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sábado, 17 de janeiro de 2009

Moby Dick e a Crise

"E só eu escapei para te contar"


O capitão Ahab e sua tripulação ─ incluindo o marinheiro Ishmael e o arpoador Queequeeg ─ está empreendendo uma nova viagem. Trata-se do navio baleeiro Pequod, que singrará os mares em busca de baleias (cachalotes). Ocorre que Ahab está imbuído de um novo motivo: a vingança. Trata-se de caçar uma baleia em especial, Moby Dick, que arrancou-lhe a perna em outra empreitada.
─ Morte a Moby Dick!
Bradou Ahab, oferecendo ainda um dobrão de ouro espanhol a quem avistasse primeiro o maldito cachalote.
A caçada se estende do Atlântico ao Pacífico, passando pelo Índico. O capitão está alucinado e só pensa na vingança. Encontra pelo caminho vários navios relatando o fracasso na caçada, inclusive um que está voltando para casa avariado, se não me engano. Mas Ahab está insano, obstinadamente convencido a levar às últimas seu plano. Coloca toda a tripulação em prol disso, que não mede esforços ─ seja por temor ao capitão, seja perfunctoriamente nas suas obrigações ─ para tal tarefa.
O resultado é mais ou menos previsível, considerando-se conhecer Moby Dick, baleia velha, de cabeça enrrugada, de tantos navios em que bateu e levou à pique...
E este é o destino do Pequod.

Essa sinopse de Moby Dick, para quem não conhece a história, é muito sugestiva para esses nossos tempos de crise. Permitam-me a alegoria.

O Capitão Ahab passa anos, com sua tripulação, perseguindo Moby-Dick. A obstinação de um só homem torna-se também a dos demais, mas não porque a tripulação mesmo queira. Uns obedecem, como dissemos, pelo medo (Ahab é uma figura temível); outros pelo dinheiro (a oferta do dobrão de ouro); outros tantos simplesmente pela obrigação de seguir em seu trabalho. E são a maioria. Ninguém se salvou.

Bem, e a crise? Eu digo a vocês.
Nestes tempos de incertezas perceberemos o quanto inútil é seguir caçando algo como Moby Dick. Quem é Moby Dick? Uma baleia, um cachalote branco. Um animal velho, de velha estirpe. Vai aonde quer, e os homens o seguem. Moby Dick é o dobrão de ouro. Moby Dick torna-se cobiça. Moby Dick é a morte à espreita. Moby Dick representa um tesouro, mas para um — Ahab — é tudo. É vingança. Seguimos Ahab, que persegue Moby Dick. Perseguimos a baleia, obedecemos Ahab. Ahab não nos revela totalmente seu desígnio, mas este vai se revelando por si mesmo. Seguimos Ahab, mas um pouco antes da morte tudo se revela: não temos nada. Moby Dick não pode ser caçada; Moby Dick é inalcançável; ninguém pode obter o dobrão à custa de Moby Dick; Moby Dick representa ainda o navio afundado, toda nossa vida levada por uma empreitada inútil. E essa revelação toda apenas momentos antes de nossa vida ceifada.

Moby Dick é o sonho, a ilusão do ouro. Moby Dick é a ilusão do progresso, de busca de um PIB crescente, de mais riqueza, que nunca nos favorece. Também é o sonho de loucos, de obstinados como Ahab. O sonho de vingança de Ahab nada mais é que uma megalomania: a de tentar igualar-se ao gigante, ao Leviatã. Mas Ahab é só um homem. Somos todos homens, mais mortais que a baleia, que seguiu seu caminho, após a destruição geral...

“[...] envolto pela bandeira de Ahab, afundou com o navio, que, como Satã, não quis descer até o inferno sem arrastar consigo uma parte vigorosa do céu, que assim lhe servisse de elmo.
Pequenas aves voavam agora gritando sobre o golfo ainda escancarado; uma rebentação branca se abateu contra os seus lados íngremes; e então tudo desabou e o grande sudário do mar voltou a rolar como rolava há cinco mil anos.”

