiça e suas peças principais." O juiz, o júri, o promotor, o advogado, a vítima, e outros, estão descritos e definidos aqui por Millôr.
"O Brasil (Descrição física e política)". Talvez a melhor crônica do livro. Uma visão bastante irônica numa época que caminhava para o ufanismo nacionalista, expresso na frase "país do futuro".
"Desculpe, mas Picasso...-Não tem de quê, porém Steinberg...". Um exemplo, para o autor, de uma boa entrevista.

Enfim, "Lições de um ignorante" dá lições de como não aparentar conhecer, mas apenas reconhecer que não sabe, num período que todo mundo achava que sabia tudo. Será que isso mudou? Quem pode realmente afirmar com segurança que sabe alguma coisa sobre algum assunto? Muitas vezes não queremos aparentar que sabemos algo sobre alguma coisa - mas que no fundo não o sabemos? Não teríamos muito que aprender mesmo sobre aquilo que pensamos saber bem?


Reprodução da Crônica:

"O Brasil (Descrição física e política)" (p. 99)

O Brasil é um país maior do que os menores e menor do que os maiores. É um país grande porque, medida sua extensão, verifica-se que não é pequeno. Divide-se em três zonas climáticas absolutamente distintas: a primeira, a segunda e a terceira, sendo que a segunda fica entre a primeira e a terceira. As montanhas são consideravelmente mais altas que as planícies, estando sempre acima do nível do mar. Há muitas diferenças entre as várias regiões geográficas do país, mas a mais importante é a principal. Na agricultura faz-se exclusivamente o cultivo de produtos vegetais, enquanto a pecuária especializou-se na criação de gado. A população é toda baseada no elemento humano, sendo que as pessoas não nascidas no país são, sem exceção, estrangeiras. Na indústria fabricam-se produtos industriais, sobretudo iguais e semelhantes, sem deixar-se de lado os diferentes. No campo da exploração dos minérios, o país tem uma posição só inferior aos que lhe estão acima, sendo, porém, muito maior produtor do que todos os países que não atingiram o seu nível. Pode-se dizer que, excetuando seus concorrentes, é o único produtor de minérios no mundo inteiro. Tão privilegiada é hoje a situação do país, que os cientistas procuram apenas descobrir o que não está descoberto, deixando para a indústria tudo que já foi aprovado como industrializável, e para o comércio tudo o que é vendável. Na arte também não há ciência, reservando-se esta atividade exclusivamente para os artistas. Quanto aos escritores, são recrutados geralmente entre os intelectuais. É, enfim, o país do futuro, sendo que este se aproxima a cada dia que passa.


segunda-feira, 8 de julho de 2013

BRASIL - DESCRIÇÃO FÍSICA E POLÍTICA.
Essa crônica do Millôr, que postei abaixo, é dos anos 60, do último século. Portanto, já existe há mais de 40 anos. No entanto, bem que poderia ser editada em qualquer jornal de hoje, com bastante atualidade - como uma demonstração da hipocrisia disfarçada de pernosticismo, abundante em nossos políticos e empresários; mas não só neles... Bem, sendo Millôr, deverão notar o tom bastante irônico do autor. 


BRASIL – DESCRIÇÃO FÍSICA E POLÍTICA
O Brasil é um país maior do que os menores e menor do que os maiores. É um país grande porque, medida sua extensão, verifica-se que não é pequeno. Divide-se em três zonas climáticas absolutamente distintas: a primeira, a segunda e a terceira, sendo que a segunda fica entre a primeira e a terceira. As montanhas são consideravelmente mais altas que as planícies, estando sempre acima do nível do mar. Há muitas diferenças entre as várias regiões geográficas do país, mas a mais importante é a principal. Na agricultura faz-se exclusivamente o cultivo de produtos vegetais, enquanto a pecuária especializou-se na criação de gado. A população é toda baseada no elemento humano, sendo que as pessoas não nascidas no país são, sem exceção, estrangeiras. Na indústria fabricam-se produtos industriais, sobretudo iguais e semelhantes, sem deixar-se de lado os diferentes. No campo da exploração dos minérios, o país tem uma posição só inferior aos que lhe estão acima, sendo, porém, muito maior produtor do que todos os países que não atingiram o seu nível. Pode-se dizer que, excetuando seus concorrentes, é o único produtor de minérios no mundo inteiro. Tão privilegiada é hoje a situação do país, que os cientistas procuram apenas descobrir o que não está descoberto, deixando para a indústria tudo que já foi aprovado como industrializável, e para o comércio tudo o que é vendável. Na arte também não há ciência, reservando-se esta atividade exclusivamente para os artistas. Quanto aos escritores, são recrutados geralmente entre os intelectuais. É, enfim, o país do futuro, sendo que este se aproxima a cada dia que passa.
Millôr Fernandes
in: Lições de um IgnoranteEd. Paz e Terra, 1977.