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sábado, 12 de novembro de 2022

Custo Bras(z)il. Parte II.


Vimos em artigo meu anterior que aqueles que acusam o país (ou o Governo) de possuir um "elevado custo" para investimentos justificam suas asserções pela suposta alta carga tributária e alto custo do trabalho. Mas percorrendo alguns gráficos, abaixo, verificamos que o Brasil não está entre as cargas de impostos mais elevadas, nem entre os maiores salários do mundo. Por outro lado, o PIB já esteve entre os 10 maiores. Portanto, não seria por falta de riqueza ou devido à carga tributária a justificar os baixos salários.

 


Comparemos dois gráficos, a seguir.

 

1.




2.



A carga tributária brasileira que incide sobre Bens e Serviços está entre as quatro maiores, considerando a média da OCDE; enquanto que  os tributos que incidem sobre a folha de pagamentos (a parte que os patrões deveriam pagar) está abaixo dessa média. Então este problema está descartado para os empregadores. Ou para boa parte deles, pois talvez o problema esteja na assimetria da carga tributária.

Bem, então quem “sustenta o governo" (o Estado, na verdade)?  Vejamos a tabela a seguir exposta no gráfico 3.

 

3.



 

Observe-se, pelo Gráfico 3 acima, que Renda e Folha de Salários, bem como Bens e Serviços são as maiores contribuições. Ou seja: a arrecadação maior incide sobre quem paga e quem recebe salários; e sobre quem compra as coisas -- bens de consumo e serviços. Um mísero sem teto, ao se alimentar com um café e pão com manteiga, paga imposto! Propriedade (riqueza) e transações financeiras (em especial as especulativas) contribuem com menos, muito menos, para sustentar o Estado, que deveria devolver, na aplicação do orçamento, em serviços públicos tais como saúde (no atendimento universal de qualidade) e educação (idem, mas no intuito de desenvolver os potenciais individuais e as habilidades inatas de cada um). Também teria que devolver em segurança -- mas mesmo esta, a despeito dos altos dispêndios, não está garantida aos de classe e renda mais baixa. Pelo contrário, o investimento em área de segurança reflete apenas em mais insegurança a estas camadas “inferiores”. Mas isso é outra história: o outro lado da execução do orçamento. As grandes empresas, inclusive bancos, escapam mais facilmente aos tributos do que as pequenas empresas; e se evadem de todas as formas (quando não . Portanto, quem sustenta o país são trabalhadores e empregadores de empresas médias para baixo. Em resumo, pagam a conta: capital produtivo e o trabalho. Pequenos produtores, sejam industriais ou rurais, são obrigados a entregar sua produção ao amplo mercado, praticamente dominado por grandes varejistas, bem como os produtores de commodities vendem sua produção a grandes grupos financeiro-exportadores [1]. Não estamos falando ainda em custo de infraestrutura. Este é outro grande "gargalo", como se antes se dizia,  que impede o setor produtivo de se desenvolver e ampliar sua oferta. Não é o único problema, evidente, pois ainda encontramos pela frente o alto custo do crédito, resultante do monopólio financeiro que enfrentamos por aqui.

Some-se tudo isso (e algo mais) e teremos o verdadeiro Custo Brazil. Com Z. Assim mesmo.

 

Vejamos outros dados. O Brasil é 30º colocado em termos de salário mínimo [2], abaixo de Costa Rica, Chile e Colômbia! Em termos de média de salários não melhoramos. Ficamos muito abaixo de países desenvolvidos e até mesmo bem subdesenvolvidos [3], tipo Botsuana, Malásia, Belarus, Romênia, Bahrein, Panamá e Ilhas Maurício... Alguns economistas destacam, considerando a macroeconomia, a “armadilha da renda média”:

 

A “armadilha da renda média” refere-se às dificuldades enfrentadas pelos países que atingiram um certo nível de desenvolvimento e renda ao fazer a transição estrutural para uma economia que pode aumentar a renda nacional de forma sustentável. [4]

 

A renda média fica estagnada num patamar e não há meio de avançar, é isso. Em outras palavras, o país não encontra meios de desenvolver, economicamente, e a renda média não aumenta em razão disso. E os fatores que implicam essa estagnação não estão nas alegações clássicas e neoliberais de que os impostos são elevados e os salários são altos e/ou a folha de pagamento tem um alto custo:

 

...políticas de longo prazo para promover o crescimento do emprego e da renda, combinadas com políticas industriais, científicas e tecnológicas, são importantes para cruzar a “armadilha da renda média” e alcançar o desenvolvimento sustentável. [idem]

 

E nem estamos falando ainda sobre distribuição de renda e riqueza, que poderia provocar impacto positivo sobre o investimento...