Perdemos o navio. Perdemos assim também o Planeta, consumido pelo definhamento das florestas, do ar, dos rios, arrastados pela nossa obstinação, nossa sede de progresso rápido; idéias vendidas a nós a alto custo e as quais fazemos descer goela abaixo muito facilmente.

E Ahab, afinal, quem é essa figura que tanto nos impressiona e nos mete medo? Ahab está em qualquer lugar, está em cada um de nós. Todos nós um dia fomos Ahab, na verdade todos os dias somos Ahab; incitamos uns aos outros a perseguir Moby Dick. Nos imbuímos daquela loucura, daquela razão impensada de nos tornarmos algo muito grande, além do que realmente podemos ser. Convocamos nossos semelhantes a perseguir um progresso tão inútil quanto ilusório e iludimo-nos todos com isso. E o tempo, bem como nossa vida, vai fluindo, esvaindo-se nos detalhes dos planos, das metas, das eficiências técnicas, rastreadas por nossos loucos governantes.
Mas no íntimo queremos todos, cada um por si, entesourar os resultados de tal busca. Quem não quer desfrutar o máximo do progresso? Todos querem asfalto na sua rua e ninguém quer se culpar pelas enchentes.
Procure bem. Ahab estará em você, mas não se iluda. Estará em todos os outros também.


Para ler Moby Dick:

Moby Dick, ou, A Baleia, Herman Melville, Ed. Cosacnaify, 2008, São Paulo-SP — tradução de Irene Hirsh e Alexandre Barbosa de Souza

Moby Dick, Herman Melville, Ed. Abril Cultural, 1980, São Paulo-SP — tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos

Moby Dick, Herman Melville, Dover Giant Thrift Editions, 2003, Mineola, New York

Quadrinhos:
Moby Dick, Herman Melville, Companhia Editora Nacional, Col. Quadrinhos Nacional, 2008, São Paulo-SP — adaptação de Sophie Furse e ilustrações de Penko Gelev

Adaptações:
Moby Dick, Herman Melville, Ediouro, 1970, Rio de Janeiro — tradução e adaptação de Carlos Heitor Cony

2 comentários:

Blog do "SE" disse...

O homem é homem somente na humanidade - superar a condição de pré-história da humanidade é, quiçá, superar a condição de Ahab. Até podemos carregar um Ahab, porém, enquanto portadores da humanidade. Mas, insisto, superar a razão irracional da vingança ou da cobiça irônica e metálica da forma dinheiro é uma questão de afirmar um novo projeto de humanidade, possível e necessário! O velho dilema luxemburguista: socialismo ou barbárie! Vida ou morte..eis a questão!

Unknown disse...

E muito além!
A Medicina tb tem sua "Moby Dick": a preservação da vida. Mas de que adianta preservar a vida à custa de medicamentos caros e que na maioria das vezes ajudam em um aspecto enquanto prejudicam em tantos outros? De que adianta preservar um organismo em funcionamento através de sondas e aparelhos que, em dado momento, chegam a dificultar a distinção entre homem e máquina? Talvez pelo caminho da homeopatia, da acupuntura, e mesmo da medicina preventiva, obtivéssemos resultados muito mais satisfatórios e duradouros, mas a sede incontrolável do viver, o apego a tudo o que nos cerca, à existência concreta, material impulsiona o surgimento de soluções rápidas, fáceis, "humanas", enfim. O mesmo com o Direito e a busca da ordem social, com a Pedagogia e o aproveitamento máximo das potencialidades do ser e, claro, com a economia e a utilização o mais racional possível dos recursos (por postulado, escassos). Pretender tirar do campo econômico e social essa paixão cega pelo enriquecimento é como pretender tirar da medicina a paixão cega pela preservação da vida, ou do direito a paixão cega pela regulamentação de todos os aspectos da vida. É possível resistir à tentação da caça a Moby Dick (seja no plano individual, seja no coletivo, do ser humano em geral)? Cada um terá sua própria resposta. A minha é: não. Em cada atividade humana, Ahab se faz presente. Mas não só ele...