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segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Festa. Nem tudo é...

Sobre a Festa (fête) - ou modernamente:  "Balada"

Segundo A. Comte-Sponville, momento privilegiado, em que - antigamente - era precedido de um momento de recolhimento [como no Carnaval]; hoje em dia não há mais recolhimento - só regozijo. É por isso que as festas tendem a ser um pouco tristes ou forçadas, não fosse o álcool. Excesso permitido, senão ordenado, segundo Freud em Totem e Tabu. Quer algo mais opressivo que uma alegria programada, um excesso obrigatório? Bem, a própria festa faz esquecer isso. 

Fonte (adaptada): COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo, Martins Fontes, 2003. p.247

Explicando.
Bebe-se muito, e cada vez mais, em festas. Alguns afirmam que é "para esquecer". Esquecer do quê? Do trabalho mal remunerado? Da traição dos amigos? Do amor perdido? Da "amolação" do chefe e dos colegas de trabalho? Da infidelidade geral das pessoas? De si mesmo, tendo em vista se considerar um fracasso? Ou beber para lembrar que é um super-homem e poder fazer tudo que se quer?
De fato, nossa vida precisa ser bem amarga para na festa - e apenas na festa - fazer tudo que não se pode. Já não foi dito que em "baladas" você se realiza, isto é, você "pode tudo"?  Sim, nas festas atuais tudo pode acontecer e mais um pouco, pois talvez na vida diária nada aconteça assim de tão interessante. O que é realmente triste. Então a vida é triste e a festa é alegre?
Na verdade, a festa tornou-se obrigatória, não para ser feliz, mas apenas para restabelecer o indivíduo como um ser normal, na segunda-feira, no trabalho. Bem, alguns não vão assim tão normais (fisicamente) ao trabalho na segunda, devido aos excessos. Mas é verdade que é assim que ele consegue manter sua integridade psicológica, ao menos até a sexta-feira. Mas é verdade também que  durante a festa a gente se diverte muito. Ou pelo menos ainda há uma aparência de felicidade, pois o tempo da celebração da vida na festa já se foi há um bom tempo.

E.T.: festinha de criança não conta, mas é nessas que - apesar da péssima música que geralmente é tocada - ainda existe um grau de verdadeira felicidade. Ao menos para os pequenos, a observar como se divertem sem nenhuma gota de álcool, embora com muito açúcar.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Perspectivas do mundo hoje. 
O Estado-nação e os movimentos independentes. O caso europeu

Após a recessão de 2008, que afetou o mundo todo inclusive Europa, volta à tona o debate sobre a independência das "regiões-nações" - pequenas regiões com demandas de cultura e língua própria, como na Bélgica, Escócia, Catalunha, País Basco, Groenlândia, etc. e também expressos em movimentos políticos, inclusive nos parlamentos locais.
Volta à tona o discurso da autodeterminação dos povos, agora como palavra-chave contra a integridade territorial e união econômico-financeira. A Europa parece ser o principal palco desse embate hoje. O que está em jogo é a União Européia. Com a interferência dos governos centrais europeus, por meio do judiciário (tribunais), esses movimentos conseguem ser contidos. Por quanto tempo? Vai depender, na minha opinião, da evolução da crise mundial instalada pós 2008.

O que há de velho nisso tudo.
Revela-se aqui a superficialidade cultural e de identidade dos estados nacionais, que não conseguem mais impor uma fachada (cultural) comum à população de um território. Antigas demandas locais são reavivadas em tempos de crise e se tornam o aglutinador de movimentos de independência - que permaneciam, até então, um tanto olvidados. O que explica, na longa duração, o caráter artificial do Estado-nação, que sempre tentou recobrir com tinta forte todas as diferenças locais no(s) território(s) onde sua força (político-militar) fez prevalecer.
O que não significa, por seu turno, que esses novos movimentos para a independência de pequenas regiões sejam totalmente espontâneos ou "naturais". No fundo, refletem distorções históricas no que diz respeito à autonomia econômica e fiscal, considerando sua inserção no Estado. Reaviva-se e fortalece-se símbolos que estavam enfraquecidos, bem como a própria língua local - como é o caso catalão. Só é possível uma autonomia política total se houver uma identidade muito forte. E é isso que as personalidades políticas, tanto à esquerda como à direita, vêm tentando estabelecer.

O que há de novo nisso tudo.
A solução desses conflitos se dará (pelo andar da carruagem) pela ação dos parlamentos locais - assentados em bases e movimentos populares,  evidentemente, dado que o voto ainda é algo que funciona - bem ou mal - contra os parlamentos nacionais. E desse choque poderá sair coisas interessantes, tal como o debate sobre um novo modelo de representação política. Sem falar nas velhas questões fiscais e de desigualdades econômicas regionais, envolvendo inclusive a pobreza - o que pode suscitar, por fim, o debate sobre o modelo de desenvolvimento econômico.
Como resultado da interação dialética entre o novo e velho, mencionados acima, o que poderemos vislumbrar são dois caminhos: 1) uma independência total dessas "regiões-nações", na base de estados nacionais; ou 2)uma autonomia razoável, com um estado político independente, mas associado ao Estado-nação principal, dado que todas essas pequenas regiões estão "enclavadas" numa região maior e, até o momento, numa relação de dependência econômica mútua. Um regime federativo? Talvez.
Considero esta última opção como a mais provável, mesmo que seja observada uma retomada econômica européia muito forte.

