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quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Do Processo Penal e a face Obscena da Justiça. Lição de Kafka.

El Greco - Christ on the Cross Adored by Donors 1585-90

Em um dos capítulos de "O Processo", romance de Kafka, mais exatamente o terceiro, K. (o personagem) volta ao tribunal, uma semana depois da primeira, para uma nova audiência, embora não tenha recebido a intimação, já que havia recebido apenas um telefonema de alguém do próprio tribunal, afirmando que haveria audiências todos os domingos.

Ao invés do labiríntico caminho, como da outra vez, K. encontra um modo mais direto (um atalho?) e chega à sala de audiência. Mas não há nada, não há sessão --  foi informado pela mulher que ali residia. K. entra e vê que a sala, de aspecto miserável, está mesmo vazia. Vê alguns livros em cima da mesa e pede para dar uma olhada, presumindo serem os códigos empregados para o procedimento da Justiça. Aquela Justiça,  que movia um processo contra ele. A mulher não permite que K. compulse os livros, mas por fim admite,  após alguma insistência. Finalmente, ao abrir os livros constata que são obscenos, pornográficos mesmo. E diz: "São estes, então, os livros de direito que estudam aqui! E são essas as pessoas que devem me julgar!".

O capítulo é metafórico, como todo o livro. Cabe interpretar a metáfora. K. descobre, por acaso, a face obscena do sistema que o julga: o das pessoas. São elas, com seus afetos, que vão enfim julgar sua causa. A imparcialidade e a impessoalidade é algo inexistente ou inatingível, partindo desse pressuposto. Os princípios enunciados pelo Direito tornam-se vazios. Somos julgados por gente que nos despreza e cujo ódio --  disfarçado de neutralidade, de impessoalidade -- nos é dirigido impiedosamente e desferido como um golpe de faca. Não por acaso, penso eu, os agentes da Justiça vestem-se de negro em suas sessões — é preciso disfarçar os afetos.

No real vivido encontramos o correspondente aos "livros obscenos" com que K. se depara: o mar de informações (verdadeiras ou falsas) espalhadas pelas redes sociais, pela mídia, pela imprensa, por revistas, que alimentam o rol de conteúdos os quais alimentam os agentes do poder. É por meio  desse caldo que podemos "descobrir" quais afetos as pessoas guardam consigo e quais os mobiliza contra os outros. Geralmente os piores, como podemos constatar nos últimos tempos.

Quanto à Justiça -- nela os nossos julgadores -- basta um boa leitura, atenta, de sentenças extraídas do processos (especialmente dos criminais, disponíveis em qualquer vara), para que se revele  o rosto obsceno do Judiciário:  as mais duras penas inflingidas contra as pessoas comuns, pobres em geral —  e que nos leva a concluir também sobre sua parcialidade e pessoalidade, enfim, mal (ou bem...) disfarçadas sob o manto negro das audiências.

 

Fontes:

KAFKA, F. O Processo. Cap. 3, de qualquer edição. 

BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990.