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quarta-feira, 23 de maio de 2012


KUPER, Peter. Desista! e outras histórias de Franz Kafka. São Paulo, Conrad Ed. do Brasil, 2008.
A adaptação de Kafka feita por Kuper nos dá uma outra dimensão do autor tcheco: a visual, evidentemente, mas sem perder algo de essencial do autor, que é o estranhamento profundo e uma sensação de desolamento.  O estilo dos quadrinhos, misto de traços retos e curvos, em preto e branco, nos aproximam dessas impressões.
É claro que os quadrinhos são uma coisa e o texto mesmo de Kafka é outra. Podem ser lidos independentes um do outro, na minha opinião, mas ficar ciente que a leitura de um "não dispensa" a do outro - especialmente a do adaptado, Kafka. Mas a boa notícia é que os textos, à exceção de dois ("Um artista da fome" e "Um fratricídio"), são integrais. Esta informação consta da última página da HQ e não retira o que eu disse acima, pois lembrar que é uma tradução da tradução. Além disso, a imagem interfere no texto que se lê.
Destaque para a primeira história, "Uma pequena fábula" e também para "Um artista da fome", adaptação excelente para o genial conto de Kafka.

O sumário:
Uma pequena fábula
A Ponte
Desista!
Um artista da fome
Um fratricídio
O timoneiro
As árvores
 O pião
O abutre

Sugestão: estas pequenas histórias podem servir como base de reflexão para grupos que desejam discutir sobre assuntos filosóficos e ao mesmo tempo apreciar a arte de Kuper. Para quem quiser mais informações: http://entretenimento.uol.com.br/album/kafka_desista_album.htm




              

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Jazz. Uma história social e crítica.

HOBSBAWM, Eric.  História Social do Jazz. Trad. Angela Noronha. Prefácio Luís Fernando Veríssimo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990 (1959-61).

Leitura realizada em Maio de 2012, revista em Outubro de 2022

Na minha conceituação, o ofício do historiador é o de interpretar os mitos e desconstruir os clichês, buscando com isso, por meio de  uma exposição narrativa, iluminar parte do passado social dos homens. Cada uma destas coisas – interpretar, desconstruir, narrar – envolve uma metolodogia (como técnica) própria, mas que serão absolutamente definidas após a pesquisa. Que é outro problema. O método, propriamente dito, que é uma relação entre sujeito e objeto, pode (ou deve) parametrizar e conduzir o estudo. No meio de tudo isso, estão os conceitos (como tipo ideal), que ajudam a empurrar para a frente todo este trabalho.

 

Este trabalho de Hobsbawm é digno do ofício que mencionei.

 

Assim como a história da feijojada, a história do Jazz, envolve tantos clichês quanto mitos, que juntos estes podem resultar em pura lenda. É a velha máxima de que cada parte traz uma verdade, mas juntas todas, somadas, não traz nada de realidade. E precisamos de alguma, se quisermos sustentar qualquer ficção.

 

À época anônimo e escrito sob o codinome de Francis Newton, Hobsbawm faz uma síntese excelente sobre a origem social do Jazz e seu desenvolvimento comercial, desde as suas origens até o momento em que foi escrito, em 1959 - com um prefácio de 1989, atualizando algumas informações.

 Em linhas gerais, Hobsbawm entende o Jazz como revolucionário, ou ainda, possuidor de aspectos revolucionários, tais como sua forma, expressão e linguagem. Sempre foi um interesse de minorias, afirma (p. 13); no entanto, alcançou difusão e popularidade internacional, havendo fases de expansão, onde o interesse se renova, como é o caso do final dos anos 1930. Por outro lado o Jazz também sempre se renovou e inovou e é reconhecida a sua resistência aos interesses comerciais e industriais mais massificados, embora essa própria indústria o tenha promovido, cada vez mais.

