KAFKA, Franz. Um Artista da Fome/A
Construção. trad. Modesto Carone. São Paulo, Companhia das Letras,
1998, 2007.
Histórias
da fase final de Kafka, publicadas ainda em vida, entre 1922 e 1924, em Berlim.
Segundo Modesto Carone, estas histórias representam o ponto alto da narrativa
kafkiana. Na novela "A Construção" (inacabada) teríamos uma espécie
de ficção autobiográfica. O "Um Artista da Fome" dá nome a uma
reunião de quatro contos, inclusive um de mesmo nome.
1 - Um
Artista da Fome
a)
"Primeira Dor". Trata-se de um trapezista que decide viver, para
sempre, no trapézio:
"...tinha organizado sua vida
de tal maneira, primeiro pelo esforço de perfeição, mais tarde pelo hábito que
se tornou tirânico, que enquanto trabalhava na mesma empresa permanecia dia e
noite no trapézio."(p. 9.).
Um dia, em
viagem a uma outra cidade, momento em que não podia ficar em cima do trapézio -
evidentemente - solicita ao seu empresário que instalasse mais um trapézio.
Assume isso como essencial à sua vida: "Só com esta barra na mão, como é
que posso viver?" (p.12). O empresário tenta consolar o artista, que
chora.
Questões
para pensar: o trapézio tornou-se o único significado na vida daquele artista?
O trapézio "assimilou o artista"? Tornaram-se uma coisa só? Seríamos
prisioneiros de nossos empreendimentos, de nossas tentativas de perfeição? A
infelicidade de nunca alcançar a perfeição.
b)"Uma
mulher pequena". Texto intermediário, segundo Carone, calculado para ficar
entre o anterior e o próximo justamente para que os dois artistas dos contos
não se tocassem. Narrativa em primeira pessoa que discursa sobre uma mulher
pequena - uma ação de divórcio talvez, onde estão presentes sentimentos de
ódio, desconfiança, rancor, sempre na linguagem protocolar kafkiana.
c)"Um
artista da fome". Narrativa em terceira pessoa, bem ao estilo de Kafka.
Trata-se da história de um artista nos tempos em que havia curiosidade sobre os
homens que faziam jejum, como numa espécie de faquir. O artista vivia numa
jaula, onde era observado com curiosidade. Com o tempo, perde-se o interesse
nesse espetáculo e o artista vai para um circo, onde sua jaula compartilha um
espaço em meio a outras feras enjauladas.
"Assim viveu muitos anos, com pequenas
pausas regulares de descanso, num esplendor aparente, respeitado pelo mundo
mas, apesar disso, a maior parte do tempo num estado de humor melancólico, que
se tornava cada vez mais sombrio porque ninguém conseguia levá-lo a
sério."
(p. 29).
O artista
vai "minguando", tentando levar sua arte até o fim, até que um dia o
inspetor manda limpar a jaula, enterrando o artista junto com a palha. Na jaula
colocam uma jovem pantera, que:
"Nada lhe faltava. O alimento de que
gostava, os vigilantes traziam sem pensar muito; nem da liberdade ela parecia
sentir falta: aquele corpo nobre, provido até estourar de tudo o que era
necessário, dava a impressão de carregar consigo a própria liberdade; ela
parecia estar escondida em algum lugar das sua mandíbulas." (p.36).
Ninguém
levava a sério o artista da fome, mas sim com relação à fera. As pessoas
achavam que ele era uma fraude - mas só o artista da fome sabia da fome que
passava, e gostava disso, tinha orgulho disso; mas só ele assim o sabia: que o
que fazia era autêntico.
Questões
para pensar: o espetáculo humano só é admirável enquanto visto no seu aspecto
miserável? O artista era admirado enquanto acreditavam que passava fome; as
feras são admiradas porque são belas e comem bem. Admira-se a
"liberdade" do espírito da fera em sua jaula.
d)"Josefina,
a Cantora - ou O Povo dos Camundongos". Todos admiram o canto de Josefina,
mas não se sabe bem se é um canto mesmo. E também não se sabe se o povo está
entregue a Josefina pelo seu canto ou por ela mesma. O povo segue Josefina por
seu canto ou por ela? Este conto, que assume uma forma textual cíclica, é parecido com a novela "A
Construção", em que também a forma cíclica fica patente. E na verdade
acredito que ambos formam uma composição. Ambos são em primeira pessoa. Segue
um trecho, a fim de dar conta o que afirmamos:
"O que impele o povo a se esforçar
tanto por Josefina? A resposta a esta pergunta não é mais fácil do que a
relativa ao seu canto - com a qual certamente está relacionada. Seria possível
riscá-la e fundi-la com a segunda, se coubesse afirmar, por exemplo, que o povo
está entregue incondicionalmente a Josefina em virtude do canto" (p.43).
"Que Josefina seja poupada de saber
que o fato de a escutarmos é uma prova contra seu canto" (p.47).
"O assobio é a língua do nosso povo,
só que alguns assobiam a vida inteira e não o sabem; aqui porém o assobio está
liberado das cadeias da vida cotidiana e nos liberta também por um curto espaço
de tempo." (p. 51)
"O povo a ouve e segue em frente.
Embora fácil de comover, este povo às vezes não se deixa absolutamente
tocar."
