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quinta-feira, 19 de julho de 2012



Judas, o Obscuro. São Paulo, Ed. Abril, 1971 (1895)
HARDY, Thomas

"A esperança..: um sonho feito de despertares."
(Aristóteles, citado por Diógenes Laércio, Vida dos Filósofos)

A história descreve a trajetória de Judas Fawley, menino órfão que tem pretensões de grandes estudos e erudição. No entanto, uma série de obstáculos vão se opor a esse objetivo, já fixado desde pequeno por Judas. O casamento será um grande obstáculo, além do trabalho duro com a pedra, pois fará com que Judas desista de seu propósito, ao conhecer e se casar com uma moça, Arabella. Mais tarde conhecerá Sue, sua prima, com quem mantém uma relação de maior afinidade, mas as infelicidades serão maiores do que poderiam suportar.  Sue, bem como o professor Phillotson, também alimentam esses sonhos de grandeza intelectual, de estudos, mas como Judas também falham em seus projetos e não conseguem ir adiante.

O livro de Thomas Hardy trata dos indivíduos que são "arrastados" pelas convenções sociais e pelo hábito (no sentido de Pierre Bourdieu) à pobreza e à uma vida de trabalho sem compensações - nem materiais, nem intelectuais. Toda aspiração à uma vida contemplativa ou intelectual é cerceada ou reprimida pelas circunstâncias do nascimento e por uma disposição a repetir erros e se enganar; mas não só isso, pois uma série de adversidades se impõem, além das do casamento. O próprio professor Phillotson, que queria ser um erudito e seguir a carreira acadêmica, também não conseguiu assim empreendê-la. Ficou constrangido a dar aulas no primário. Não havia tempo nem oportunidade para nenhum deles.

O fato de ter de casar-se, atendendo às pressões sociais, foi crucial para Judas neste processo de confrangimento intelectual. Sobretudo porque casou-se com Arabella, uma mulher vulgar e materialista, sem nenhum ideal mais elevado. Isso desviou Judas de suas intenções e estudos iniciais - quando se casou, as leituras foram praticamente abandonadas. O casamento com Arabella não durou muito; ela mesma o abandonou. Posteriormente Judas conheceu e teve filhos com Sue (Susanna), sua prima, mulher inteligente e com grandes ambições intelectuais também. Dona de um pensamento laico, ao contrário de Judas, que é religioso, Sue possui uma grande sensibilidade, mas geralmente é indecisa e de vontade oscilante. Antes de relacionar-se com Judas, Sue casou-se com o professor Phillotson, em cuja escola foi admitida como auxiliar, com o próprio incentivo de Judas, que não esqueceu o contato que manteve de pequeno com o professor.

A ligação de Judas com Sue não foi menos nociva, embora mais por força da situação que viveram que pelo caráter da mulher. Ambos vão ser recusados pelas instituições de ensino onde pretendem formar-se: Judas é rejeitado por todos os colégios e Sue é expulsa de um. O casamento de Sue com o professor Phillotson é um fracasso. Ela percebe que se casou por compaixão e não por amor. Procura Judas e permanecem juntos. Tiveram dois filhos, mais o "adotivo" - na verdade filho legítimo de Judas com Arabella, que escondeu esse tempo todo a existência do menino, que se chamará pequeno Judas pelo casal Sue e Judas. Tinha um apelido esse menino: "Pequeno Pai Tempo". Talvez esse menino é que seja realmente o Judas obscuro, pois é esquisito, triste, de ideias inusuais, obscuras mesmo. O menino achava que não devia ter nascido. Numa circunstância estranha e horrível, durante uma noite de grandes dificuldades para arrumar um quarto para a família - já que estavam vivendo uma vida nômade devido aos mexericos por não terem se casado na Igreja nem no Civil - o menino suicidou-se, juntamente com seus dois irmãos. O casal sofreu por demais com isso, acrescentando-se ao fato de que a condenação social era muito forte. Sobrevieram desgraças e doenças. Sue nunca mais foi a mesma, tornando-se aos poucos religiosa; uma forma de autocondenação pela sua distração no dia da tragédia. Alimenta a ideia (fixa) de voltar para o casamento com Phillotson e é isso que acaba fazendo. Sozinho, Judas torna-se uma presa fácil para Arabella, que então viúva, vai querer o antigo marido de volta. Desnecessário dizer que ninguém foi feliz até o final, cujo desfecho não contarei aqui, para não "estragar a surpresa" daqueles que querem ler o romance.

Trata-se de um romance tão forte para mim quanto o foi a leitura de "O Castelo", de Kafka. Romance que quero comentar aqui futuramente, quando houver tempo de reestudá-lo para fazer uma resenha, pois já faz algum tempo que o li.

Como já disse acima, as conclusões a que nos levam o romance antecipam em muito a teoria do habitus de Bordieu (desenvolvido nos anos 1960). Em linhas gerais, para quem não conhece, o habitus é uma incorporação/interiorização do indivíduo do comportamento e das regras sociais que dominam uma determinada classe, mesmo sem a consciência dela. Assim, o habitus é  “o produto de uma relação dialética entre a situação e o habitus, entendido como um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona em cada momento como uma matriz de percepções, apreciações e ações e torna possível cumprir tarefas infinitamente diferenciadas, graças à transferência analógica de esquemas” (Bourdieu apud Loïc Wacquant, in:
RBSE 6(16): 5-11, Abril de 2007).