 

Assim, diz Hobsbawm, foi o bepop - uma revolução no estilo do jazz ocorrido em meados dos anos 1940, cujos músicos buscavam uma forma nova, mas que foi encampada pela indústria musical. É preciso enfatizar que o jazz, como apresentado por Hobsbawm, sempre foi refratário a uma vulgarização maior - por isso se manteve como um interesse entre intelectuais e jovens de esquerda.  Em seu prefácio de 1989 atualizada essa informação: quando adentramos na era do rock - interesse especial dos mais jovens - o jazz passa a ser apreciado por um público mais velho e de certo modo mais exigente com relação ao que chamaríamos de arte, tanto na sua especificidade quanto na realização em termos rítmicos.

 

Ao mesmo tempo o jazz sempre se aproveitou da música pop e esta dele, numa clara simbiose, mas sem imiscuir-se um no outro (v. cap. "Música popular"). Por isso mesmo o jazz também se presta à indústria, sendo fonte de inovação melódica para outras formas, inclusive o pop. Como o livro foi escrito em 1959 e atualizado apenas por um prefácio de 1989, a relação com o rock não foi muito aprofundada. O autor fez questão de marcar as diferenças, especialmente, e não as semelhanças e influências recíprocas, que certamente existiram e existem. De todo modo, o jazz pode ser considerado uma arte popular, de grande difusão, mas que não faz concessões fáceis ao comercialismo. Nisso Hobsbawm parece estar certo.

 

Mas o que é o jazz? A resposta está por todo o livro, basta lê-lo e prestar atenção. É uma forma musical revolucionária, distinta, caracteristicamente de resistência (dos negros, inicialmente), mas sobretudo porque:

 

"(...) o efeito mais poderoso do jazz está na comunicação da emoção humana de forma intensificada. (...) O jazz é, portanto, música de músicos, música expressando diretamente as emoções (...)" [p.151]


O jazz, segundo
Hobsbawm, não busca a excelência crítica, tal como a música clássica, mas seus músicos buscam uma perfeição com relação à execução do instrumento. A não ser pelas mãos de Ellington, o jazz fugiu de forma geral à notação e à escrita - inclinando-se sempre para uma espécie de improvisação, que em grande parte é um mito, pois seus músicos ensaiam muito. A improvisação fica por conta das jam session - momento particular da vida do jazzista, já que neste ele toca para ele mesmo e para seus companheiros, muitas vezes como desafios.

 

O jazz deriva de uma música ritual, religiosa (música de gospel) e também das canções de trabalho, especialmente no Sul do EUA. É uma música de origem rítmica negra, mas que se encontra com as tradições musicais espanhola, francesa e anglo-saxã. É nítida sua origem folclórica [embora eu não goste deste termo, Hobsbawm o emprega]. Além disso, o jazz também deriva de uma forma de entretenimento musical popular que é a música de rua. O primeiro estilo identificável foi o ragtime e o segundo o blues, cada um com características próprias. Além, é claro, do estilo New Orleans, que se tornou mítico. O entretenimento popular teve grande difusão nas cidades e especialmente as portuárias, como New Orleans, espalhando-se depois para outras cidades, especialmente para o norte, quando a migração de negros após a Guerra Civil foi maciça. Nos anos 1920 o jazz tornou-se uma linguagem nacional. Houve um recuo após o final desta década, renascendo após 1935 e revolucionando-se em meados da década de 1940.

 

Hobsbawm valoriza por demais o "fenômeno jazz", chegando mesmo a exagerar um pouco a autonomia do movimento:

 

"Na verdade, o jazz fez seu caminho às sua próprias custas. E só depois de tê-lo feito foi reconhecido pelo governo americano como agente de propaganda do american way of life (...) e enviando músicos de projeção ao exterior como 'embaixadores culturais'" (p. 82).

 

Não sem alguma dificuldade, Hobsbawm consegue explicar como o jazz foi sempre refratário ao comercialismo. Quando isso se torna evidente sua justificativa para o fato desvia para a conduta do músico: sempre quiseram ser profissionais, então tinham que ceder à produção industrial. Não que este aspecto não seja verdadeiro, mas é que Hobsbawm, como dissemos, sobrevaloriza o fenômeno. E é perfeitamente compreensível, já que ele mesmo assume ser fã de jazz, embora tenha escrito o livro, à época, sob o pseudônimo de Francis Newton.