 

Portanto, antes da reclamação da quantidade ou volume dos impostos, reflita bem sobre os gráficos e a tabela acima, comparando e medindo com nossa posição no mundo em termos salariais -- e refaça a pergunta: quem são os que não pagam imposto? Ou: quem é que afinal paga imposto demais?

 

 

Fontes:

[1] DOWBOR, Ladislau. A Era do Capital Improdutivo. São Paulo: Autonomia Literaria, 2017.

[2] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/10/salario-minimo-no-brasil-e-o-segundo-menor-entre-31-paises-mostra-ocde.shtml#:~:text=Segundo%20o%20ranking%2C%20o%20Brasil,com%20US%24%2012%2C2.

[3] https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/03/120329_salario_include_jp

[4] https://monitormercantil.com.br/como-atravessar-a-armadilha-da-renda-media/

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Custo Bras(z)il - Parte I


Fala-se muito em "Custo Brasil". Uma definição que não é econômica, visto que pouco demonstrável.  Dimensionar o custo para abrir ou fechar empresas não pertence à ciência econômica — nem à economia política, nem à macroeconomia. Desconheço os meandros da microeconomia, mas a isso também não pertence, por exclusão. O que importa aqui para nós é desconstruir esse termo, muito mais um sintagma ideológico (no puro sentido) que um conceito ou definição. Trata-se de uma construção semiótica, uma manipulação simbólica dos dois termos que, unidos e apropriadamente empregados pela imprensa, vendem uma ideia totalmente invertida da triste realidade brasileira — a dos pobres, claro. E esse "marketing" é um sucesso em termos de efetividade comunicacional e sociológica, dado que afeta os comportamentos individuais em massa, tornando as ações do coletivo uma reação contra si mesmo a ponto de ajudar alcançar as metas que se escondem aí — que são aquelas ditas por todo o lado: Estado mínimo, etc.

Nosso objetivo aqui não é fazer demonstrações exaustivas de economia, mas apontar para a contradição — em cada ponto — e desconstruir o sintagma e expor a manipulação, num sentido amplo.

 

Vamos ver como isso se apresenta.

 

Segundo o Portal da Indústria:

 

"Custo Brasil é a expressão usada para se referir a um conjunto de dificuldades estruturais, burocráticas, trabalhistas e econômicas que atrapalham o crescimento do país, influenciam negativamente o ambiente de negócios, encarecem os preços dos produtos nacionais e custos de logística, comprometem investimentos e contribuem para uma excessiva carga tributária. A estimativa é que o Custo Brasil retire R$ 1,5 trilhão por ano das empresas instaladas no país, representando 20,5% do Produto Interno Bruto (PIB). "

 

Prestem atenção à definição: "conjunto de dificuldades estruturais, burocráticas, trabalhistas e econômicas...". Quer dizer, é o país inteiro errado, já que as dificuldades vão desde a estrutura até a economia! Isso é amplamente repercutido nos órgãos de  Imprensa, por meio de jornalistas, colunista e agora... influencers!

 

"Estima-se" que "o Custo Brasil retire R$ 1,5 trilhão por ano das empresas instaladas no país...". Pergunta-se: em que base é realizado esse cálculo? Isso é algo obscuro. Mas eles indicam o seguinte [1]:

 

1. Sistema tributário complexo e com carga elevada

2. Custo do capital elevado

3. Legislação trabalhista

4. Educação de baixa qualidade

5. Infraestrutura inadequada (transporte, energia, saneamento, telecomunicações)

6. Insegurança jurídica e burocracia excessiva (em diversas áreas: relações de trabalho, meio ambiente, tributos, regulação econômica, comércio exterior)

7. Ineficiência do Estado

8. Saúde e segurança pública de baixa qualidade

9. Desequilíbrio fiscal

 

Pergunta-se de novo: o critério adotado para cada uma dessas coisas é algo assente, pacífico? Provável? Item por item, pode-se demonstrar, são todos muito discutíveis. Mas estes pontos tornam-se assentes, ou aceitáveis, por uma operação comunicacional muito bem sucedida.

 

Nossa carga tributária é elevada?

Porém estamos atrás de muitos outros países... mais ou menos desenvolvidos. O economista Victor Young [2] escreve em seu site:

 

"A Alemanha e a Itália, que também têm economias maiores do que a do Brasil, registram cargas tributárias de 38,2% e 42,1% respectivamente. Neste conjunto, apenas 9 países tem uma carga tributária menor do que 33%."

