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terça-feira, 13 de março de 2012

O CÍRCULO DOS MENTIROSOS


JEAN-CLAUDE CARRIÈRE
O CÍRCULO DOS MENTIROSOS. Contos Filosóficos do Mundo Inteiro. Ed. Codex.
Crítica do Livro

Reunião de histórias do mundo inteiro, como diz o título. Carrière reúne contos, fábulas, pequenas histórias e até anedotas com "sabor filosófico", isto é, que contenham uma sabedoria, um "sentido oculto". Estas histórias, na maior parte delas, não possuem um significado imediato, por isso são filosóficas. O autor fez questão de selecionar os contos sob este critério, pois:

"A história popular, contada ao pé do ouvido, sem nome de autor, não tem essa ambição a uma solidez." (p.11)

Portanto, as histórias não trazem uma solução para problemas específicos. São abertas, atemporais; e muitas e mesmas histórias perpassam várias culturas, sendo contada de modo ligeiramente diferente e adaptada. Mas a mensagem, ou melhor - o ensinamento, é basicamente o mesmo. Ensinamento, pois, não há uma mensagem explícita: o leitor é convidado a refletir, a procurar significados.
O autor ainda assinala que a reunião não contém histórias míticas. Por falta de espaço e por acomodação do relato - preferiu histórias curtas. Histórias mitológicas, contos de fadas, relatos fantásticos, são geralmente mais longos e mais obscuros. O autor preferiu com um conjunto de fábulas e contos populares curtos.
Também eliminou provérbios, por este apresentarem uma moralidade fácil e explícita. Assim, o livro representa uma criteriosa seleção de histórias que expressam a inquietação, reflexões sobre o tempo, sobre a arte de viver. São histórias sem autoria específica, e no mais das vezes pertencentes a diversas culturas, reaparecendo apenas com uma "roupa diferente". Portanto, não há uma realidade específica. São atemporais e situam-se num espaço vago da imaginação. O autor faz questão de frisar que também baniu toda erudição que pudesse exercer classificação ou catalogação, tirando o sabor da história, evidentemente.
No entanto, o conjunto é reunido sob uma sugestão de reflexão, como podemos observar pelo índice, indicando o teor das histórias. A seguir indico alguns exemplos :

I - O Mundo é o que é
II -O Mundo não é o que é
III- Se tudo talvez não passe de um sonho, que é aquele que dorme?
...
VIII - Um bom mestre pode ser útil ou inútil
...
X - Dá para ver que são muitas as armadilhas deixadas  no caminho da lógica
XI - A justiça é nossa invenção hesitante
...
XV - Rir talvez seja um fim em si mesmo
...
XVII - O tempo é nosso senhor: podemos brincar com o nosso senhor?
XVIII - Se nada pode ser separado, o além estaria em nós mesmos?
XIX - A verdade, e daí?
...

Eu destacaria, no geral, os contos de filosofia Zen. São os que mais obedecem - no meu entendimento - ao critério do autor: são abertos, de significado amplo. São histórias que ajudam a viver, isto é, contribuem para a vida no mundo. Muitas delas também no sentido de ajudar a morrer - isto é, aceitar a morte. A maior parte delas são divertidas, pois:

"Aquele que ri aceita com mais facilidade o inaceitável e mesmo algo de insolente e obscuro." (p.16)

O leitor poderá encontrar um personagem que atravessa muitas e muitas histórias: Nasreddin Hodja. Vem do Oriente Médio, mas suas histórias são contadas por toda a parte, inclusive na tradição judaica.

Mas há de tudo um pouco. Até mesmo reflexões sobre o uso de nossa linguagem, que nos induzem a armadilhas e contradições.

Enfim, são histórias de Luz, apesar do formato metafórico e muitas vezes alegórico. São histórias saborosas, antiquíssimas, que:

"...permanece em nós todos os dias e nos leva a agir." (p.16).

Ao final do livro há uma indicação bibliográfica, mas como diz o autor, são apenas algumas pistas para uma "bibliografia impossível". "Mil e uma Noites" está indicado, além de uma vasta bibliografia em língua francesa, nacionalidade do autor.
Por fim, justifica que não transcreveu literalmente nenhum relato, pois:

"O guarda-chuva é seu, mas a chuva é de todo mundo." (p.419)

Jean-Claude Carrière trabalhou como roteirista de Luís Buñuel, além de dramaturgo e romancista.

Quando a fome vira espetáculo. Observações sobre o tema em Kafka.


KAFKA, Franz. Um Artista da Fome/A Construção. trad. Modesto Carone. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, 2007.

Histórias da fase final de Kafka, publicadas ainda em vida, entre 1922 e 1924, em Berlim. Segundo Modesto Carone, estas histórias representam o ponto alto da narrativa kafkiana. Na novela "A Construção" (inacabada) teríamos uma espécie de ficção autobiográfica. O "Um Artista da Fome" dá nome a uma reunião de quatro contos, inclusive um de mesmo nome.