 

Por outro lado, o prefácio de 1989 relativiza tudo o que talvez tenha exagerado corpo do livro. E exagerou um pouco mesmo no capítulo sobre o público de jazz (Parte 4 - "Gente", cap. "O público"), onde aborda e descreve os vários perfis de ouvintes e fãs do ritmo.

 

Talvez a melhor parte, em termos de análise sociológica e ao mesmo tempo histórica, seja a Parte 3 - "Negócios". Os dois capítulos que a compõem, "Música popular" e "A indústria do jazz", são excepcionais. Trata-se de uma verdadeira aula sobre a lógica industrial e sua relação com formas pré-industriais da cultura popular, como esta é apropriada por aquela e as mudanças e evoluções que isso implica, não necessariamente ruins.

 

O capítulo final, "Jazz como protesto", contido na Parte 4 - "Gente", também merece destaque. E aqui talvez o leitor compreenda melhor as colocações anteriores do autor, que nos mostra como a música serviu inicialmente como resistência e posteriormente como estandarte de luta da figura do negro pobre, oprimido mas consciente - numa clara oposição à postura de "Pai Tomás", isto é, a do negro que cede e se acomoda às formas sociais e culturais dominadoras do branco. Mas também o capítulo possui uma passagem de pequeno exagero; é quando Hobsbawm afirma que, devido ao caráter de protesto da música, é possível aproximá-la de formas políticas revolucionárias, em tempos de fermentação política (p.283). Só não identifica claramente esse momento e nem seus sujeitos. Embora ele mesmo afirme que não é fácil encontrar e nem implique necessariamente militância. Mas expressa sobretudo um desejo de participar, interagir.

 

Ademais, o livro é excelente não só como estudo histórico daquela tradição musical, mas também como uma grande introdução ao assunto. Possui um capítulo especial para discografia, leitura complementar e ainda um vocabulário, além de um precioso índice onomástico, ponto fraco em muitos outros bons livros. Na minha opinião Hobsbawm empregou pouco espaço para análise de Ellington, embora tenha lhe dedicado algumas preciosas páginas e ressaltado muito sua importância. O grande músico, pela sua obra como um todo, talvez merecesse um capítulo especial. Alguns outros músicos talvez merecessem também uma minibiografia - como Charlie Parker, por exemplo - mesmo dentro do espaço reduzido. Mas aí seria um compêndio grande e talvez fugisse à proposta do autor.

 

Não se avalia um livro pela capa, como sabemos, mas a desta edição é muito simpática, valorizando seu conteúdo. O estilo do autor deve ser conhecido já por alguns. Escreve de forma clara e bem inteligível, embora seja preciso ficar atento a tudo quanto afirma, pois não consegue escapar a alguns paradoxos, como aqueles que expus acima. Recomendo a todos.

 

Euclides Roberto.

 

P.S. em 22/05/12

Este pós-escrito me ocorreu porque fiquei refletindo sobre outras obras de Hobsbawm em que algumas ideias se repetem.

Diz respeito tanto ao texto original quanto ao prefácio de 1989.

Primeiro: ele diz que o Jazz é música de minorias, ao menos em sua origem. Negros e trabalhadores, muito bem (v. os primeiros capítulos sobre a origem). Depois afirma que é um fenômeno de massas, apropriado pela indústria cultural (v. os caps. sobre a indústria do jazz). Também podemos concordar. Porém ele afirma por diversas vezes que o jazz é ouvido por poucas pessoas, especialmente jovens e intelectuais e atendem a um gosto de minoria (v. cap. "O público", p.246). E é aqui que chegamos a um paradoxo ou pelo menos uma forma de Hobsbawm acomodar o fenômeno jazz às suas teses marxistas. Em várias passagens, também neste capítulo de certa forma, Hobsbawm afirma que o jazz é revolucionário, anticomercial. No último capítulo, "Jazz como protesto", Hobsbawm reitera este caráter revolucionário dizendo que o jazz é sobretudo uma forma de protesto, desde sua origem. Era uma música dos povos e classes oprimidas (p.275). Ora, como um fenômeno de massas, reconhecido internacionalmente, pode ainda manter seu caráter de protesto, revolucionário? "O jazz é contra a opressão, contra a pobreza..." (p.283). Hobsbawm se esforça em apresentar uma música de vanguarda e que serve à vanguarda (jovens intelectuais). Se ela é tão vanguardista assim, porque tanta aceitação, não somente em nossa época, mas várias épocas, como nos anos 20 por exemplo? Hobsbawm tenta acomodar essas contradições, paradoxos, eu diria, apresentando-nos o jazz como  um fenômeno de vanguarda, revolucionário, e de certa forma organizado ("razoavelmente claro em teoria" - p.284), apesar de espontâneo, individual e de forma privada. Enfim, temos aqui a reprodução, por "linhas tortas", da imagem do partido de vanguarda e da classe operária organizada e revolucionária, pronta para orientar as massas (!). Sobra ainda para os anarquistas, que Hobsbawm nunca cansa de atacá-los:

 

"O Jazz é contra a opressão, contra a pobreza, contra a desigualdade e a falta de liberdade, contra a infelicidade. Ele é - de uma forma vaga e anárquica que foi mal compreendida pelos intelectuais anarquistas que o levaram a peito - contra a polícia e os juízes, contra as prisões, os exércitos e a guerra. (...) O ódio a essas coisas não implicam militância." (p. 283)

 

No entanto, o jazz não resistiu ao rock, como o próprio Hobsbawm conclui em seu prefácio de 1989. [Será?] Há uma nova acomodação de suas teses aqui, reforçando ainda o que disse a respeito do jazz no texto original: o jazz sempre foi interesse de minoria (p.13) e o rock nunca foi uma música de minoria (p.15). O autor pode até estar ligeiramente correto nessa asserção; não nega que o rock é fenômeno de massas, especialmente de jovens, que procuram uma expressão de suas vidas. No entanto, falha ao tentar obscurecer ou negar aspectos de fenômeno de massas para o jazz. E falha também no inverso, ao querer negar o de origem de minorias ao rock.

Ora, se fizermos uma comparação, jazz e rock possuem história de nascimento e evolução similares: humilde nas suas origens, apropriado pela indústria, massificado - apesar de seus representantes serem avessos ao sucesso - ao menos durante um período dessa evolução e possuem algo de protesto em sua letra e música. No rock isso é muito mais patente, diga-se de passagem, e o modo de se expressar é muito mais revolucionário (não apenas na apresentação, mas também no uso dos instrumentos, por exemplo). E, por outro lado, como negar ao rock o apelo a uma música de vanguarda? Não foi por meio dele as maiores inovações na música?

Ademais, que garantia temos hoje em dia que determinado músico ou artista não quer fazer sucesso, levar sua música e arte a todos? O jazz é sim fenômeno de massas, assim como o rock. E é bem possível que este último tenha sido uma música de minoria nos seus inícios, mas que foi apropriada rapidamente pela indústria cultural de massas. A diferença estaria no tempo em que uma e outra forma foi apropriada, pois a própria indústria cultural aprendeu a ser rápida e observar melhor os movimentos culturais espontâneos e originais, absorvendo-os e adaptando-os às massas. O elemento de resistência ao comercialismo, identificado no jazz, pode ser igualmente encontrado também no rock. Mas Hobsbawm é amante incondicional do jazz. Entende que esta é uma música genuinamente de minorias e caracteristicamente de vanguarda, portanto, oportuna e apropriadamente revolucionária. Precisamos apenas compreender isso para entender as afirmações do autor, muito embora paradoxais.

terça-feira, 8 de maio de 2012

A Náusea. Jean-Paul Sartre. Lições do existencialismo. Resenha.


SARTRE, Jean-Paul. A Náusea. RJ, Nova Fronteira, 2011 (1938, 1943)


Li este já faz um tempo. Resolvi compartilhar com vocês minhas impressões, livres, além de uma análise sobre a filosofia existencialista à época proposta por Sartre. 

