HULSIUS, Levin.
Kurtze Wunderbare Beschreibung Dess Goldreichen Königsreichs Guianae in America.
Nuremberg: s.n., 1603.
Prolegômenos
A Constituição de 1988 nos deixou uma grande
tarefa a ser realizada: obedecê-la. Mas não somente isso, trata-se de observar,
em toda legislação restante, àquilo que os princípios constitucionais
determinam. Não sem razão, talvez com algum exagero justificado, falou-se que a
CF 88 ficou no papel. De fato, não somente não houve reestruturação alguma do
Estado, como ela foi sendo mutilada, ao longo dos anos, pelas sucessivas PECs.
Talvez uma objeção se levante: mas os poderes foram organizados segundo a Constituição.
Sim, no geral, no atacado podemos pensar assim. Mas em termos de organização do
poder não estávamos muito distante daquilo: separação de poderes,
presidencialismo, etc. As formas internas e processuais não se alteraram tanto.
O Judiciário manteve-se o mesmo, com a diferenciação de um destacado Ministério
Público, tornado órgão autônomo.
Não houve, de imediato, e mesmo durante um
bom tempo, alteração na legislação ordinária. Os códigos continuaram os mesmos,
inclusive o penal. A discussão sobre o "entulho autoritário" — leis e
instituições herdadas da ditadura — foi jogada para debaixo do tapete. O
entulho ficou escondido. Polícia continuou nos moldes autoritários, não mudou
substancialmente. Mas não só ela.
Ao final, o que temos é um monstro, nos
termos daquilo que os antigos concebiam: cabeça humana num corpo de animal. A
Constituição é linda. Se toda legislação acompanhasse essa beleza...
Ou seja: temos um conflito de racionalidades,
por onde o Direito, quer em termos abstratos, quer na sua operacionalidade, tentou
se equilibrar. Declino aqui minha compaixão pelos advogados. Em face de uma
sociedade que se complexifica cada vez mais, temos um estado jurídico
monstruoso, bizarro e o pior ainda não é isso. Vamos ver.
Um Estado é constituído sob duas formas
reunidas: política e burocrática. Essas formas se entrelaçam na composição
social e daí deriva um Direito. Isso esquematicamente falando, obviamente, pois
a evolução social de qualquer comunidade é sempre algo complexo. E, evidente,
há sempre uma tensão entre o sistema jurídico estabelecido — considerado
modernamente autorreflexivo — e as
demandas sociais. Max Weber, seguindo a linha kelseniana, quis demonstrar a
validade das regras jurídicas de forma autônoma, relacionadas e derivadas do
sistema político. Está implícita a questão da legitimidade das normas e sua
racionalidade, ou seja, a pretensão de atender as demandas de uma forma
universal.
Já a constituição de um Estado é a forma que
toma um agregado político-social em sociedade, seja aquele agregado possa ser
entendido como jusnatural ou de contrato. A Constituição escrita, formalizada,
será o termo em que essas bases se assentarão. É como as sociedades modernas se
constituíram politicamente, desde o século XIX. O que garante o funcionamento
de todo esse agregado é o conjunto das instituições e órgãos reunidos num
Direito. Ou seja: só a Carta Constitucional, entendida como “Lei Maior”, não basta.
A redemocratização permitiu à sociedade
respirar sem a violência, a censura e a tortura — ao menos no momento em que os
militares deixaram o poder e nos subsequentes anos. Houve uma exigência de
mudança e de sociabilidade que resultaram na Carta de 1988. Não se deu conta
que a referida Carta permaneceu como uma promessa, como votos de Ano Novo. Mal
foram implementadas, muitas mudanças involuíram sob as PECs sucessivas, ano a
ano, governo a governo. O sistema jurídico, expresso pelos inúmeros códigos, ficaram
incólumes por décadas. O Civil sofreu mudanças substantivas, mas pontuais. O
Penal recebeu apenas acréscimos que o pioraram, tornando-o ainda mais
anacrônico em face à Constituição. Como Constituição Política é a forma em que
a sociedade se constitui e a Constituição escrita e o modo formalizado de
refleti-la, ao final o que temos é um arranjo em vale mais o que não está dito
do que o formalizado. Explico melhor.
