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segunda-feira, 7 de setembro de 2020

HISTÓRIAS DE LIVROS PERDIDOS - GIORGIO VAN STRATEN


Straten: em busca de tesouros imaginados. Pequenas histórias de livros perdidos. 

STRATEN, G. (van). Histórias de Livros Perdidos. Trad. Silvia Massimini Felix. São Paulo: Ed. Unesp, 2018 (2016) == resenha == 



































Não se trata de uma investigação comum, realizada num determinado (e breve) período de tempo, mas do resumo de uma ampla pesquisa investigativa, dado de que se trata da própria experiência de toda uma vida profissional — de um apaixonado por livros. Tal como o foi também Umberto Eco, outro grande apaixonado por esse objeto que mudou a história do mundo ocidental.

 

Livros perdidos são livros que já existiram — sob qualquer forma — e que não existem mais. O autor assim o define:

 

"...são aqueles que o autor escreveu, mesmo que às vezes não tenha conseguido terminá-los; são livros que alguém viu, talvez até tenha lido, e então foram destruídos ou dos quais não se sabe mais nada." (p.8)

 

Portanto, o livro em questão, de que trata van Straten, nem chega a ser editado: extraviaram-se das mãos de seu autor pelos mais diversos motivos — furtado, queimado, perdido, vontade dos herdeiros, guerra ou ainda uma situação conjunta de todos estes elementos.

 

Livros perdidos são, geralmente, de conhecimento de um círculo restrito de pessoas. Do contrário, não saberíamos se houve um livro, se algo foi escrito para ser editado. São livros que estão num mundo virtual, apenas imaginário, já que sua existência física é extinta.

 

Há uma espécie de mistério e fetiche envolvendo essa prática — a de buscar "livros perdidos". Seria aquela obra não editada a obra prima "oculta" de determinado autor? Straten não chega exatamente a essa conclusão, mas a deixa em aberto. Dá indícios para nós de que talvez fosse assim. E em alguns casos há fortes indícios de que assim seria. A imaginação preenche esse vazio com a perfeição. E aqui está a magia.

 

São oito livros os perdidos e seus respectivos autores:

1 -  Romano Bilenchi, Il Viale [A Avenida] - Florença, 2010 - este livro van Straten leu e não tirou cópia; devolveu o original à esposa e ela o queimou, alegando que era vontade do marido; trata-se de um autor bastante considerado por van Straten e o único livro perdido cuja leitura foi realizada;

2 - Lord Biron, Memoirs [Memórias] -  Londres, 1824 - os herdeiros tomaram o original do editor, que o devolveu com a condição de ressarcimento de um adiantamento feito ao próprio Byron; posteriormente soube-se que foi queimado; os motivos para isso, supõe-se,  são os mais diversos — talvez os herdeiros estivessem perigosamente implicados nas Memórias; Byron levava uma vida dionisíaca, como um bom romântico;

3 - Hemingway, Juvenília - Paris, 1922 - uma mala foi furtada num trem de seu bagageiro, em Paris, quando a primeira esposa de Hemingway saiu por um momento para tomar água — levava consigo na mala originais do escritor; Hemingway contou essa história logo em seguida, em seu romance Paris é uma festa — aqui não lamenta o perdido, considerando até bom tê-los perdido, pois teve oportunidade de escrever melhor;

4 - Bruno Schulz, O Messias - Polônia, 1942 - supostamente queimado no incêndio de carro provocado por um acidente, onde um sueco, que supostamente carregava uma cópia do texto que estava de posse com a KGB; pistas posteriores levaram a nada; Schulz morreu na guerra, na condição de escravo de um oficial alemão — assassinado por um outro oficial; como suas obras foram parar na KGB? Teoricamente quando da libertação da Polônia pelas tropas soviéticas;

5 - Gogol, Almas mortas (parte II) - Moscou, 1852 - perfeccionista e autodestrutivo, o original deve ter sido queimado por suas próprias mãos; Tolstói parece ter lido essa obra, considerando-a ruim; isso pode ter sido levado em conta por Gogol, embora fosse um rascunho o em mãos de Tolstói; mas certamente não só isso — segundo Straten Gogol era um maníaco perfeccionista e talvez não quisesse deixar, já no fim da vida,  uma obra mal escrita; 

6 - Malcom Lowry, Rumo ao Mar Branco - Colúmbia Britânica, 1944 - alcoólatra, foi abandonado pela primeira esposa; foi morar numa cabana no Canadá, com uma segunda esposa que o acompanhava sempre; lá escrevia — mas quando a cabana pegou fogo também foram embora os originais do que seria sua obra prima;   

7 - Walter Benjamin: algo que estava na mala preta, que carregava consigo - Catalunha, 1940 - é relativamente conhecida pelo mundo acadêmico as circunstâncias da morte de Benjamin: fugindo da França ocupada, junto a um grupo, tenta atravessar a fronteira com a Espanha, na região da Catalunha (a rota era essencial para outros destinos, como os EUA ou Canadá); foi negado o visto na noite em que ali chegou — dormiria no local até o dia seguinte, quando seria deportado. Sabendo disso, suicidou-se com overdose de remédios. Ironicamente, naquele dia seguinte as fronteiras foram reabertas; seu visto não seria negado. Não se sabe onde foi parar a tal mala, ninguém mais deu conta. Sabe-se apenas que talvez fosse uma obra importante de Benjamin;

8 - Sylvia Plath, Dupla Exposição - Londres, 1963 - suicidou-se aos trinta anos de idade; seu legado artístico ficou com o marido, com o qual já não convivia, mas torna-se herdeiro legal; ficou a cargo dele escolher o que seria publicado, sendo isso feito ao longo dos anos — mas não se sabe por quê a obra em questão jamais foi editada, mesmo incompleta como estava.

 

Comentário.

A despeito dos spoilers que aqui declinei, o livro de van Straten vale ser lido não apenas pelo amor a esse tema, mas como indicativo do arco de vida de um livro. Ou melhor, de alguns deles. Percebe-se aqui que da concepção, redação e, finalmente, edição um livro não está garantido em nenhuma das fases. Um livro pode ser editado e "encalhar". Suas edições podem ser perdidas de várias formas. Straten não cuida de edições perdidas, mas apenas de livros que não chegaram até este ponto, não sendo conhecidos do público, portanto.  O livro é revolucionário devido à sua enorme difusão, a considerarmos sua vida útil a partir da Idade Moderna. Montanhas de livros foram queimadas, proposital ou inadvertidamente. Trata-se de um objeto subversivo, já que desmente mentirosos no poder; mas também foi empregado para mentir (largamente), tal como um conhecido falso chamado Os protocolos dos sábios do Sião. Mas na sua maioria livros trouxeram verdades — ou pelo menos momentos de verdade — porque a aliança com a Universidade, que adotou o livro como suporte por excelência da obra escrita, garantiu a contínua crítica e revisão documental. Há livros cujas edições estão perdidas irremediavelmente, mas que podem ser parcialmente reconstituídas por citações de outros autores — são os famosos "fragmentos" , cujo exemplo maior está nos escritos pré-socráticos. Sim, o tempo é o maior e mais corrosivo inimigo de qualquer monumento, ainda mais escrito. Citação de um autor cuja obra está extinta fisicamente mantém-se de pé apenas pela autoridade daquele que cita. Por isso também é que a Universidade foi importante — soube manter idoneidade da autoridade. E como entramos na era digital, cujo suporte é extremamente fugaz? Esta é história para outro livro.