Em outras palavras e em termos práticos, Judas não conseguiu mais que reproduzir a miséria de sua pobreza, não conseguiu sair dela e por isso mesmo relegou todos os seus projetos não apenas para o último lugar das suas pretensões, mas para fora mesmo de sua vida. Há um momento que isso bem claro e por meio das próprias palavras de Judas:

"(...) Deve cada um seguir cegamente o caminho em que se acha, sem considerar seus dotes pessoais, ou deve, pelo contrário, pesar as aptidões, as preferências que possa ter, e mudar a direção de sua vida? Foi o que tentei fazer e fracassei. Mas não admito que o meu fracasso valha como prova de que estava errado, do mesmo modo como não admitiria que o sucesso justificasse o bem-fundado do meu ponto de vista. E é assim, entretanto, que, muitas vezes, julgamos os esforços, não pelo seu valor essencial, mas pelo  seu resultado acidental. Se me tivesse tornado um desses doutores vestidos de vermelho e preto que estamos vendo descer, ali, todos diriam: “Vejam como este homem agiu sabiamente, seguindo o pendor de sua natureza!” Mas, não tendo acabado melhor do que comecei, dizem: “Vejam como este homem agiu estupidamente, seguindo um capricho de sua imaginação!” No entanto, foi minha pobreza e não minha vontade que determinou a minha derrota." (p. 365)

Esse é um momento crucial do romance. Judas passava em Christminster, junto com a família, justamente no dia da Comemoração de uma formatura onde poderia (e deveria) estar. Assiste à solenidade de fora, sob forte chuva; neste dia passa a ficar cada vez mais doente. Foi o dia de sua humilhação e de sua sentença de excluído deste mundo.

A tese deste livro vai em contraposição à tese sartreana do projeto pessoal. Sartre dizia que o indivíduo deveria adotar um projeto de vida, apostar e trabalhar nele. O existencialismo aqui bate de frente com a dura rocha da segregação social. Judas até estabelece uma meta, bem clara: "Serei doutor antes de deixar este mundo" (p. 43). Lista de cabeça as leituras que já fez, bem avançadas para sua juventude (Homero, Tucídides, Hesíodo, os Santos Padres, o Novo Testamento em grego, etc.). No entanto, parece que apostar num projeto não significa poder trabalhar nele...E pelas razões que já enunciamos, Judas fracassa em seu intento.

Fala-se muito hoje em dia em talento e vocação. Inegável que o nosso anti-herói, Judas, possuía o maior talento para os estudos acadêmicos. No entanto, fracassou por que não tinha vocação? Não era determinado o suficiente?

O romance de Thomas Hardy foi editado em 1895. Estamos em pleno século XXI e não vislumbro romance mais atual para nossa época, inclusive nas questões que nos coloca.

Uma frase forte do pequeno Judas, o "Pequeno Pai Tempo":
"É melhor estar fora deste mundo do que dentro, não é?" (p.373).

Bem, qual será o Judas obscuro? O pai ou filho? A tradução do inglês "obscure" para o português admite também a tradução como "oculto", "escondido". O "Pequeno Pai Tempo" ficou oculto, escondido para Judas durante um bom tempo por Arabella, que o deixou sob os cuidados de Judas pai de forma que lhe foi muito conveniente, como que se livrando de um encargo. Não imaginava Judas que o pequeno só traria mais desgraças: suspeita-se, embora de forma não explícita no romance, que o pequeno teria enforcado os dois irmãos antes de enforcar a si mesmo.

A obra de Hardy é um libelo contra a segregação social e uma defesa da participação das classes mais humildes no mundo culto, do direito ao refinamento intelectual que geralmente é negado ou encobertado por falsas proposições de classe. Uma passagem interessante é representativa:

" - Todo homem tem uma pequena possibilidade, num sentido ou noutro - dizia ele. - Nunca fui bastante forte para o trabalho da pedra, principalmente o trabalho de colocá-la. Era um esforço grande demais para mim mover os blocos. E ficar nas correntes de ar, enquanto as janelas dos edifícios não estavam colocadas, ocasionou-me muitos resfriados. Creio, mesmo, que foi então que começou minha doença. Mas sinto que há uma coisa que poderia ter feito, se me tivessem dado oportunidade. Poderia acumular ideias e transmiti-las aos outros. Eu me pergunto se os fundadores pensaram em pessoas assim como eu, prestando unicamente para uma coisa assim especial...Ouvi dizer que, breve, maiores facilidades para estudantes como eu fui, sem recursos. Há projetos de tornar a universidade menos exclusiva e de estender sua influência. Não sei grande coisa a respeito. E é tarde demais, tarde demais para mim! Ah!...e para quantos outros antes de mim!" (p.450)

Acredito que é o que posso dizer a respeito do romance, em termos de seu conteúdo. Quanto à forma, podemos dizer que o estilo de Hardy é tão direto quanto duro, pontiagudo, um tanto pessimista, denunciador. O texto é rico em antíteses: o pesado (a pedra) e o leve (a pena - da escrita); o laico (Sue) e o religioso (Judas); a ingenuidade (dos sentimentos, como em Judas) e a malícia (das intenções, como em Arabella); o idealismo (dos projetos) e a matéria (da dura realidade); a força magnética das mulheres (física, como em Arabella; angelical e etérea, como em Sue); o "medievalismo" da vida em  Christminster em oposição às "luzes" imaginadas por Judas.

Recomendo fortemente a todos a sua leitura. Uma curiosidade: muitas obras de Thomas Hardy foram adaptadas para o cinema, inclusive esta aqui analisada.