Deve-se admitir no Direito que a legislação,
bem como a jurisprudência — enfim, a forma jurídica — siga uma racionalidade
jus-dogmática, própria, tal como Weber a expressava. Ninguém da área do Direito
admite algo fora disso. As incursões morais, exigências sociais, devem seguir o
caminho processual, quando previsto, e o caminho legislativo, quando não.
Ninguém admite, formalmente, que o poder e/ou o dinheiro influam nesse
processo. Mas é aí que o edifício jurídico demonstra suas rachaduras: o monstro
do arranjo político-jurídico expõe suas costuras, seus remendos. Pelas brechas,
passa a valer aquilo que não está dito. Daí a separação, não prevista em código
ou lei alguma, entre "punitivistas" ou "garantistas" dos
operadores do Direito. Agindo como um ou outro se permanece no Direito, sem
qualquer necessidade de desdiferenciação. Em termos práticos, desloca-se a
problemática do mérito para o processo e para o objeto. Ou seja: julga-se
conforme a simpatia pela parte, sendo que poder e dinheiro são elementos desse
caráter simpático. E é aqui que começam as ilusões sobre o Direito: se não
houver essa magia simpática, é preciso recair na dogmática. Então vale a letra
fria da Lei. Sob esse ponto de vista, não é de se espantar a quantidade de
pobres e negros no sistema carcerário e a quantidade de ricos (e os não tão
ricos) e brancos fora dele.
O não dito, o oficioso, prevalece no dia a
dia do Direito entre nós, em todas as esferas, para horror dos advogados e seus clientes.
Mas não só para eles, pois a maior parte da população não possui devidamente
seu direito atendido. Estou dizendo isso com vistas a todas as esferas do
Direito: Penal, Civil, Securitário, do Trabalho, etc.
Vamos a uma análise de um caso extrapolado.
Um estudo de caso.
Juíza tenta convencer criança com onde anos
de idade, vítima de estupro, a não fazer o aborto e permanecer com um ser no
ventre por mais um tempo [1].
Questão: O que essa magistrada desejava?
Aplicar o Direito ou a Moral?
O Código Penal já previa a possibilidade de
aborto legal em caso de estupro. Em outros casos, como o de problemas do
nascituro, tal como a anencefalia, não tem previsão legal, mas decisão do STF dada
em 2012, mas também sem estabelecer limite gestacional, não previsto em nenhum
dos casos [2]. Ocorre que há limites físicos para realizar um aborto. Ficou
claro que a decisão moral antecedeu a legal: procurando ganhar tempo e assim
provocar uma situação em que o aborto já não seria viável, a juíza tentava
convencer a criança a "aguardar um pouco mais", permanecendo na
gestação.
As dificuldades para a realização do aborto
no país são conhecidas e até mesmo assumidas [3], mas não se consegue, a partir
desse conhecimento e a despeito da débil legislação, serviços estáveis e
encaminhamento seguro para os casos. Toda dificuldade possível é encontrada,
inclusive formalmente a partir do registro do caso, isto é, numa Delegacia de
Polícia, para onde a maior parte das pessoas afetadas se dirige [5] — e impera
a confusão, não se sabendo ao certo se é preciso decisão judicial ou não para a
realização do ato [6]. E não se sabe mesmo se era necessário o registro
policial.
No caso da juíza o erro é fazer uma avaliação
ultra legem, buscando uma
justificação moral fora da lei positivada, uma vez que uma legislação já é
resultado de uma moralidade já constituída [4] que, no caso, ainda assim se
constitui de um bloco de orientações bem conservador. Por outro lado, o excesso de cautela e o medo de ser
penalizado atinge os médicos que são procurados por algum serviço deste tipo.
Exigir uma sentença judicial para realizar um aborto legal é claramente um
subterfúgio, oficioso, para não realizar o serviço e se eximir de atendimento.
Este caso é ilustrativo para o nosso
interesse aqui. Caso típico em que uma demanda social enfrenta um corpus
de Direito mal arranjado e obriga-se com isso interferência do STF para cobrir
os buracos da falta de uma legislação coesa. Não se trata apenas uma falta de
boa vontade para enfrentar o problema. O judiciário brasileiro é arvorado para
funcionar assim. Vejamos por um prisma não histórico, embora por aqui isso
também seja possível.
