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domingo, 17 de agosto de 2014

BOM FUTEBOL

    É o que vem demonstrando o Cruzeiro, no campeonato nacional. Joga bem, bonito e é líder. Segredo? Nenhum. Até o Cleber Machado pôde já comentar: aproximação, toque e posse de bola, jogo rápido quando necessário, cadenciado para manter a posse de bola. Eu acrescentaria mais algumas qualidades desse time do Cruzeiro, as quais Cleber Machado não entenderia muito bem, a não ser que estivesse acompanhado de Casagrande como comentarista. Quais são?
    Marcação: nem homem-a-homem, nem por zona fixa, mas por "zona móvel". Claro, assim jogava aquela Holanda. Nesse modelo de marcação, um jogador pode dar conta de até dois adversários; Velocidade: rápida, mas com avanço em bloco de jogadores - de nada adianta ter um velocista no time se ninguém acompanhar - não precisa ser o time inteiro em bloco, mas quando um jogador corre rápido com a bola e deslancha para o ataque, então no mínimo um outro jogador deve acompanhá-lo - melhor se dois ou três assim também o fazem; a mesma recomendação anterior para quando o time está sendo atacado;
    Posicionamento: não é necessário que todos joguem em todas as posições, tal como naquele time da Holanda, mas que cada jogador cumpra com várias posições dentro de campo e se desloque constantemente - dessa forma o adversário poderá ficar confuso,  pois a maioria está acostumada com posições fixas, tanto na partida quanto na retomada de jogo.
    Há mais algumas coisinhas a serem "aprendidas".
    Recuo de bola: é melhor recuar a bola que perder a posse dela. Então não é vergonha atrasar, tocar de primeira para o imediatamente atrás de você, e mesmo recuar para o goleiro - que deve saber sair jogando. Neuer e Rogério Ceni estão aí para nos ensinar. Um toque rápido para trás, para em seguida retomar para a frente, geralmente em triangulações, é uma jogada muito eficaz para não desperdiçar lances e manter a posse de bola; portanto, a lição final: não desperdiçar lances;
    Lançamento: pode e deve ser feito. Mas não aquele "estirão pra frente" à la várzea. Deve ser jogada ensaiada, com intencionalidade de dois jogadores: daquele que lança e daquele que é lançado. Atualmente, em nosso futebol, na maioria dos lances, só há a intenção de lançar para a frente, sem que o jogador que vai ser lançado esteja devidamente preparado para tal lance;
    Impedimento: com inteligência, os atacantes nunca estarão impedidos e a defesa sempre deixará o ataque adversário em impedimento; não há segredo - é treino e disso depende um bom toque de bola e o posicionamento em zona móvel;
    Jogadas ensaiadas: fazem a diferença para qualquer time e nem é necessário que a equipe seja eximia no toque de bola. Basta treinar.

    Não acho que esse time do Cruzeiro esteja "copiando" algum estilo europeu moderno. Não. Há muitas deficiências. Nem tudo sai com perfeição. E nem mesmo os jogadores são "top" - trata-se de um elenco que pode ser considerado até bem abaixo dos grandes em geral. O que ocorre com esse time do Cruzeiro tem um nome: tradição. Sim, a boa e velha tradição do toque de bola que o futebol mineiro, em especial o Cruzeiro, manteve. Apelando um pouco para o saudosismo: Palhinha (aquele que foi para o Corinthians), Nelinho, Piazza, Dirceu Lopes, Perfumo, etc. Estes jogadores consolidaram uma tradição de jogo, baseada no toque de bola, que remonta ao tempo de Tostão, e talvez até bem antes.
    Importante lição: não seria o caso de todos os times nacionais retomarem as "lições do passado". Em história, quando se quer retirar alguma lição dela, fala-se "historia magistra vitae" - isto é, história como mestra da vida; as lições do passado, daqueles casos exemplares, para os fatos da  vida atual. História exemplar. O exemplo da História. Estamos esquecendo tudo. Também no  menos no futebol.

    PS.: quando falo em toque de bola: não apenas o passe certo, mas o toque com limite de condução, no máximo dois - como bem ensinava mestre Telê.

    Olha o time de que falo aí:
    Nelinho, Piazza, Perfumo, Darci, Vanderlei, Zé Carlos, Dirceu Lopes, Roberto Batata, Palhinha, Jairzinho e...Raul no gol. 

domingo, 16 de março de 2014

O mundo é um moinho, segundo Cartola - ou um rio que corre, cujas águas nunca são as mesmas, segundo Heráclito?