Trata-se do primeiro livro (romance) editado de Sartre. O primeiro livro escrito, "A lenda da verdade" (1928), foi recusado pelos editores. Então deu início em 1933 ao romance "A Melancolia", que na verdade seria o intitulado "A Náusea", que foi publicada dois anos antes de "A Imaginação" (1940); portanto, já é resultado de uma filosofia pronta. Sartre fazia questão de transpor sua filosofia para a literatura, possivelmente como um forma de obter facticidade e imprimir verossimilhança às suas teses. "O Ser e o nada", publicado em 1943, teria sido iniciado em 1939; portanto, um ano depois de "A Náusea", sendo esta obra muito representativa dessa primeira fase do existencialismo. Recomendo que todos leiam, se quiserem ter algum contato com a obra filosófica de Sartre.

Personagens:

Antoine Roquentin é o protagonista; é historiador e está fazendo a biografia do marquês de Rollebon; trabalha atualmente numa biblioteca, onde faz suas pesquisas. Pensa em transformar o trabalho em literatura, ao invés de biografia, já que encontra algumas dificuldades no sentido de obter certezas a respeito da conduta (como agente histórico) do marquês, pois não há firmeza, consistência, nos testemunhos.
Logo de início, o estranhamento: Roquentin esforça-se para "reencontrar a impressão de anteontem" (p.13). Esse estranhamento já é o objeto da náusea: sensação de que a própria identidade já não é a mesma. Em outra palavras: mudaram as coisas ou mudou eu? Busca uma resposta, que depois será abandonada, a fim de manter a identidade do eu: "...todas essas  mudanças dizem respeito aos objetos. Pelo menos é disso que gostaria de ter certeza." (p.14). Ao mesmo tempo, sente extrema solidão.

Anny . Ex-noiva de Roquentin. Não a vê faz seis anos. Quando a encontra, quase não reconhece. Busca os traços perdidos. Em vão. Roquentin tem a impressão que ela porta uma máscara. Parece que vai desistindo dela, mas tem medo da solidão. Tenta algum reatamento, mas Anny tem outros interesses e outro amante agora. O passado ficou, como uma sombra, e não há meios de reavivá-lo.
"Ficamos um momento em silêncio. Cai a noite; mal distingo a mancha pálida de seu rosto. Sua roupa preta se confunde com a sombra que invade o quarto. Pego maquinalmente minha xícara na qual restou ainda um pouco de chá e levo-a aos lábios." (p.202).

O Autodidata (Ogier P.). Frequentador da biblioteca, que eventualmente o ajuda e com quem  raramente conversa. Gosta de ler a enciclopédia, na sequência, e atualmente está na letra "L". Admira e inveja as viagens que Roquentin faz e pensa um dia em empreendê-las, a fim de buscar aventuras. Roquentin tenta se lembrar de alguma aventura em suas viagens, mas não consegue. Tenta identificar um incidente que teve com algo de aventura, mas é forçoso.

Françoise, a "Patroa" do Rendez-vous des Cheminots, uma espécie de bar. Roquentin paga as suas despesas com amor au pair (como troca). Mas quase não conversa com ela também, só amenidades, assim como com o Autodidata. Segundo Roquentin, ela serve para "purgar" seus desejos (e melancolias derivadas deles).

O "Corso". Funcionário da biblioteca que recebe as aquisições.


A existência.
A Náusea vai se apresentando a Roquentin como um estranhamento do ser. A partir de determinado momento começa a ter certeza de que não foram as coisas que mudaram, mas ele próprio. Não se reconhece nem mais em seus escritos recentes sobre a biografia que está redigindo.  É a prova de que mudou. Mas essa constatação só pode ser verificada após uma outra: a da contingência das coisas, a simples existência, sem precisar de serem explicadas.