No resto do mundo.
A atual reestruturação do capitalismo, mesmo na Europa, demanda uma centralização dos poderes. E é isso que coloca em choque o Estado-nação contra essas micro-regiões, muitas delas não tão micros assim. Nos países que não enfrentam esse "problema", de maneira séria, o que observamos, casos como no Brasil e EUA, é o fortalecimento dos estados-membros, com o surgimento de novas lideranças estaduais. O que não quer dizer que, em um certo sentido, que o poder central tenha perdido parte de sua força. Pelo contrário, é o que se observa nos BRICs. E mesmo nos EUA o que observamos também é uma ação do governo central muito forte naquilo que conduz - ou seja, ação militar e manutenção das bases econômicas neoliberais. Ressuscita-se a ideia de "grandeza da nação", em quaisquer dos casos -  somado a um imaginário fundamentalista - no caso norte-americano. Portanto, temos um apelo nacionalista assentado em outras bases, que não aquelas que historicamente conhecemos: não se trata de construir e edificar a nação, mas sim de manter um status quo. O que é interessante é que os mesmos personagens - tanto políticos, como agentes econômicos - que defendem agora uma ação forte do Estado-nação, a sustentar as atuais bases da economia (neo)liberal, pregavam, lá nos anos 80 o fim desse mesmo estado, decretando-o como entidade moribunda. "Decretou-se" também o "fim da história", não foi? Talvez o que tenha morrido mesmo, embora dê sinais de ressuscitar, é o membro "indesejável" do monstro: sua face social. 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O Morcego. Augusto dos Anjos.

O Morcego

Uma vez fomos morar um pouco mais para o interior, Vargem Grande Paulista, que naquele tempo ainda era bem pequena, e acho que não mudou muito. Minha filha, Catharina, devia ter uns dois anos, acredito. A casa era de tijolo, com reboco. O piso era também de tijolo, assentado e bem unido. Não havia forro. Fazia um frio tremendo à noite. Um dia chego da faculdade e após colocar a Catha para dormir em seu quarto, entro no meu, para fazer o mesmo. A esposa não havia chegado ainda. Leitura antes de dormir. Luz acesa. Sinto algo roçar no meu cabelo. De novo. E eis que o morcego se apresenta, "voando" por sobre minha cabeça. Bem, o resto encontrei aí nesse poema de Augusto dos Anjos. Deparei-me com ele de novo recentemente e lembrei do tal morcego, que se instalou nos interstícios do teto sem forro. A propósito apelidei-o de Lincoln. Talvez em homenagem a aquele presidente americano.


O morcego

Meia noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vêde:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o tecto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

Augusto dos Anjos


Fonte: Eu e outras poesias. Augusto dos Anjos. L&PM Pocket, p. 16

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O Homem Elefante. David Lynch, 1980.
A resenha abaixo não dá revelação sobre o final da obra.