(p.53)
Segundo
Modesto Carone, é lícito imaginar, já que o período assim o permite, que este
conto represente as angústias do escritor com relação a ascensão do nazismo,
assim como o próximo, "A Construção" (p.112, 113).
Reflexões
para o conto de Josefina, a Cantora. Como metáfora para a arte - a utilidade e
a necessidade, ao mesmo tempo inútil e inessencial. Essencial e inecessário:
essencial ao espírito, inecessário à matéria, à reprodução física simplesmente.
Aqui os ratos são uma metáfora, aliás, metáfora da metáfora humana. Quando
Josefina desapareceu, quase todos - ou todos - se esqueceram dela; sua
existência tornou-se apenas uma vaga lembrança - uma pausa, diminuta, na luta
da vida e pela vida. Prova de que seu canto não era essencial, mas muito embora
reivindicado sempre, e sempre que ele faltava, assim era sentido. É a grande
contradição da vida - a oposição entre trabalho e arte, entre o útil e o
agradável, entre o essencial e o supérfluo. Com a morte da cantora, a morte da
arte. Resta apenas o trabalho e a pequenez do indivíduo, diluído na multidão,
um número, uma estatística, um ponto indistinto no gráfico.
2 - A
Construção
Novela
inacabada de Kafka, segundo Modesto Carone, mas pode ser apreciada como uma
obra inteira. Trata-se de um animal, provavelmente uma toupeira, que abre um
buraco e se enterra nele, promovendo a construção de um labirinto. O texto
também é labiríntico, a exemplo de "Josefina", mas aqui fica mais
característico este estilo. O animal faz questão de "mostrar" ao
leitor como está e como foi feita sua obra, que em alguns momentos lhe parece
com o "estado da arte" - como quando nos apresenta a praça do
castelo, onde sente muita segurança. A obra foi construída para lhe dar segurança,
inclusive, mas o tempo todo não consegue sentir-se muito seguro.
"...ela [a construção] está tão segura
quanto algo no mundo pode ser seguro..." (p.63).
"Pois que segurança é essa que observo
aqui? Posso, depois das experiências que realizo aqui fora, avaliar o perigo que
corro dentro da construção?" (p.76).
"E com isso me perco em reflexões
técnicas, começo de novo a sonhar meu sonho de uma construção absolutamente
perfeita, o que me acalma um pouco: de olhos fechados vejo com encanto
possibilidades de construção claras e menos claras para entrar e sair sem ser
notado." (p.81).
O animal
busca a segurança máxima por meio de uma construção sólida. Mas com o decorrer
do tempo, vistoriando sua obra, vê que a coisa não está tão bem assim.
Vislumbra falhas, mas não consegue achar uma solução para elas.
"Se eu tivesse feito a construção
apenas para a segurança da minha vida, na verdade não estaria fraudado, mas a
relação entre o trabalho monstruoso e a garantia efetiva, pelo menos até onde
sou capaz de senti-la e até onde posso me beneficiar dela, não seria para mim
uma relação favorável. " (p. 82).
Ou seja, o
esforço para preservar a vida pode não ser proporcional ao benefício, antes,
desvantajoso, desnecessário e dispendioso. Vale mais a pena lutar corajosamente
que esconder-se? Difícil responder. No entanto, o medo leva a esse esforço
descomunal pela segurança.
"Mas se é assim, porque então hesito,
porque temo o intruso mais que a possibilidade de não rever nunca mais minha
construção?" (p.83).
Segundo
Carone, esta é a grande ficção autobiográfica de Kafka na sua fase terminal. O
autor se vê num labirinto, sem saída segura dele. A morte espreita, daí talvez
a metáfora do animal debaixo da terra. O personagem se enterra num buraco e
vive a ilusão da segurança, pois o inimigo espreita por ali mesmo - é quando o
animal passa a ouvir um zumbido, que não vem de cima, mas de toda a parte. Um
outro animal que vai aparecer de repente é esperado, ansiosa e decisivamente.
Reflexão
final.
Apontadas
as particularidades dos contos por Carone, somadas a algumas indicativas que
aqui esbocei, resta ainda uma final, contemplando toda a obra do autor, mas em
especial "A Construção". Num mundo de alienação, o vencedor individual não se reconhece na sua
vitória, já que se torna escravo dela. Esta conclusão foi retirada da obra de
Sartre, em seu "Questão de Método".
Seu mérito é apontar na direção
de uma espécie de denominador comum de todas as obras de Kafka. De fato, o
animal de "A Construção" sente orgulho de sua obra, considera-a quase
perfeita, mas nunca tem certeza de sua total segurança e é escravo dela. Ao
final, valeu tanto esforço?, pergunta-se e não consegue uma resposta para si
próprio. Não consegue, apesar do esforço, enxergar-se na obra. As reflexões do
animal giram o tempo todo em torno deste tema. A alienação fica manifesta
quando observamos o animal tentando imaginar a em que consiste o perigo lá
fora, mas que num dado momento revela-se que ele pode estar ali dentro mesmo,
oculto todo o tempo, audível apenas por um ruído. O animal fica enredado em seu
labirinto, obra de sua própria verve, à espera de uma batalha mortífera com um
suposto inimigo.