"Agora eu sabia: as coisas são inteiramente o que parecem - e por trás delas... não existe nada!" (p.131)

Eu sugiro que esta passagem seja essencial para compreender a filosofia existencial de Sartre. O absurdo dessa constatação vai se apresentando a Roquentin ao longo de seus passeios e devaneios por Bouville, cidade onde está instalado a fim de proceder à pesquisa sobre o marquês; isso se dá por uma "infinidade de pequenas metamorfoses", como o próprio protagonista afirma, mas há um acontecimento que se impõe como uma epifania e que "ilumina" tudo. Trata-se das reflexões após a visita a um museu da cidade, feito um dia antes e anotado no diário (v. p.113-129). Roquentin se dá conta das coisas mortas do museu, que ao fim não diferem das coisas que o rodeiam e estão presentes:

"Lancei um olhar ansioso ao meu redor: só o presente, nada além do presente. Móveis leves e sólidos, incrustados em seu presente, uma mesa, uma cama, um armário de espelho - e eu próprio. Revelava-se a verdadeira natureza do presente: era o que existe e tudo que não era presente  não existia. O passado não existia. De modo algum. Nem nas coisas, nem mesmo em meu pensamento. Por certo fazia muito tempo que eu compreendera que o meu [passado] me escapara." (p.131)

Também há uma constatação de que ele mesmo está vivo, mais vivo que as pessoas com quem tem contato e que não diferem muito do marquês de Rollebon, que é uma promessa de existência em biografia. Promessa de existência, pois este - com a desistência de Roquentin escrever a biografia - retorna ao seu nada. Agora "...já não era senão uma imagem em mim, uma ficção." (p.133).

Como não se confundir com a existência de pedra das coisas e das pessoas? Sartre, ou melhor, Roquentin remete a Descartes, mas aqui o cogito sofre um leve deslocamento: não se trata simplesmente de penso, logo existo,  mas de: existo, logo penso, e se penso não posso duvidar que existo. É a condição de estar vivo, sentir e pensar sobre a existência própria, que muda, se transforma, se transfigura.

"Estava com Náusea? Não, não era isso, o quarto estava com sua aparência protetora de todos os dias..." (p.131);

"O sr. de Rollebon era meu sócio: precisava de mim para ser, e eu precisava dele para não sentir meu ser." (p.133);

"A coisa, que estava à espera, alertou-se, precipitou-se sobre mim, penetra em mim, estou pleno dela - Não é nada, a Coisa sou eu. A existência, liberada, desprendida, reflui sobre mim. Existo." (p.134).

"Sou, existo, penso, logo sou: sou porque penso, por que penso? (...)" (p.137)

Morre o marquês de Rollebon para reavivar Roquentin.

O absurdo e o absoluto. O contingente.
O absurdo se mostra na falta de explicação da existência - que provém não exatamente de uma recusa de uma explicação, mas de uma inexplicabilidade da razão de existir. E daí, sim, a recusa a uma explicação das coisas pela simples causalidade. Esse é o principal ponto de crítica de Sartre à metafísica e podemos depreendê-la pela conversa final, no restaurante, com o Autodidata, que acredita na necessidade de causalidade. Para este, se não houver causalidade não há finalidade de existir (p.151-2).

"- É porque estou pensando - digo rindo - que aqui estamos, todos nós, comendo e bebendo, para conservar nossa preciosa existência, e que não há nada, nada, nenhuma razão para existir." (Roquentin, p. 151)

"Há uma finalidade, senhor, há uma finalidade...há os homens." (o Autodidata, p. 152).

O Autodidata possui um humanismo voluntário, ingênuo e bárbaro, na acepção de Roquentin. Seu humanismo ajuda a escapar do dilema da solidão, a cuja resposta será dada por Roquentin com a liberdade. A opção pela liberdade, de ser livre, de fazer sua própria escolha. Por isso, mais tarde, desiste de tudo e parte para Paris.

A Náusea é fruto da ofuscante evidência da existência - de si e do mundo (p.164). A Náusea, portanto, é sensação da própria existência penetrando por todos os poros. Observe-se a inversão, sutil e metafórica, que isso faz com o termo grego aporia - por onde a verdade teria que extravasar - pela contradição - sair pelo poros; em Sartre a verdade entra por eles. Não há contradição, há a Náusea, a sensação de estar no mundo. A aporia (no sentido filosófico) em Sartre se resolve pela aceitação, pela epifania do contingente, por tudo aquilo que está à nossa volta.