 

A do Brasil é de 33,1 [Gráfico 1, site Unicamp]. E quanto ao "complexo sistema tributário" jaz aqui uma bravata, pois qualquer empresa, mesmo a mais simples, pode ter um consultor, contabilista ou advogado tributário, a fim de cuidar do recolhimento dos impostos. Fiquemos por aqui, por enquanto.

 

Mas antes de finalizar o assunto e ficar por aqui, vamos nos introduzir ao estudo de um verdadeiro (!) "Custo Brasil". Ou "Custo Brazil", melhor dizendo. Vamos a ele.

 

Segundo o site do economista Ladislaw Dawborg [3]:

 

"O Economist de 13 de dezembro de 2018, na reportagem “Jair Bolsonaro must tackle Brazil´s soaring pensions spending” apresenta o nosso novo ministro da Economia: “Paulo Guedes, who studied at the University of Chicago and co-founded BTG Pactual, Brazil’s foremost home-grown investment bank”. Portanto, universidade de Chicago, onde se formaram os chamados “Chicago boys” que apoiaram ditaduras e desastres sociais por onde passaram. E no Brasil, co-fundador do Banco BTG Pactual."

(...)

"O que o Pactual faz mesmo é wealth management, ou seja, gestão de fortunas, trabalhando com o que se chama internacionalmente High Net Wealth Individuals, ajudando os muito ricos a ganhar mais dinheiro com dinheiro. E assegura também a intermediação financeira para empresas que buscam “otimizar” os seus fluxos financeiros, na linha do asset management. No conjunto, trata-se de otimizar os ganhos financeiros dos mais ricos. Não se trata, evidentemente, de desenvolver atividades produtivas, pelo contrário, trata-se de drená-las."

(...)

"É útil lembrar que segundo o Tax Justice Network de Londres, em 2012, o Brasil tinha 519,5 bilhões de dólares em paraísos fiscais, equivalentes a cerca de dois trilhões de reais, um estoque que representa, como ponto de referência, quase um terço do PIB do país"

 

Pergunta-se: como afirmar que temos um "custo elevado do capital" com uma evasão de divisas dessa monta? Já não seria um capital formado ou excedente? Se sim, como saberemos qual o seu custo? Então: o cálculo em 1) e em 2) estão "furados". Estes capitais seriam importantes para realizar inversões diretas na economia, ainda mais em uma potencialmente promissora, como é a do Brasil, com toda certeza. Aposto nisso, pois temos o mais importante: uma mão-de-obra muito poderosa e um povo trabalhador e criativo. Esse é o segredo de qualquer riqueza de um país.

 

Quem paga por essa evasão? Esse dinheiro não foi tirado do nada. É um capital que foi gerado aqui e foi para fora. Se toda riqueza vem do trabalho, como afirmava o grande Adam Smith, então esse dinheiro é fruto de sangue e suor. Ou seja, muita exploração da classe que trabalha ou que trabalhou para gerar essa riqueza que vai embora. Ainda que seja oriunda da especulação financeira. 

 

Então retomemos: o custo Brasil retira 1,5 trilhão das empresas, como afirma o site do portal da indústria? Ou será que esse valor é justamente o montante que é evadido do país? Onde está o custo? no Brasil ou no Brazil? Muitos economistas afirmam que essa riqueza vai embora justamente devido à carga tributária alta. Mas já apontamos para o Gráfico 1, que demonstra que a história não é bem essa. Então, em breves linhas, fica demonstrado que nem a carga tributária, nem o custo do capital são elevados. Pelo contrário, ele é exportado justamente porque facilmente obtido.

 

E segue o fato que o país — bem como quem trabalha, de verdade  — empobrece, dado que a sonegação de imposto influi na baixa arrecadação fiscal. Esse dinheiro é exportado por meio de sistemas facilitados aos exploradores (podem chamar de investidores... ou até de um nome mais apropriado para quem se vale do resultado alheio...), tais como as contas CC5, que permitem o envio de dinheiro por meio de "empresas" off shore [4], criado nos anos 1990, durante o avanço neoliberal aqui no Brasil (e que continua). De fato, esse dinheiro não paga (ou não pagava) imposto nenhum. Já é um mecanismo conhecido por aqui. Não damos conta de outros, ante a complexidade do fluxo internacional de dinheiro. 