Os agentes políticos
Após a promulgação da Carta em 1988 houve a
necessidade de regular os agentes públicos. Mas como? Impensável colocar num
mesmo grupo funcionários públicos comuns e magistrados. Essa questão foi
resolvida com a criação da Lei 8.112/90, denominada "Lei do Servidor
Público"; as legislações estaduais acompanharam. O termo "funcionário
público" desaparece. Sempre foi motivo de confusão, mas agora fica bem
claro: o servidor público é a pessoa legalmente investida em cargo público.
Essa lei não faz distinção de cargos, obviamente. E obviamente que um magistrado
poderia ser considerado um servidor, mas para evitar isso já existia a Lei
Orgânica da Magistratura e no caso do Ministério Público, instituiu-se a Lei
Orgânica do Ministério Público. A primeira, estabelecida por uma LEI
COMPLEMENTAR, a de Nº 35, de 14/03/1979. A segunda, pela Lei nº 8.625, de 12 de
fevereiro de 1993 e as legislações estaduais acompanharam. Tanto numa como nas
outras, estes agentes são considerados "membros" do poder — isto é,
como fazendo parte do corpo do órgão, retirando definitivamente o caráter de
servidor ou de funcionário público destes agentes. Para o grande público a
confusão permanece, não mudou nada. Sempre se consideraram estes agentes como uma
parcela distinta, social e politicamente, inclusive no trato. Não é a única
confusão, mas esta serve especialmente à imprensa, para jogar todos que exercem
alguma função pública no mesmo limbo. Todos se transformam em
"funcionários públicos", um termo que permaneceu apenas na legislação
penal, por razões óbvias (o CP nunca sofreu uma revisão geral em profundidade).
Segue-se daí que o poder dos magistrados e dos
promotores e procuradores não sofreram oposição nem controle , nem sequer
vigilância externa — ainda que a criação do CNJ tenha dado algum concerto à
magistratura, bem como assim o seu homólogo do Ministério Público, o CNMP. Mas
nada que impeça os abusos, o lawfare, a seletividade, a lentidão
processual seletiva, o casuísmo e até mesmo o partidarismo explícito; estas
figuras adquirem uma proeminência enorme na vida política em tempos de crise, estimulados
pela imprensa.
O que escapa à população em geral: estes
“membros” são, em sua essência, agentes políticos. Atuam politicamente, não como
representantes políticos, evidentemente, mas no sentido do exercício de um
poder, de tomadas de decisão que mudam a direção da vida das pessoas. Quando estes
agentes atuam na vida política propriamente, de forma manifesta, serão contidos
ou não pela corporação, a depender de seu viés político. O CNJ e o CNMP poderão
atuar, mas de forma sempre limitada ou parcial.
Conclusões.
Então temos um Direito teratológico e mal
compreendido, com fortes tendências à judicialização de direitos e causas
sociais; funciona como ente político; instrumentalista e patrimonialista;
idiossincrático, quando não explicitamente moralista; corporativista e de
tendência aristocrática. A vitaliciedade do cargo confere um conforto que
ninguém desfruta no meio social e a inamovibilidade permite que quaisquer
excessos sejam tolerados ao limite, às vezes acima dele.
O acesso à Justiça, por sua vez, ainda é um
problema enorme, pois o estudo de caso acima não constitui uma exceção,
infelizmente.
De tempos para cá ouviu-se muito o sintagma
"Estado Democrático de Direito". Certamente o que temos é um Estado
que possui um Direito, mas até aí que ele seja democrático, creio não se
aplicar ao nosso caso. Teríamos que aprofundar a questão de o quanto os poderes
locais se apoderam da máquina administrativa, incluindo o sistema judiciário. E
investigar de forma séria e aprofundada as razões históricas e políticas desse
fenômeno, posto que a sociológica a descrevemos em parte, acima.
Fontes:
[2] https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/atencao_basica/index.php?p=228489; Ver também:
"Saúde da Mulher", Rev. Senatus, Brasília, v. 6, n. 1, p. 50-58, maio
2008
[3] MORAIS,
Lorena Ribeiro de. "Saúde da Mulher", Rev. Senatus, Brasília,
v. 6, n. 1, p. 50-58, maio 2008, p. 52
[4] HABERMAS, Jürgen. Direito e Moral.
Trad. Sandra Lippert. Lisboa: Instituto Piaget, 1992 © (1986), em especial a
Segunda Preleção, pp. 69-121
[6] "Serviços de aborto legal no Brasil – um estudo nacional"; https://doi.org/10.1590/1413-81232015212.10352015
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