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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012


KAFKA, Franz. Sonhos. São Paulo, Iluminuras, 2008.


Publicação do diário de sonhos de Kafka, incluindo cartas aos conhecidos - Max Brod e Felix Weltsch, seus amigos; Felice Bauer, sua noiva; e a Milena Jesenská, sua virtual amante. Tradução de Ricardo F. Henrique e prefácio de Luis Gusmán.
Teatros, labirintos, ruas, edifícios, seu pai, seus amigos, sua noiva e sua enamorada, Milena, estão contemplados nos sonhos de Kafka. Seu sono é difícil, como ele mesmo o diz, por isso seus sonhos são muitos, lembrados com detalhes. Interessante a importância que dá ao sonho o insone Kafka.
A estrutura labiríntica é recorrente e até podemos perceber a influência ou relação sobre a sua obra. Como ele mesmo diz à p. 86:
"O impulso de representar minha vida onírica deslocou todo o resto para um plano secundário, que definhou assustadoramente e não pára de definhar".
Esta não é uma passagem de um sonho, mas uma afirmação em seu diário. Se o sonho se tornou o principal, como ele diz, é porque o restante não vai bem...inclusive sua literatura. Sabemos que Kafka teve problemas com a publicação de seus livros e com certeza isso reflete a exigência do autor para com sua própria obra. Todo o resto deve refletir também a vida em geral. No caso, o texto é de 1914, ano da Grande Guerra. Texto escrito em agosto, quando as mobilizações da Guerra começam. Parece que sonhar se torna mais interessante que a vida.
Os fragmentos de escritos, aqui publicados sem data, mas provavelmente após 1922, expressam sua angústia perante a morte. Reflexos de sua doença? Torna-se comum a visita à cemitérios e catacumbas, lugares escuros e ermos. Separação entre o onírico e a realidade parece ser mais difícil ainda.
Também há sonhos com a mãe nesta fase, omissa nas anteriores. O texto final sem data, nesta publicação, é muito bonito, poético, como muitos dos sonhos relatados:
"Envolve a criança nas dobras do teu manto, sonho sublime."
F.K.
Assim, para efeito didático podemos dizer o seguinte dos sonhos de Kafka:
-O sentido do onírico é profundo, portanto, poético;
-A estrutura labiríntica é recorrente, o caminho é difícil de ser percorrido, bem como a saída do labirinto;
-Apresentação espetacular - o teatro; a atenção às vezes se volta para o sonhador, mas como o elemento que está atrapalhando o andamento das coisas; por vezes há o teatro dentro do teatro;
-Alguns sonhos o cansam, deixam-no exausto;
-Admiração por Dostoievsky;
-O pai aqui nos sonhos é protetor - contrário ao que representa na sua obra;
-Sonho com pinturas;
-Sonhos com animais híbridos (asno e galgo, por exemplo);
-Sonho e realidade a se confundir, especialmente no final - "sonho escrito na carne" (L. Gusmán, p.14)

Comentário:
Disse um filósofo que se nossos sonhos fossem continuados, isto é, como na vida real - uma trama bem urdida e tecida - se eles não se desfizessem em coisas aparentemente sem sentido, não haveria diferença nenhuma entre sonho e realidade.
A vida de Kafka não foi nenhum sonho, diga-se. O trabalho burocrático o atormentava e a vida de escritor era difícil de progredir. Seus sonhos, claro, expressam toda essa angústia, mas também sua aspiração por um mundo de arte. O fato de anotar seus sonhos e, ainda, comentá-los em carta aos seus amigos, é revelador desse mundo ideal onírico - que buscava na realidade, mas expressava a dureza desta na ficção. Enfim, temos o que conhecemos de Kafka: a dura realidade expressa pelo sonho - seja ele doce ou pesadelo. Em seus escritos prevaleceu sempre o pesadelo. Não me lembro de nenhum conto "leve", isto é, no sentido filosófico da coisa - algo suave que se nos insinua e nos envolve. Suas fábulas sempre trazem reflexões, sim, mas as situações sempre são penosas ou angustiantes. Mas não se trata daquela "angústia de estar no mundo" sartreana, em que ao indivíduo, no final, cabe a escolha. No mundo de Kafka não há escolhas, tudo - ou quase tudo - é contingente. Cabe apenas o recurso, o apelo ao acaso - torcer para que nada piore, apenas. Tenho a impressão que Kafka via o mundo como uma enorme burocracia ("o mundo administrado"), por onde nossa conduta só podia mesmo ser protocolar, formal, impessoal. Não admira que atribuísse tanta importância aos seus sonhos.
Se a vida é sonho, como dizia o poeta Pedro Calderón de la Barca, em Kafka isso parece ser verdade. Mas não é um sonho doce. E se sonho pode se tornar fuga da dura realidade, então compreende-se melhor a importância que o escritor dava a eles.
Reflexão: sonhe acordado, mas lembre de Shakespeare:
"Somos feitos da mesma substância de que são feitos os sonhos, e nossa curta existência está contida no período de um sono" (in: A tempestade, Ato IV, Cena I)
Sugestão de filme: assistam ao excelente “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, de Michel Gondry