 

 

 

Fontes:

[1] https://www.portaldaindustria.com.br/industria-de-a-z/o-que-e-custo-brasil/#:~:text=Custo%20Brasil%20%C3%A9%20a%20express%C3%A3o,de%20log%C3%ADstica%2C%20comprometem%20investimentos%20e

 

[2] https://www.blogs.unicamp.br/sobreeconomia/2022/05/02/o-brasil-tem-a-maior-carga-tributaria-do-mundo/#:~:text=A%20Alemanha%20e%20a%20It%C3%A1lia,tribut%C3%A1ria%20menor%20do%20que%2033%25.

 

[3] https://dowbor.org/2019/04/l-dowbor-de-onde-vem-o-nosso-super-ministro-da-economia-6p.html

 

[4] https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&id=2127:catid=28&Itemid=23#:~:text=S%C3%A3o%20contas%20especiais%2C%20mantidas%20no,o%20dinheiro%20em%20moeda%20estrangeira.

 

Outras fontes:

Dicionário da Comunicação; 2ª edição, revista e ampliada/Ciro Marcondes Filho (org.)/São Paulo: Paulus, 2009. [especialmente para este artigo o verbete “manipulação”, por Josimey Costa]


Gráficos:

1 - (site da Unicamp):

 



 

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Moby Dick. O destino dentro da baleia.

Leitura realizada em Janeiro de 2009
 MELVILLE, Herman. Moby Dick ou A baleia. Trad. Irene Hirsh e Alexandre Barbosa de Souza. São Paulo: Cosac Naify, 2018 (1851).

Edição excelente da Cosac Naify, com mapas, ilustrações, vocabulário náutico, excertos ligados ao tema, bibliografia e uma fortuna crítica. Leitura agradável pelo uso das fontes Swift e Gothan de bom tamanho.

 

Narrado em primeira pessoa, digressiva e reflexiva,  com muitas passagens em tom bíblico. O tema principal parece ser a vingança, pois o capitão Ahab, que comanda um navio baleeiro, da cidade de New Bedford, está convicto de caçar uma velha baleia, aliás, um cachalote, cujo apelido é Moby Dick. Trata-se de um desafeto antigo: esta baleia teria sido o motivo de sua perna de pau -- quer dizer, a perda de um membro inferior, além de uma sinistra cicatriz no rosto. Vai ao mar para vingar-se.

Mas o tema também é a temperança. Ishmael, um professor no campo, vai ao mar por vontade de ver as águas. Evidentemente para pensar o mundo:

 

"Se o mais distraído dos homens estiver mergulhado em seus sonhos mais profundos – coloque esse homem de pé, ponha-o para andar, e não tenha dúvida de que ele o levará até a água, se houver água em toda essa região. Se você mesmo estiver com sede no imenso deserto norte-americano, faça a experiência, caso encontre em sua caravana um professor de metafísica. Pois, como todos sabem, a meditação e a água estão casadas para todo o sempre." (p.28)

 

Mas também é uma história sobre a amizade. O amor que surge dela. Isso fica claro na relação de Ishmael com Queequeg, um indígena:

 

"Veja como, embora eu tivesse sentido repugnância por ele fumar na cama na noite anterior, nossos rígidos preconceitos se tornam elásticos quando o amor vem dobrá-los. Pois agora não havia nada que me agradasse mais do que Queequeg fumando ao meu lado, até na cama, porque ele o fazia pleno de uma serena alegria doméstica. Não me sentia mais indevidamente preocupado com a apólice de seguro do proprietário. Sentia apenas alegria com o conforto condensado e confidencial de dividir um cachimbo e um cobertor com um amigo de verdade." (p.75)

 

Uma admiração que foi aparecendo já antes e que se confunde com a alteridade:

 

"digam o que quiserem, mas a verdade é que os selvagens têm um senso inato de delicadeza; é maravilhoso como são polidos nas coisas essenciais." (p.50)

 

O tema da vingança aparece em várias passagens. Mas fica explícita no capítulo 36:

 

“Capitão Ahab”, disse Starbuck, que junto com Stubb e Flask observava seu superior com uma curiosidade crescente, mas foi tomado por um pensamento que de certo modo explicava a perplexidade. “Capitão Ahab, já ouvi falar de Moby Dick – mas não foi Moby Dick que te arrancou a perna?”

(...)