Cartola:
Ainda é cedo, amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar
Preste atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és
Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Vai reduzir as ilusões a pó
Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés

O Mundo é Um Moinho
fonte: http://letras.mus.br/cartola/44901/> [o negrito é por minha conta]


Heráclito (dos fragmentos):
"No mesmo rio entramos e não entramos, somos e não somos."
fonte:Os pensadores, ed. Abril, 1973, p. 90.

A música, do genial Cartola, adverte a pessoa que sair para o mundo é perigoso e imprevisível, um moinho, cujas engrenagens podem derrubar todos os nossos projetos de vida. Eu gostaria de sugerir não exatamente uma semelhança da música de Cartola com o fragmento de Heráclito, mas um complementação. Sim, o movimento, bem como o tempo, é como um rio, onde entramos e não entramos - somos e não somos, isto é, apesar da mesma aparência, minha e do rio, a essência já não é mais a mesma ("Em cada esquina cai um pouco a tua vida").
E mesmo a aparência também já não é mais a mesma, pois não percebemos a mudança no curto tempo, mas na longa duração, aproveitando aqui marginalmente o conceito de Braudel.
Mas também da vida faz parte um moinho, o engenho social no qual nos incluímos e por meio do qual atuamos. Nesse moinho ninguém deixa de passar e a cada momento um pedaço de nós se vai, transformando-nos sempre em outra coisa que não nós mesmos, apesar de lutarmos para manter a identidade, os projetos, os sonhos.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Rolezinhos: os flâneurs hipermodernos
Procura por espaços de lazer, demanda cultural reprimida, luta de classes, busca por autorrepresentação e inclusão social e política. Por todos esses ângulos os rolezinhos foram analisados e justificam-se, em grande parte.
No entanto, gostaria de abordar um ponto que me chamou a atenção: esses acontecimentos – que nos revelam e nos remetem à lógica do capital, pela sua face do consumo – podem ser compreendidos como um epifenômeno da própria ação modernizadora desta lógica. Mais simplesmente: decorrência inexorável de um capitalismo de alto consumo.
Esses acontecimentos recentes podem ser vistos como aquilo que Walter Benjamin descreveu como a ação dos flâneurs. Os jovens que vão ao Shopping "dar um rolezinho" são verdadeiros flâneurs da hipermodernidade.
Benjamin, estudando a flânerie contida na obra de Baudelaire, indica que o flâneur é inicialmente um resistente da modernidade. Gosta de misturar-se à multidão, aprecia a paisagem, sente prazer com os olhares. Obra prima em termos de poema e que pode representar essa figura é A uma passante, de Baudelaire (no livro "As Flores do Mal"). O flâneur de Baudelaire só aprecia, não se confunde com a mercadoria. Dispõe de seu tempo como quer, demora-se, abandona-se à multidão. 
No entanto, afirma Benjamin, com a proliferação irresistível de lojas e galerias  – por onde a mercadoria se expõe, de forma exuberante – o flâneur vai se assimilando à paisagem do consumo. E há mesmo uma busca de se expor tal como a mercadoria, de forma exuberante. Talvez por isso mesmo nossos jovens vão muito bem vestidos a esses eventos, independente e a despeito da classe social a que pertencem. Sim, estou afirmando que esses jovens são os flâneurs mais atuais e a diferença para com o flâneur clássico é que enquanto estes iam observar a multidão, aqueles a carregam. Por que a mercadoria implica multidão, exige olhares, suscita ebriedade. Nada como fazer coisas inebriado – tal como flertar, por exemplo.
Numa expressão metaforizada, é o Shopping que, a despeito dos donos de lojas, invoca esses jovens a irem lá. Mais que a busca por se incluírem na paisagem do consumo – dado que esses jovens representam a ponta de lança da modernidade – e pensando de acordo com o que expus, trata-se de uma correspondência tão lógica que quase "natural", vamos dizer assim. Portanto, esses jovens são os protagonistas principais que agora entram em cena, embora no Segundo Ato. Mas agora também desafiando o então consumo exclusivista, que sempre imperou por aqui, desde aeroportos e rodoviárias, passando por supermercados e até mesmo Shoppings. Se há algo que está no seu lugar são esses jovens no Shopping. Sim, evidente, pode-se criar novos espaços para a cultura e o lazer. Mas não se enganem aqueles que assim o querem: esses jovens não deixarão de ir ao Shopping.

Referências:
[1]BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire. Um Lírico no Auge do Capitalismo. Obras Escolhidas III. São Paulo, Brasiliense, 1989
[2]BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985 (trad. Ivan Junqueira das obras do séc. XIX de Baudelaire)

Poema de Baudelaire mencionado:

A uma passante

A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.  

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! "nunca" talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!


(As Flores do Mal, p. 345)