O filme de David Lynch é uma obra de arte, tanto em texto, imagem, como em reconstituição histórica. Pode se afirmar que o século XIX está bem retratado ali: o barulho do bairro industrial (periferia), na mistura de todos os ruídos, inclusive música; a sujeira; o carvão e energia; chaminés fumarentas e paisagem escura, enegrecida pela fuligem; a vida burguesa representada pelo médico; a preocupação excessiva com a ciência. Esta última, podemos certamente considerar, a idiossincrasia mais acentuada daquele obscuro século XIX.
Por meio de uma narrativa simples, mas de alta densidade, com imagética de forte carga simbólica, D. Lynch nos apresenta o "Homem Elefante", que no percurso de sua saga de anti-herói, por meio de uma antiapresentação, se dá a conhecer por John Merrick, um "Ser Humano".
Dificilmente eu conseguiria explorar aqui todos os detalhes simbólicos do filme, pois isso seria trabalho para um artigo grande. No entanto, há um em particular que denota o forte moralismo vigente - ainda - no século XIX. Ao entrar no circo, na parte de "Freaks" - as aberrações, o médico - Dr. Treves, passa por uma placa onde está escrito: "Fruto do pecado original". Ao lado, um feto ou um bebê com deformidades num pote com líquido de conservação. Pecado original, nestes termos, foi o homem ter conhecido o sexo com a mulher, tendo como resultado um "monstrinho".  Sim, claro, é uma interpretação restrita e moralista das escrituras, mas bem ao gosto do moralismo do XIX, bem ao gosto da era vitoriana, do mundo conhecido como "civilizado" e onde a sexualidade é muitíssimo vigiada e circunscrita.
Uma outra simbologia: com a máquina. Na sala de cirurgia um homem sendo operado porque ocorreu um acidente com uma máquina na indústria. Dr. Treves diz mais ou menos assim, com relação às máquinas: "...não podemos confiar nelas...". De fato, uma outra mazela do XIX, mas que no século XX se tornaria algo banalizada, apesar de mais trágico: acidentes com máquinas, resultando sempre, é claro, em prejuízo para a vida. A vantagem dos homens no XIX, com relação ao XX, é que lá ainda havia uma séria desconfiança na máquina. O século XX enterrou essa desconfiança - ao menos ideologicamente, ainda que não totalmente no senso prático - deixando de lado qualquer questionamento sobre a utilidade da máquina e da técnica. Preocupação destacada no texto dessa semana, de Peixoto Júnior, sobre a questão do homem-ciborgue, uma espécie de novo monstro hodierno.
Enfim, o que temos, é John Merrick, o "homem elefante", nascido com uma enorme deformidade por todo o corpo, que é "apresentado", "mostrado" como atração de um circo, mantido por um indiferente proprietário, que o vê apenas como um negócio. Nenhum sentimento em que haja algum afeto.
Uma vez descoberto pelo médico, Dr. Treves, John é arrancado dali e levado a um hospital, para tratamento de suas enfermidades. Há um sentimento de compaixão do médico para com John, inicialmente. O médico chega a comover-se tanto que se põe a chorar.
 No entanto,  uma vez que este é tratado como um "achado" pelo médico, "mostrado" novamente - agora a uma nova platéia, de homens da ciência - a relação parece deslocar-se para o interesse profissional. A exibição do "homem-elefante" para a platéia de cientistas: mudou algo para a platéia de circo? apenas um braço e o órgão genital, "normais". Parece haver aqui uma inversão: no circo, a curiosidade era pela deformidade; na platéia de cientistas, pela normalidade.
Ocorre que praticamente todos se interessam por John como um espetáculo: a alta sociedade, os artistas, a própria multidão - representada pelo vigia do hospital e seus "clientes".
Uma vez que demonstrou ter inteligência e discernimento sobre as coisas, John desperta cada vez mais interesse. A medida que vai se "civilizando", isto é, adotando as convenções sociais mais "normais" nos relacionamentos com os outros, vai sendo cada vez mais aceito, vai se integrando. Ganha admiração até mesmo da rainha Vitória, que agora o vê como um digno cidadão inglês. É comparado a Romeu (de Romeu e Julieta, de Shakespeare) pela atriz Kendal, numa espécie de atração platônica por John. E apesar de suas deformidades, "demonstra" grande habilidade manual, ao fazer uma réplica em papel da catedral que observa da janela. A associação com o animal, o elefante, não se dá apenas pela aparência das deformidades - também no que diz respeito à memória: John possui uma boa memória, memória de elefante, demonstrada pela recitação de partes da Bíblia e naquele momento com a atriz, quando decora uma fala de Romeu na peça e a declama. Por isso, para a atriz, John se tornou o "Romeu".
A parte do espetáculo continua - o "homem elefante" ainda é "mostrado", como advertiu a enfermeira-chefe ao Dr. Treves, numa determinada passagem. Interessante sua descrição a respeito do sentimento por John: cuidava dele, portanto, também se importava com ele - mas à sua maneira. Daí o médico refletir sobre tudo que ocorreu. Por isso mesmo, posteriormente, o médico vai refletir e fazer uma autocrítica. Evidente, não podemos entrar nos pensamentos da personagem, mas podemos até admitir que havia algo de monstro no médico, tal como Mr. Hyde em Dr. Jekyll, fazendo uma citação não muito honrosa.
Podemos arriscar a dizer que John passa a ser mais aceito por duas coisas: primeiro, quando sua forma vai sendo assimilada pelos outros - o diferente, o que causa estranheza, passa a ser melhor compreendido quando se descobre a origem das deformidades, da feiura; segundo, quando demonstra uma "normalidade" interior, uma ontologia própria ao ser humano - lê, aprecia teatro, é "cavalheiro e refinado"; uma série de coisas que já estavam contidas nele, mas não "demonstradas". Podemos pensar também naquela inversão de que fala José Gil, no texto de Peixoto Junior, o "interior abortado" do monstro, mas mostrando que ali há uma alma. E realmente John mostra a sua, expressada por ele mesmo, quase ao final do filme, quando retorna para a Inglaterra: cercado por curiosos que o confundem com um criminoso, acossado, ele grita: "eu sou um ser humano". Nada mais que justa tal reivindicação naquele intolerante século XIX.
O monstro havia mesmo de ser mostrado, a todas as platéias, para que toda sua condição fosse e pudesse ser interpretada em toda sua multiplicidade, codificada em toda sua singularidade, ressignificada, para que, ao fim, o monstruoso fosse apenas uma forma, uma externalidade, e explodisse dali de dentro o humano para as inteligências exteriores. Acredito que essa tenha sido a mensagem mais forte do filme. Talvez outras, como a de mostrar as pequenas monstruosidades que podemos cometer - cada um à sua moda, mostrando seu próprio monstro interior.

Fonte histórica: BRESCIANI, Maria Stella M. Londres e Paris no século XIX: O espetáculo da pobreza. São Paulo, Brasiliense, 1994 (1982);
Fonte citada: GIL, José. Monstros. Lisboa, Relógio D'Água Editores, 2006.