Um livro "socrático": recomendo a todos. Além de divertido -- mesmo considerando as piadinhas como de época -- é bastante reflexivo. Pensa um Brasil que ainda está aí.
Millôr inicia este
livro com a seguinte crônica: "Notas de um ignorante". A pergunta
básica, ou melhor o questionamento fundamental, que inclusive permeia todo o
texto, é "que fiz eu de minha vida?" Há um toque bastante irônico do
autor nesta espécie de miniautobiografia. Parece que todos foram melhores em
alguma coisa com relação ao humorista:
"Quem está a meu lado sempre leu mais livros do
que eu, conhece mais política do que eu, já teve mais casos sentimentais do que
eu, estudou mais do que eu, praticou e pratica mais esportes."
(p.11)
Ou será que todos
quiseram, de alguma forma, fazer-se prevalecer, contar vantagem, aparentar o
que não é e que sabe alguma coisa? O humorista foi apenas ele, sem mais nem
menos; daí a posição privilegiada para fazer humor: não é melhor que ninguém,
não sabe tudo e não faz qualquer coisa melhor que ninguém - mas ao menos ele
sabe disso.
Há um
"sabor" socrático nesse questionamento. Será mesmo que todos são
assim tão melhores em tudo que o nosso autor? De qualquer forma, essa crônica
parece ser mesmo uma "introdução socrática", do tipo "sei que
nada sei", para ficar numa definição de senso comum. Assim, uma introdução
para o mais do livro, que questiona praticamente tudo de nossa vida nacional.
Ninguém escapa: de jornalistas a advogados, da cultura à ciência.
Crônicas em
destaque:
"O banheiro". Demonstra que esse é
último refúgio da vida privada (!) de um homem.
"Genealogia e Biografia do Rico". Faz
humor com a ideia de que os ricos se consideram os melhores, descendentes das
melhores linhagens e de "gente boa", distintos, "os mais
iguais", os fundadores, os criadores, etc., etc.. Fica a pergunta: não
passa tudo isso de um mito? Um mito originário, que se faz repetir nas eternas
recitações dos ricos.
"Do dinheiro". Destaco um trecho: "O dinheiro é um mito de tal forma acreditado
que se transformou numa super-realidade, uma senha para o respeito
alheio..." (p.49).
"Notas sobre a arte de entrevistar".
Texto meta-jornalístico, onde seria melhor colocado o título: como não fazer
uma entrevista, mas que todo jornalista assim o faz. Ou: como ser um cínico
jornalista.
"Brasil, país comunista". Em dez
lições. Uma brincadeira linguística de Millôr, numa época em o comunismo era
"demonizado" pela cultura geral.
"A máquina da justiça e suas peças
principais." O juiz, o júri, o promotor, o advogado, a vítima, e
outros, estão descritos e definidos aqui por Millôr.
"O Brasil (Descrição física e política)".
Talvez a melhor crônica do livro. Uma visão bastante irônica numa época que
caminhava para o ufanismo nacionalista, expresso na frase "país do
futuro".
"Desculpe, mas Picasso...-Não tem de quê, porém
Steinberg...". Um exemplo, para o autor, de uma boa entrevista.
Enfim, "Lições
de um ignorante" dá lições de como não aparentar conhecer, mas apenas
reconhecer que não sabe, num período que todo mundo achava que sabia tudo. Será que
isso mudou? Quem pode realmente afirmar com segurança que sabe alguma coisa
sobre algum assunto? Muitas vezes não queremos aparentar que sabemos algo sobre
alguma coisa - mas que no fundo não o sabemos? Não teríamos muito que aprender
mesmo sobre aquilo que pensamos saber bem?
Reprodução da
Crônica:
"O
Brasil (Descrição física e política)" (p. 99)
O Brasil é um país
maior do que os menores e menor do que os maiores. É um país grande
porque, medida sua extensão, verifica-se que não é pequeno. Divide-se em
três zonas climáticas absolutamente distintas: a primeira, a segunda e a
terceira, sendo que a segunda fica entre a primeira e a terceira. As montanhas
são consideravelmente mais altas que as planícies, estando sempre acima do
nível do mar. Há muitas diferenças entre as várias regiões geográficas do país,
mas a mais importante é a principal. Na agricultura faz-se exclusivamente o
cultivo de produtos vegetais, enquanto a pecuária especializou-se na criação de
gado. A população é toda baseada no elemento humano, sendo que as pessoas não
nascidas no país são, sem exceção, estrangeiras. Na indústria fabricam-se
produtos industriais, sobretudo iguais e semelhantes, sem deixar-se de lado os
diferentes. No campo da exploração dos minérios, o país tem uma posição só
inferior aos que lhe estão acima, sendo, porém, muito maior produtor do que
todos os países que não atingiram o seu nível. Pode-se dizer que, excetuando
seus concorrentes, é o único produtor de minérios no mundo inteiro. Tão
privilegiada é hoje a situação do país, que os cientistas procuram apenas
descobrir o que não está descoberto, deixando para a indústria tudo que já foi
aprovado como industrializável, e para o comércio tudo o que é vendável. Na
arte também não há ciência, reservando-se esta atividade exclusivamente para os
artistas. Quanto aos escritores, são recrutados geralmente entre os
intelectuais. É, enfim, o país do futuro, sendo que este se aproxima a cada dia
que passa.