“isso, isso! Foi essa maldita baleia branca que me reduziu a uma carcaça; que fez de mim um marinheiro aleijado e sem jeito para todo o sempre!” Depois, lançando os braços para o alto, com desmedidas imprecações, gritou: “Isso, isso! E vou persegui-la na Boa Esperança, no Horn, no maelstrom da Noruega e nas chamas do inferno antes de desistir. Foi para isso que embarcastes, marinheiros! Para perseguir essa baleia branca nos dois lados da terra, e por todos os lados do globo, até que ela solte um jato de sangue preto e bóie com as barbatanas para cima. (p.182)

 

Ahab encontra a baleia, pela segunda vez. São as cenas finais, onde a tragédia vai se iniciar e encerrar:

 

“Lá ela salta! Lá ela salta!”, foi o grito quando, em suas incomensuráveis bravatas, a Baleia Branca lançou-se ao Céu como um salmão. Vista assim tão de repente, no puro azul do mar, e realçada pela orla ainda mais azul do firmamento, a surriada que a baleia ergueu, naquele momento, brilhou e resplandeceu insuportavelmente como uma geleira; e lá ficou aos poucos se desfazendo da primeira fulgurante intensidade, chegando à fosca nebulosidade de uma chuva que avança sobre o vale.

“Sim, dá o teu último salto até o sol, Moby Dick!”, gritou Ahab. “Tua hora e teu arpão estão próximos! – Todos para baixo e fica só um homem à proa. Os botes! – Todos a postos!” (p.577)

 

[Spoiler do final à frente]

 

A grande baleia branca, o paredão branco, investe contra o navio Pequod. Este começa a afundar. O capitão Ahab começa a refletir que o navio se torna um grande carro fúnebre. Num bote, vai atrás de Moby Dick:

 

O arpão foi arremessado; a baleia atingida avançou; com uma rapidez inflamada, a linha correu pela ranhura – emaranhou-se. Ahab curvou-se para soltá-la; e soltou-a; mas a volta volante apanhou-o pelo pescoço e em silêncio, como os Turcos mudos estrangulam suas vítimas, foi atirado para fora do bote, antes que a tripulação percebesse que havia morrido. No instante seguinte, o pesado nó corredio da ponta final da linha voou da selha vazia, derrubou um remador e, batendo no mar, desapareceu nas profundezas.

 

Por um instante a tripulação do bote permaneceu imóvel, em transe; depois caiu em si. “O navio? Grande Deus, onde está o navio?” Logo, através da atmosfera fosca e confusa, viram seu fantasma desvanecer-se, como nas brumas da Fata Morgana; apenas a parte superior dos mastros fora da água; enquanto, presos por encantamento, ou fidelidade, ou destino aos seus poleiros outrora elevados, os arpoadores pagãos mantinham sua vigilância náufraga sobre o oceano. E então círculos concêntricos envolveram o bote solitário e toda a sua tripulação e cada remo flutuante e cada haste de lança e, levando a girar as coisas vivas e as inanimadas em volta de um único vórtice, fizeram desaparecer até a menor lasca do Pequod.

 

Mas – enquanto os últimos turbilhões se derramavam misturados sobre a cabeça submersa do Índio no topo do mastro, deixando ainda visíveis algumas polegadas do mastaréu ereto, junto com as longas jardas da bandeira, que ondulava calmamente, por irônica coincidência, sobre as ondas destruidoras que quase a tocavam – naquele instante, um braço vermelho e um martelo pairavam erguidos no ar, em posição de pregar com firmeza a bandeira à verga que afundava. Um falcão marinho que ofensivamente seguira o mastro grande na descida de sua morada natural entre as estrelas, bicando a bandeira e molestando Tashtego; ocorreu então que o tal pássaro interpôs a grande asa esvoaçante entre o martelo e a madeira; e, sentindo ao mesmo tempo aquela emoção etérea, o selvagem logo abaixo, submerso, no momento de sua morte, ali fincou estático o martelo; e assim, a ave do céu, com seu gralhar de arcanjo e seu bico imperial arremetido para o alto e todas as suas formas cativas, envolto pela bandeira de Ahab, afundou com o navio, que, como Satã, não quis descer até o inferno sem arrastar consigo uma parte vigorosa do céu, que assim lhe servisse de elmo.

 

Pequenas aves voavam agora gritando sobre o golfo ainda escancarado; uma rebentação branca se abateu contra os seus lados íngremes; e então tudo desabou e o grande sudário do mar voltou a rolar como rolava há cinco mil anos. (p.591)

 

Toda a história de desenlaça numa só página. É o fim. Aliás, há um Epílogo, em que Ishmael explica como se salvou. Caso contrário, essa história não seria contada, pois só ele escapou.

 

Comentário.

