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quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Literatura e Gramática.

CAMPOS, Carmen Lucia da Silva & SILVA, Nilson Joaquim (orgs.). Lições de Gramática para quem gosta de Literatura. São Paulo, Panda Books, 2007.


Há muitos que gostam de literatura. De gramática, nem tantos. Talvez gostar, gostar mesmo, só os professores...Porém este livro trata dos dois assuntos, associando-os, de um modo divertido e sob uma perspectiva bem irônica. São textos e crônicas dos melhores de nossa língua, antigos e modernos, desde um Machado de Assis e um Artur Azevedo, passando por Raquel de Queiroz, até Moacyr Scliar e Marcelo Duarte (aquele do "Loucos por Futebol" e o "Guia dos Curiosos"). Fecha-se o circuito com Paulo Leminski, num texto fantástico.
E os temas são os mais variados: os estrangeirismos, analisados por Machado de Assis (!) e Rachel de Queiroz; o internetês, visto por Rosana Hermann; o uso do plural, por Ivan Jaf; os neologismos, estudado por Walcyr Carrasco; os vícios de linguagem, tal como o gerundismo - saborosamente descrito por Ruy Castro; o uso do pleonasmo, explorado por Marcelo Duarte; termos difíceis de explicar...às crianças, por Lourenço Diaféria; a língua falada e a língua escrita, por Luis Fernando Verissimo; a pontuação, por Moacyr Scliar; Ignácio de Loyola Brandão explica o significado de duas novas palavras: "poblema" e "pobrema" e outros.
Destaque para duas crônicas. Uma de Artur Azevedo, "Plebiscito". Outra de Paulo Leminsky, "Meu professor de análise sintática". Na primeira, temos uma história sobre o uso "envergonhado" do dicionário - considerado popularmente pelos brasileiros como o "pai dos burros" - expõe de modo sutil nosso comportamento diante desse grosso compêndio da língua portuguesa. O segundo, de Leminski, trata de um impulso que talvez já tenhamos tido: quem não quis "matar" seu professor de gramática durante as lições de análise sintática?
Recomendo fortemente a leitura deste pequeno livro de 100 páginas, com textos ótimos, inclusive para uso em sala de aula.

Abaixo, o curto texto de Leminski - que além de tudo, exprime fortemente o concretismo:

MEU PROFESSOR DE ANÁLISE SINTÁTICA

Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida,
regular como um paradigma da 1ª conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial,
ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito
assindético de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas expletivas,
conectivos e agentes da passiva, o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.


O texto de Artur Azevedo (jornalista no Império):

PLEBISCITO

A cena passa-se em 1890.
A família está toda reunida na sala de jantar.
O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.
Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.
Silêncio

De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta: 
— Papai, que é plebiscito?
O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
O pequeno insiste: 
— Papai?
Pausa:
— Papai?
Dona Bernardina intervém: 
— Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.
O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos. 
— Que é? que desejam vocês?
— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?
— Se soubesse, não perguntava.
O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola: 
— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei. 
— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito? 
— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...
— A senhora o que quer é enfezar-me!
 Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!
— Proletário — acudiu o senhor Rodrigues — é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.
— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!
— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!
— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho.
O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada: 
— Mas se eu sei!
— Pois se sabe, diga!
— Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!
E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.
No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...

A menina toma a palavra: 
— Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
— Não fosse tolo — observa dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!
— Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.
— Sim! Sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito!
Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto: 
— Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.
O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente.
Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.

— É boa! — brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio — é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...
A mulher e os filhos aproximam-se dele.
O homem continua num tom profundamente dogmático:
— Plebiscito...
E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.
— Ah! — suspiram todos, aliviados.

— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Verdade e Falsidade. 

FRANKFURT, Harry G. Sobre a Verdade. Companhia das Letras, 2007.

