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sábado, 20 de março de 2021

Desconstruindo Jeca. Uma leitura de Urupês.

LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Globo, 2007 (1918).

Urupês, 1918. Primeira obra de Lobato, mas na verdade,  uma reunião de contos e artigos já escritos desde 1914, quando já enviava cartas para uma seção do Jornal O Estado de São Paulo. Os contos, publicados numa revista −̶   Revista do Brasil, 1916 −̶   seriam reunidos, juntos aos artigos, no livro Urupês. Obra que venderia bem, a considerar os números de época, especialmente após uma menção à figura do caboclo por Rui Barbosa numa de suas palestras.

Uma leitura atenta do conto "Urupês" não escapa à consideração de um juízo no mínimo preconceituoso de Lobato. Não é possível, no contexto da descrição, identificar uma intenção puramente ficcional. Mesmo porque "Urupês" foi enviado como carta ao jornal O Estado, em seguida de "Velha praga". Nesta, atenta para o problema das queimadas; naquela, atribui a culpa ao caboclo. Embora possua uma aparência de um conceito sociológico, devido aos traços acentuados da figura do caboclo, na verdade trata-se de um prejuízo, pois a descrição é feita sem nenhuma reconstrução, qualquer que seja ela. E, como dissemos, o caráter ficcional é irrelevante, posto que também não há nenhuma construção. O conto é exposição viva da observação direta do autor, quase nada mais. Se houver qualquer dúvida quanto a isso, que se leia atentamente, repito. Mas o próprio Lobato nos diz:

 

"Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade!" (p.170)

 

E por aí vai. Muito bem escrito, observe-se. Assim como todos os outros contos. Mas neste em especial é possível identificar algumas ideologias de época, ainda fortemente vigentes, tal como a da degeneração das raças. Jeca é um caboclo, mestiço de branco com índio, segundo tal pensamento. E da "mistura de raças" teria se sucedido essa figura que Lobato tanto execra. E o pior: o sangue branco teria origem também impura. Vejamos este trecho:

 

"Dia virá em que os veremos [os caboclos], murchos de prosápia [orgulho], confessar o verdadeiro avô:

̶   'Um dos quatrocentos de Gedeão trazidos por Tomé de Souza num barco daqueles tempos, nosso mui nobre e fecundo "Mayflower".' (p.169)

 

Gedeão é uma figura bíblica, um dos juízes de Israel que teria libertado seu povo da invasão estrangeira, à frente de trezentos seguidores (Juízes, cap. 7 da Bíblia). Lobato faz coincidir, embora mencione quatrocentos, uma e outra coisa, simbólica e real −̶   os que aqui desembarcaram, muitos em degredo, eram descendentes de judeus, agora denominados "cristãos novos". É essa assimilação que sustenta também a mítica dos trezentos ("trezentos deputados bandidos", etc) e a mítica de que aqui se desenvolveu uma colônia de bandidos, já que de "degredado" para "ladrão" é um deslocamento muito fácil. "Nosso mui nobre e fecundo" é uma expressão de plena ironia cínica.

Obedecendo à "lei do mínimo esforço" o caboclo, segundo Lobato, é refratário ao progresso:

 

"Seus remotos avós [os tais quatrocentos de Gedeão] não gozaram maiores comodidades. Seus netos não meterão quarta perna ao banco. Para quê? Vive-se bem sem isso." (p.171)

 

Para Lobato o caboclo é tão preguiço que constrói um banquinho com apenas três pernas, a fim de evitar maiores esforços. E reforça logo em seguida:

 

"Da terra só quer a mandioca, o milho e a cana. A primeira, por ser um pão já amassado pela natureza. Basta arrancar uma raiz e deitá-la nas brasas. Não impõe colheita, nem exige celeiro. O plantio se faz com um palmo de rama fincada em qualquer chão. Não pede cuidados. Não a ataca a formiga. A mandioca é sem-vergonha." (p.172)

 

O caboclo, diz Lobato, é tão degenerado que seria digno de um estudo de Silvio Romero. Bem conhecemos este: defensor do evolucionismo à Spencer, sua obra é praticamente toda calcada nessa filosofia [1].

 

Por fim, o livro Urupês, diferentemente do conto, nos impõe outras observações. E outras contradições emergem, inclusive contra o próprio conto homônimo. Mas esta, bem como a evolução intelectual de Monteiro Lobato, é outra história. O que importa reter aqui é que este conto "Urupês" é representativo de um novo marco no debate intelectual em torno da mestiçagem. Debate que se perfilaria por todo o século XX, quiçá ainda entre nós.

 

 

Notas. 

[1]SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Cap. 1.

Silvio Romero pertencia ao círculo intelectual da chamada "Escola de Recife", defensora de tais ideias.

sexta-feira, 5 de março de 2021

O homem que amava os cachorros - Leonardo Padura


No estilo de romance policial, Padura reconstroi o assassinato de Trotski por Ramon Mercader, ex-soldado revolucionário na Espanha republicana. Contratado pela NKVD, Mercader, antes um ingênuo revolucionário, torna-se uma máquina de obedecer e é por suas mãos que morreria Trotski, perseguido pelo Stalin ao tempo de seu isolamento no poder, eliminando antigos e novos adversários. Não da revolução, necessariamente, mas da concorrência pelo poder soviético.

 

Comentário.

Por meio de qual alquimia um revolucionário se transforma numa máquina de matar e elimina outro revolucionário? Como um bravo e romântico revolucionário  é desconstruído e tornado num assassino? Como o maior revolucionário da história é acuado até a última de suas forças e eliminado em sua própria residência?

Essa é a história de lutas e traições da luta, mas também da espiral revolucionária comandada pelos bolcheviques, que souberam lidar com os reveses externos, mas também não souberam comandar a luta e a construção interna da URSS. Stálin é apenas o corolário dessa história.

O mérito de Leonardo Padura é ter descrito essa história em romance policial, magistralmente escrito de acordo com este estilo.