Evidente que a Baleia é um símbolo bíblico. Melville é coerente com essa premissa e justapõe a isso  outros temas no livro. A loucura de Ahab contrasta com a sobriedade de Ishmael. Vingança de um lado, temperança do outro. A figura de Ahab é sinistra, causa temor aos marinheiros. Durante os preparativos do Pequod, o navio baleeiro, ninguém o viu. Só já em alto mar é que o capitão sai de sua cabine, como se ali morasse, em total misantropia. A cidade de New Bedford, em Nantucket, depende muito da pesca da baleia. E muitos investem no negócio com cotas, cujo resultado financeiro final será repartido conforme estas. Há uma certa reverência com relação ao animal, portanto. Reverência desprezada por Ahab, que só pensa na vingança. Tal como na história bíblica, onde o personagem é Jonas, há uma quebra das regras de convivência social. Jonas foi engolido por uma baleia, como castigo divino, por querer se afastar dos homens -- mas se arrepende e é cuspido, tornado de volta à vida. Mas o capitão Ahab não. Vai até o fim. É engolido pelo mar, emaranhado nas cordas de seu próprio arpão, depois de ser puxada violentamente por Moby Dick. A profecia, de modo invertido, se realizou.

O estilo bíblico da composição vai em auxílio do enredo, que se converte em enorme drama final. Os próprios personagens, como já dissemos, são de inspiração bíblica. Por outro lado, o romance é permeado de reflexões de vida, filosóficos mesmo. O olhar de Ishmael é de compaixão, mas muito resignado, como querendo tirar lições de tudo; sendo ele um professor que foi "buscar aventuras" nas águas. Retirou muito aprendizado, é de se depreender. O leitor poderá ganhar o seu.

domingo, 16 de outubro de 2022

Rumo à Estação Finlândia. Um livro para ninguém.

 WILSON, Edmund. Rumo à Estação Finlândia: escritores e atores da história. Tradução Paulo Henriques Brito. São Paulo: Companhia das Letras, 1986 (texto de 1940).


Este livro foi editado pela primeira vez em 1986 e atravessou os anos 1990 como uma leitura muito promovida, pois 1989 (queda do muro) e 1991 (fim da URSS) delinearam e formataram a ideologia política centrada no neoliberalismo, cujos tentáculos abraçavam cada vez mais adeptos e esmagavam cada vez mais oposições.

Mas este um texto escrito em 1940, sob a Segunda Guerra. Poderia ser considerado, tranquilamente, um texto datado, velho mesmo e ressentido. Mas, do contrário, serviu como uma peça de promoção para "desconstruir" o socialismo.

 

Capítulo a capítulo, desde a Revolução Francesa, analisando Michelet, Renan, Taine e Anatole France, Wilson tenta demonstrar o declínio da tradição revolucionária burguesa. E da Revolução em geral, como se verá.

 

Entra o socialismo, cuja origem ele remete a Saint-Simon, que o descreve como um "extravagante", entre outras qualidades. As descrições de Wilson, sobre os autores segue, desde o início, esse estilo de mostrar um aspecto para "além" da persona do escritor, ingressando com alguns elementos da vida privada de cada um. Ou uma descrição de personalidade. Como de perto "ninguém é normal", já dizia um outro escritor, o resultado é que as ideias dos teóricos expostas  pelo autor do livro ficam contaminadas. Wilson escreve bem e sua narrativa é muito sutil. Mas em algum momento esse tipo de narrativa leva um escorregão. E podemos nos aperceber desse momento no capítulo intitulado "O mito da dialética". Neste, o tombo é feio. Colocando o termo dialética entre aspas ("dialética") Wilson se propõe a desconstruir o método. E para seu fracasso ele remete à dialética de Hegel. Faz uma pequena exposição, pobre, por meio de um clichê filosófico que não se menciona nem em um botequim: a tríade "tese, antítese e síntese". Quem estudou um pouco da Fenomenologia do Espírito, sabe que não encontrará estes termos, nem aos menos correlatos, pois é um pouco mais complexa a coisa do que a exposta por Wilson.

 

"... a síntese é sempre um avanço em relação à tese, pois ela combina, numa unificação mais 'elevada', o que há de melhor na tese e na antítese." (p.173)

 

Pronto. Tudo resumido em dois parágrafos. E continuando o raciocínio, o autor afirma que Marx e Engels adotaram esse princípio e projetaram sua "atuação no futuro" (p.174). Na sua conclusão, Marx e Engels não avançaram mais que os socialistas utópicos!

 

As análises vão avançando até chegar em Lenin. O esquema de Wilson continua o mesmo, mas a tinta que pinta Lenin é mais forte, mais destruidora.