1 - Um Artista da Fome

a) "Primeira Dor". Trata-se de um trapezista que decide viver, para sempre, no trapézio:
"...tinha organizado sua vida de tal maneira, primeiro pelo esforço de perfeição, mais tarde pelo hábito que se tornou tirânico, que enquanto trabalhava na mesma empresa permanecia dia e noite no trapézio."(p. 9.).
Um dia, em viagem a uma outra cidade, momento em que não podia ficar em cima do trapézio - evidentemente - solicita ao seu empresário que instalasse mais um trapézio. Assume isso como essencial à sua vida: "Só com esta barra na mão, como é que posso viver?" (p.12). O empresário tenta consolar o artista, que chora.
Questões para pensar: o trapézio tornou-se o único significado na vida daquele artista? O trapézio "assimilou o artista"? Tornaram-se uma coisa só? Seríamos prisioneiros de nossos empreendimentos, de nossas tentativas de perfeição? A infelicidade de nunca alcançar a perfeição.

b)"Uma mulher pequena". Texto intermediário, segundo Carone, calculado para ficar entre o anterior e o próximo justamente para que os dois artistas dos contos não se tocassem. Narrativa em primeira pessoa que discursa sobre uma mulher pequena - uma ação de divórcio talvez, onde estão presentes sentimentos de ódio, desconfiança, rancor, sempre na linguagem protocolar kafkiana.

c)"Um artista da fome". Narrativa em terceira pessoa, bem ao estilo de Kafka. Trata-se da história de um artista nos tempos em que havia curiosidade sobre os homens que faziam jejum, como numa espécie de faquir. O artista vivia numa jaula, onde era observado com curiosidade. Com o tempo, perde-se o interesse nesse espetáculo e o artista vai para um circo, onde sua jaula compartilha um espaço em meio a outras feras enjauladas.

"Assim viveu muitos anos, com pequenas pausas regulares de descanso, num esplendor aparente, respeitado pelo mundo mas, apesar disso, a maior parte do tempo num estado de humor melancólico, que se tornava cada vez mais sombrio porque ninguém conseguia levá-lo a sério." (p. 29).

O artista vai "minguando", tentando levar sua arte até o fim, até que um dia o inspetor manda limpar a jaula, enterrando o artista junto com a palha. Na jaula colocam uma jovem pantera, que:

"Nada lhe faltava. O alimento de que gostava, os vigilantes traziam sem pensar muito; nem da liberdade ela parecia sentir falta: aquele corpo nobre, provido até estourar de tudo o que era necessário, dava a impressão de carregar consigo a própria liberdade; ela parecia estar escondida em algum lugar das sua mandíbulas." (p.36).

Ninguém levava a sério o artista da fome, mas sim com relação à fera. As pessoas achavam que ele era uma fraude - mas só o artista da fome sabia da fome que passava, e gostava disso, tinha orgulho disso; mas só ele assim o sabia: que o que fazia era autêntico.
Questões para pensar: o espetáculo humano só é admirável enquanto visto no seu aspecto miserável? O artista era admirado enquanto acreditavam que passava fome; as feras são admiradas porque são belas e comem bem. Admira-se a "liberdade" do espírito da fera em sua jaula.

d)"Josefina, a Cantora - ou O Povo dos Camundongos". Todos admiram o canto de Josefina, mas não se sabe bem se é um canto mesmo. E também não se sabe se o povo está entregue a Josefina pelo seu canto ou por ela mesma. O povo segue Josefina por seu canto ou por ela? Este conto, que assume uma forma textual cíclica,  é parecido com a novela "A Construção", em que também a forma cíclica fica patente. E na verdade acredito que ambos formam uma composição. Ambos são em primeira pessoa. Segue um trecho, a fim de dar conta o que afirmamos:

"O que impele o povo a se esforçar tanto por Josefina? A resposta a esta pergunta não é mais fácil do que a relativa ao seu canto - com a qual certamente está relacionada. Seria possível riscá-la e fundi-la com a segunda, se coubesse afirmar, por exemplo, que o povo está entregue incondicionalmente a Josefina em virtude do canto" (p.43).
"Que Josefina seja poupada de saber que o fato de a escutarmos é uma prova contra seu canto" (p.47).
"O assobio é a língua do nosso povo, só que alguns assobiam a vida inteira e não o sabem; aqui porém o assobio está liberado das cadeias da vida cotidiana e nos liberta também por um curto espaço de tempo." (p. 51)
"O povo a ouve e segue em frente. Embora fácil de comover, este povo às vezes não se deixa absolutamente tocar." (p.53)