"...em geral a existência se esconde. Está aqui, à nossa volta, em nós, ela somos nós, não podemos dizer duas palavras sem mencioná-la, e afinal não a tocamos (...) Se me tivessem perguntado o que era a existência, teria respondido de boa-fé que não era nada, apenas uma forma vazia que vinha se juntar às coisas exteriormente, sem modificar em nada sua natureza.  E depois foi isto: de repente, ali estava, claro como o dia: a existência subitamente se revelara. Perdera seu aspecto inofensivo de categoria abstrata: era a própria massa das coisas..." (p.170).

O "Absurdo", o inexplicável, é a chave da Existência. Pois no fim das contas, não há absurdo - o absurdo é deontológico - existe apenas com relação à situação em que se encontra.

"Um círculo não é um absurdo, é perfeitamente explicável pela rotação de um segmento de reta em torno de uma de suas extremidades. Mas também um círculo não existe. A raiz [da árvore que Roquentin observava], ao contrário, existia na medida em que eu não podia explicá-la." (p.173).

Enfim, a existência dispensa explicação. Esse seria o absurdo, mas não o é. É o absoluto. O próprio Roquentin nos explica:

"Esse momento foi extraordinário. Eu estava ali, imóvel e gelado, mergulhado num êxtase horrível. Mas, no próprio âmago desse êxtase, algo de novo acabava de surgir; eu compreendia a Náusea, possuía-a. A bem dizer, não me formulava minhas descobertas. Mas creio que agora me seria fácil colocá-las em palavras. O essencial é a contingência. O que quero dizer é que, por definição, a existência não é a necessidade. Existir é simplesmente estar aqui; os entes aparecem, deixem que os encontremos, mas nunca poderíamos deduzi-los. (...) nenhum ser necessário pode explicar a existência: a contingência não é uma ilusão, uma aparência que se pode dissipar; é o absoluto, por conseguinte a gratuidade perfeita. Tudo é gratuito: esse jardim, essa cidade e eu próprio. Quando ocorre que nos apercebamos disso, sentimos o estômago embrulhado...é isso a Náusea" (p.175).

"A existência não é algo que se deixe conceber de longe: tem que nos invadir bruscamente, tem que se deter sobre nós, pesar intensamente sobre nosso coração como um grande animal imóvel - do contrário não há absolutamente nada mais. " (p.176).

Sartre prossegue, dizendo que tudo é coisa. Inclusive o movimento, que é uma ilusão. Nas suas próprias palavras:

"Dizia a mim mesmo, acompanhando o balanço dos galhos: os movimentos nunca existem inteiramente, são passagens, intermediações entre duas existências, tempos fracos.
(...)
Essa ideia de passagem era também uma invenção dos homens. Uma ideia muito clara. Todas aquelas pequenas agitações se isolavam, se afirmavam por si mesmas. Excediam por todos os lados os galhos e ramos. (...) É claro que um movimento era algo diferente de uma árvore. Mas ainda assim era um absoluto. Uma coisa. (...) A existência não tem memória." (p.177)

Mas não termina aí. Ainda vem o golpe final, e as palavras de Roquentin são muito claras:

"Todo ente nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por acaso. Inclinei-me para trás e fechei as pálpebras. Mas as imagens, imediatamente alertadas, de um salto vieram encher de existências meus olhos fechados: a existência é uma plenitude que o homem não pode abandonar." (p. 178).

No entanto, em meio a esse nada, algo pode ser afirmado. Roquentin decide partir para Paris e escrever um livro. Esse é o momento de iluminação do ser. Foi feita uma escolha, escreveria um livro, um romance, e talvez por meio dele pudesse evocar sua vida sem repugnância (última página).


Comentário.
Se formos um pouco severos com Sartre, talvez possamos sentir Náusea quanto à sua filosofia. Observe-se:
- Tudo é coisa;
- Tudo é contingência - não há causalidade;
- Não há razão para a existência;
-Não há movimento, apenas a aparência de movimento que ao fim é existência;
- Presentismo - a existência não tem memória.