 

Mas o penúltimo capítulo, "Lenin na Estação Finlândia", acaba por trair as intenções do autor. É o momento em que Lenin retorna do exílio, via Finlândia, por meio de trem. Na Estação Finlândia faz seu discurso, exaltando e promovendo a Revolução. Lenin deu uma lição prática neste discurso, que ao contrário dos colegas, que entendiam que as "condições objetivas ainda não estavam satisfeitas", denuncia a Guerra contra a Alemanha, clamando pela saída da Rússia do conflito. Era preciso fazer a Revolução já. A simples exposição deste acontecimento diminui Wilson e Lenin termina gigante ao final do capítulo.

 

Este seria o último da edição original. Há um adendo nomeado "Resumo: a situação em 1940", que segundo consta na nota de rodapé foi retirado de uma publicação de 1952. Já começa assim:

 

"Relativamente falando, o marxismo está em eclipse." (p. 444)

 

Qual o erro fundamental? Para Wilson:

 

"Marx e Engels, cuja formação ocorreu na Alemanha autoritária, tendiam a imaginar o socialismo em termos autoritários; e Lenin e Trotski, obrigados a partir de um povo que jamais conhecera outro regime que não a autocracia, também enfatizaram este aspecto do socialismo e fundaram uma ditadura que se autoperpetuou como autocracia." (p. 452)

 

Nada mais simplista e mecanicista que esta análise final, sem muita relação com a exposição toda. Mas estaria tudo perdido? Segundo Wilson:

 

"...resta algo mais importante que é comum a todos os grandes marxistas: o desejo de abolir os privilégios de classe baseados no berço e nas diferenças de renda; a vontade de estabelecer uma sociedade em que o desenvolvimento superior de alguns não seja custeado pela exploração... Para realizarmos essa tarefa, precisaremos exercitar ao mesmo tempo... nossa razão e nosso instinto." (p. 452)

 

Há um apêndice neste livro que na verdade foi um prefácio à edição de 1971. Mais tintas escuras sobre a figura de Lenin. Mas como eu já disse, há certas figuras históricas que não diminuem, mesmo que o autor se esforce muito. Como nesta passagem:

 

"De fato, a atitude de Lenin para com as pessoas caracterizava-se pela frieza, o desprezo, e a crueldade." (p.456)

 

Bom, conclusão baseada em depoimentos de contemporâneos, interpretados por Wilson. Diga-se.

 

Vale a pena ler este livro? Se como objeto de estudo de peça publicitária contra o socialismo nos anos 1990, sim. E até que dá para extrair alguma história disso tudo. Basta separar os momentos de verdade do resto, das opiniões, preconceitos e algumas falácias do autor. Fora disso, esqueça. Há muita coisa boa para se ler por aí.

 

Em tempo: Wilson foi jornalista e escritor de romances e peças de teatro. Talvez mais famoso como crítico literário, ao seu tempo. Impulsionou J.S. Fitzgerald e E. Hemingway.

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Sobre as Leis da Física. E algo mais.

 

FEYNMAN, Richard. Sobre as leis da física. Trad. Marcel Novaes; rev. Técnica Nelson Studart. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC Rio, 2012 [1965] - Leitura realizada em Fevereiro de 2013.

 

Feynman está aqui reunido neste livro, que deriva de uma série de palestras, realizadas na Universidade de Cornell, nos anos 1960. É continuador da Física Quântica. Isso parece ter influenciado seu pensamento a respeito da Física, que ora pende para o matemático, ora para o filosófico, embora pareça desprezar este último aspecto. Mas Feynman é muito didático nas explicações das chamadas LEIS DA FÍSICA.

 

Vejamos o Sumário:

 

1.Gravitação, um exemplo de lei física - 15

2.A relação entre a matemática e a física - 41

3.Os grandes princípios da conservação - 65

4.Simetria nas leis físicas - 91

5.A distinção entre passado e futuro - 115

6.Probabilidade e incerteza: a visão quântica da natureza - 133

7.Em busca de novas leis - 155

 

Neste primeiro capítulo ele discute o movimento gravitacional dos planetas, para demonstrar como a Lei da Gravitação funciona. E chega ao final a se perguntar:  a Gravitação seria o grande "agregador" universal?

 

No segundo ele afirma que a matemática e a física são interdependentes, ou melhor, a matemática é independente, já que pode ser pensada em termos abstratos. Já a física não, pois sempre dependerá da matemática para completar alguma teoria. Seria a linguagem da Natureza (!?). O fato é que algumas relações matemáticas se mantêm, misteriosamente, rompendo-se algumas forças e/ou grandezas, ou seja, desaparecendo (ou esvanecendo-se) uma determinada teoria física.