Segundo Modesto Carone, é lícito imaginar, já que o período assim o permite, que este conto represente as angústias do escritor com relação a ascensão do nazismo, assim como o próximo, "A Construção" (p.112, 113).
Reflexões para o conto de Josefina, a Cantora. Como metáfora para a arte - a utilidade e a necessidade, ao mesmo tempo inútil e inessencial. Essencial e inecessário: essencial ao espírito, inecessário à matéria, à reprodução física simplesmente. Aqui os ratos são uma metáfora, aliás, metáfora da metáfora humana. Quando Josefina desapareceu, quase todos - ou todos - se esqueceram dela; sua existência tornou-se apenas uma vaga lembrança - uma pausa, diminuta, na luta da vida e pela vida. Prova de que seu canto não era essencial, mas muito embora reivindicado sempre, e sempre que ele faltava, assim era sentido. É a grande contradição da vida - a oposição entre trabalho e arte, entre o útil e o agradável, entre o essencial e o supérfluo. Com a morte da cantora, a morte da arte. Resta apenas o trabalho e a pequenez do indivíduo, diluído na multidão, um número, uma estatística, um ponto indistinto no gráfico.


2 - A Construção

Novela inacabada de Kafka, segundo Modesto Carone, mas pode ser apreciada como uma obra inteira. Trata-se de um animal, provavelmente uma toupeira, que abre um buraco e se enterra nele, promovendo a construção de um labirinto. O texto também é labiríntico, a exemplo de "Josefina", mas aqui fica mais característico este estilo. O animal faz questão de "mostrar" ao leitor como está e como foi feita sua obra, que em alguns momentos lhe parece com o "estado da arte" - como quando nos apresenta a praça do castelo, onde sente muita segurança. A obra foi construída para lhe dar segurança, inclusive, mas o tempo todo não consegue sentir-se muito seguro.

"...ela [a construção] está tão segura quanto algo no mundo pode ser seguro..." (p.63).
"Pois que segurança é essa que observo aqui? Posso, depois das experiências que realizo aqui fora, avaliar o perigo que corro dentro da construção?" (p.76).
"E com isso me perco em reflexões técnicas, começo de novo a sonhar meu sonho de uma construção absolutamente perfeita, o que me acalma um pouco: de olhos fechados vejo com encanto possibilidades de construção claras e menos claras para entrar e sair sem ser notado." (p.81).

O animal busca a segurança máxima por meio de uma construção sólida. Mas com o decorrer do tempo, vistoriando sua obra, vê que a coisa não está tão bem assim. Vislumbra falhas, mas não consegue achar uma solução para elas.

"Se eu tivesse feito a construção apenas para a segurança da minha vida, na verdade não estaria fraudado, mas a relação entre o trabalho monstruoso e a garantia efetiva, pelo menos até onde sou capaz de senti-la e até onde posso me beneficiar dela, não seria para mim uma relação favorável. " (p. 82).

Ou seja, o esforço para preservar a vida pode não ser proporcional ao benefício, antes, desvantajoso, desnecessário e dispendioso. Vale mais a pena lutar corajosamente que esconder-se? Difícil responder. No entanto, o medo leva a esse esforço descomunal pela segurança.

"Mas se é assim, porque então hesito, porque temo o intruso mais que a possibilidade de não rever nunca mais minha construção?" (p.83).

Segundo Carone, esta é a grande ficção autobiográfica de Kafka na sua fase terminal. O autor se vê num labirinto, sem saída segura dele. A morte espreita, daí talvez a metáfora do animal debaixo da terra. O personagem se enterra num buraco e vive a ilusão da segurança, pois o inimigo espreita por ali mesmo - é quando o animal passa a ouvir um zumbido, que não vem de cima, mas de toda a parte. Um outro animal que vai aparecer de repente é esperado, ansiosa e decisivamente.




Reflexão final.
Apontadas as particularidades dos contos por Carone, somadas a algumas indicativas que aqui esbocei, resta ainda uma final, contemplando toda a obra do autor, mas em especial "A Construção". Num mundo de alienação,  o vencedor individual não se reconhece na sua vitória, já que se torna escravo dela. Esta conclusão foi retirada da obra de Sartre, em seu "Questão de Método".  Seu mérito é apontar  na direção de uma espécie de denominador comum de todas as obras de Kafka. De fato, o animal de "A Construção" sente orgulho de sua obra, considera-a quase perfeita, mas nunca tem certeza de sua total segurança e é escravo dela. Ao final, valeu tanto esforço?, pergunta-se e não consegue uma resposta para si próprio. Não consegue, apesar do esforço, enxergar-se na obra. As reflexões do animal giram o tempo todo em torno deste tema. A alienação fica manifesta quando observamos o animal tentando imaginar a em que consiste o perigo lá fora, mas que num dado momento revela-se que ele pode estar ali dentro mesmo, oculto todo o tempo, audível apenas por um ruído. O animal fica enredado em seu labirinto, obra de sua própria verve, à espera de uma batalha mortífera com um suposto inimigo.