As próprias pessoas, no romance, assemelham-se a coisas, pois não se dão conta de sua própria existência - existências que poderiam ter vida própria e não em razão ou função de algo ou alguma coisa.
Estamos beirando o solipsismo, senão já dentro dele. Eu existo e o resto é coisa e contingência. Ora, há muita gente que vive assim por puro egoísmo e não por reflexão oriunda de uma filosofia. Evidentemente que Sartre não está pregando o modo egoísta de ser, mas trata-se sim de um tremendo ataque a qualquer pensamento metafísico. Se pensarmos assim, fica um pouco esclarecido o assunto. E a questão do movimento? Sartre nega o movimento como um todo? Soa até como um sofisma quando  afirma que o movimento nada mais é que várias existências até a decadência. Se pensarmos em termos de pura matéria talvez seja admissível. E para o homem? Para o homem há a escolha, a deliberação, a decisão. Isso, apenas isso rompe com a simples existência. A iluminação, para Sartre, está um pouco nesse resgate do cogito - mas um cogito que primeiro constata e depois afirma a existência para consubstanciá-la no ser. Consubstanciação e não transubstanciação. Transcendência para Sartre é sair do lugar, sair do mesmo, sair da condição, dirigir-se para a sua liberdade.
Sartre foi acusado de anti-humanista com este romance. Não é para menos, pois a discussão de Roquentin com o Autodidata deixa isso no ar. Sua resposta veio como o ensaio "O Existencialismo é um humanismo", que em resumo afirma que o ato individual engaja toda a humanidade.
É possível fazer um entendimento amplo da filosofia dessa sua primeira fase (pois sofreria uma modificação) no seguinte: é possível que tudo seja contingente mesmo, inclusive com relação às pessoas, mas circunstancialmente.  O mundo, muitas vezes, apresenta-se desse modo. Quantas vezes você não se sentiu assim quando, por exemplo, um direito lhe foi negado por simples detalhe burocrático? Para Sartre há uma saída: reconhecimento de sua angustiante condição no mundo e iniciativa para sair dela. Desse ponto de vista ninguém pode negar o aspecto de movimento na sua filosofia.

quinta-feira, 3 de maio de 2012


F. SCOTT FITZGERALD & ZELDA. Kyra Stromberg
A partir da biografia de cada um do casal, o livro descreve a tumultuada relação da união, marcada pela competição. Embora Zelda tenha se posto aos cuidados de Scott e este tenha assumido uma postura paternalista com relação a ela, o casamento foi caracterizado desde o início pelo conflito e pela luta. Zelda queria independência e seu comportamento era libertário. Scott, nem tanto, assumindo invariavelmente uma postura conservadora. Em público demonstravam um liberalismo que não correspondia exatamente à realidade. As festas eram ruidosas e o casal esforçava-se em demonstrar "vanguardismo", querendo afinar-se a um espírito moderno. Isso os levou à falência, pois os gastos eram exagerados.  As brigas se tornaram comuns; primeiro em público, depois reservadamente. Kyra Stromberg afirma que o casal viveu uma vida inventada. Scott mais tarde demonstraria arrependimento por ter forçado o casamento, que só foi aceito porque Scott fez sucesso rapidamente com seu primeiro livro, demonstrando-se um partido promissor. Stromberg mostra também como a vida do casal, bem como os diários de Zelda, serviram de inspiração a Scott Fitzgerald. A própria Zelda escreveria um romance.  Esforçou-se demais para o balé, mas já tarde para isso (tinha 26 anos então). Queria dedicar-se a algo, ter sucesso nisso, mas a proximidade com alguém já tão famoso a sufocava. Zelda "perde a competição" - acaba na insanidade e vai se tratar em inúmeras clínicas, mas sem sucesso total. Segundo os amigos do casal, sempre parecia haver algo de loucura em seu atos e suas maneiras. Scott nunca conseguiu satisfazer Zelda e Zelda nunca contentou a Scott. Esse pode ser um dos balanços da relação.
O livro tem o mérito de apontar para a época, fazendo até uma sociologia muito boa da daquela sociedade. Também analisa aspectos das obras principais de Scott, bem como sua repercussão. Também investiga os amigos do casal, como Hemingway e o casal Murphy, Sara e Gerald. Edmund Wilson também recebe atenção especial.