 

No terceiro. Os grandes princípios da conservação se verificam em vários pontos da física:

-Conservação de energia;

-Conservação do momento (quantidade de movimento);

-Conservação do momento angular.

Tudo depende de como estamos medindo. A ciência é como um quebra-cabeça: só não temos certeza de como devemos juntar as partes.

 

No quarto, discute a simetria das leis físicas, que sempre funcionou até descobrir-se a antimatéria. Aqui a simetria entre esquerda e direita falham. Seria a Natureza quase simétrica?

 

No quinto, uma discussão entre passado e futuro. Na física, claro, que seria o retorno a um estado físico anterior. Se as temperaturas são as mesmas, por exemplo, não há energia disponível para fazer nada, nem adiante, nem atrás.

 

"O princípio da irreversibilidade é o seguinte: se as coisas com temperaturas diferentes são deixadas por conta própria, as temperaturas se aproximam e a disponibilidade de energia decresce com o tempo." (p.127)

 

A unidirecionalidade sempre vai para uma redução da energia possível. É a chamada "Lei da Entropia". Em outros termos: o tempo sempre vai para a frente. Mas chega-se a um fim? As leis, sendo matemáticas, são reversíveis. Mas os fenômenos não.

Pergunta aqui para nós: e a Lei da Conservação da Energia? Como fica?

 

Probabilidade e incerteza. Capítulo sexto. Sendo a simultaneidade subjetiva, pois os fenômenos representam uma experiência limitada da natureza. Tudo acontece devagar e nosso acesso à natureza não é direto -- sempre precisaremos refinar experimentos e medidas.

Se levarmos a Física Quântica a sério, dado que um elétron não possui todo movimento previsível, pois não temos como prever de antemão sua trajetória, chegaremos à conclusão de que o futuro é imprevisível. A natureza não precisa satisfazer nossas condições pré-concebidas.

Portanto, a visão quântica da natureza se dá em termos de probabilidade, dentro de um contexto que ela não pode ser preconcebida e assim temos a visão de um futuro imprevisível.

 

Sétimo. Em busca de novas leis. As leis não são definitivas. Novas experiências e novos fenômenos "desmontam" nossas teorias, de modo a estabelecer novas conjecturas. A simetria na Natureza não é completa. A energia se esvai, de acordo com a Entropia. Portanto, "adivinhar" as leis da Natureza é uma arte.

Feynman "ataca" muito os filósofos. Não sei o que ele chama de filósofo, mas como não menciona nenhum nome, é possível deduzir que estes filósofos são seus próprios colegas, físicos, matemáticos, etc. Este seria um "defeito" de teóricos físicos: com quem ele não concorda, chama de filósofo. E a certa altura, abre o jogo:

 

"Todo bom físico teórico sabe seis ou sete diferentes representações teóricas para a mesma física. Sabe que todas são equivalentes e que ninguém será capaz, em certo nível, de decidir qual a correta." (p.175)

 

Bem, isso não é alguma coisa de filosofia?

Por trás da matemática, afirma, é possível chegar a um resultado e mesmo prever o que vai acontecer, nada tendo a ver com o objeto real, em si. Isso só é possível comparando-se resultados de experimentos, ainda que a matemática esteja correta. Quando sabemos que estamos certos? Feynman propõe algo que sempre vigeu no mundo das ciências: reconhecer a verdade pela beleza e a simplicidade. Seria a tal escolha do "mais simples, melhor"? Isso não explica as complexidades da natureza e como ela se apresenta, a nós, de forma cada vez mais complexa à medida que tentamos não só entendê-la, como matematizá-la. Mas Feynman estava nos anos 1960, tentando explicar de modo simples coisas que se apresentavam já bastante complexas -- portanto, isso envolve uma aparência de grande mistério. São os paradoxos que a Física Quântica nos impõe desde o início da elaboração de suas teorias.

Ao final, ele responde a tudo isso da seguinte maneira:

 

"O que a natureza tem que, a partir de uma parte, permite imaginar o que vai acontecer com o resto? Esta não é uma questão científica. Não sei como respondê-la. Só posso dar uma resposta não científica. Acho que a natureza tem uma grande simplicidade e, portanto, uma grande beleza." (p.180)

 

Não seria isso, então, uma filosofia? Ele nos propõe questões e expõe dúvidas, ao longo das conferências, que nos levam senão a outro lugar que a filosofia!?

Grande Feynman.