Dizer a verdade é importante para o dia-a-dia, para nossa vida prática, para a engenharia, para a medicina, para tudo onde se precise obter dados fidedignos e para tomar decisões. Por que não seria a Verdade importante para as relações sociais e pessoais, já que dizer a verdade só favorece a vida? É isso que o autor quer tentar nos demonstrar (não apenas convencer).
Este livro poderia ser um tratado contra a retórica, a arte do convencimento, mas Frankfurt não faz isso. Preferiu fazer um livrinho pequeno para dizer poucas coisas, de bom senso, sobre a verdade. Não a verdade no sentido forte - filosófico, mas no sentido mais prático, quase de senso comum. Daí este livro ser uma continuação de seu primeiro, On Bullshit ("Sobre falar merda"). Há muita gente falando besteira por aí e na verdade - verdade mesmo - é que elas não estão preocupadas com outros, apenas com si mesmas, pois apenas fingem acreditar naquilo que não acreditam. Essas pessoas querem é lesar os outros e por isso temos que nos precaver - procurando pela verdade e não pela mentira.
No entanto, o autor não demonstra como, propriamente, identificar, separar a verdade da mentira. Fala de senso comum, senso prático, pequenas verdades - tudo bem, mas como discernir em meio a tanta informação veiculada, inclusive as verdadeiras, a mentira ou falsidade? No capítulo 3, quando menciona Espinosa (o filósofo), o autor até nos dá uma pista, mas não aprofunda. Dizer a verdade, identificar a verdade, separar a verdade da falsidade, é o que favorece a vida - a vida ativa, a felicidade. De fato, quando realizamos um exame médico, por exemplo, queremos um diagnóstico, um "retrato" o mais fiel possível de nosso estado de saúde. Por outro lado, nem tudo pode se apresentar, na vida, como um exame médico, pois nem tudo se reduz a um laudo. E não é muito difícil imaginar situações ambíguas e multifacetadas da vida, onde a distinção entre verdade e falsidade não é mesmo fácil e muitas vezes (talvez na maior parte das vezes) muito pouco provável ou até impossível.
Mas este livro, como dissemos, não é um tratado sobre a verdade - no sentido estrito e filosófico. Nem um livro contra o discurso retórico - esse, que usa sempre, com certeza, asserções não-verdadeiras, embora nem tudo seja necessariamente falso no discurso retórico. O pessoal da área do Direito que o diga.
É um bom livro de se ler, especialmente para os leigos em filosofia. O autor defende, indiretamente, que haja investigação por parte das pessoas a fim de identificar o falso do verdadeiro, o verdadeiro do falso. Como fazer a tal investigação? Isso também ele não aprofunda. E não poderia ser de outro modo - posto que o livro é para leigos. Portanto, ele tentou dar seu recado da seguinte maneira: "fique esperto com o que dizem, podem estar querendo te enganar". Mais nada. Simples? Simples assim. 

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Filosofia para iniciantes.

FEARN, Nicholas. Aprendendo a Filosofar, em 25 lições. Do poço de tales à desconstrução de Derrida. Rio de Janeiro, Zahar, 2004 (2001).

A leitura deste foi realizada em Outubro de 2007. Logo no início, o autor prepara o leitor para o livro:
"Para pensar racionalmente é preciso lançar mão da ferramenta filosófica certa na hora certa..." (p. 7).
Muito bem. Para um livro de introdução à filosofia ele pretende dar um pouco mais que isso: o ensino de alguns "truques" - ferramentas de pensamento. É válido? Acredito que sim. A linguagem clara, fixada pela boa tradução (Maria Luiza X. de A. Borges), aliada a uma descrição despretensiosa, faz desse livro uma boa introdução à filosofia.
Os truques, quer dizer, as ferramentas de pensamento, ficam por conta do leitor relacioná-las ao filósofo em questão. Por exemplo, descobrir o porquê do "poço de tales", da "navalha de Occam", etc.
Ademais, no meu entendimento, ele cumpre - ao menos parcialmente - o objetivo proposto: demonstrar não apenas o que os filósofos pensaram, mas também como pensaram.  Parcialmente, pois sendo um livro de introdução é preciso aprofundar mais para saber bem dos filósofos. Para quem quiser ficar, por enquanto, apenas neste livro, também recomendo. É possível consultá-lo sempre que se quiser tirar uma dúvida ou iniciar um pequeno debate, pois o autor quer que o livro sirva também a um objetivo prático: "Só sabemos verdadeiramente uma coisa quando já a aplicamos..." (p.08). Daí ele oferecer as tais "ferramentas".


Se alguém ler e quiser "discutir" algum capítulo em especial, mande e-mail ou entre em contato pelo face.
Euclides Roberto.

domingo, 13 de outubro de 2013

Entendendo Filosofia, um Guia Ilustrado.

História da Filosofia para iniciantes.

ROBINSON, Dave; GROVES, Judy. Entendendo Filosofia, um Guia llustrado. Trad. Marly N. Peres. São Paulo, Ed. Leya, 2012.

Costumo ler obras de introdução ao pensamento e à filosofia e mesmo aqueles que nunca fariam parte de uma bibliografia mais séria. Este é um deles, bem ilustrado. 
Poderia ser um bom guia introdutório, mas o autor faz simplificações demais sobre alguns autores, a começar pelos antigos. Além disso, adota uma posição nitidamente parcial ao dar como certo alguns elementos da filosofia e como equivocado outros. Com relação aos pensadores da Igreja, por exemplo, há um total preconceito com relação a eles, tratando-os de forma estereotipada e caricata.
Apesar de algumas partes bem inspiradas, no geral não recomendo, nem como livro de introdução, nem como base de consulta. No todo, não faz jus a outros livros da mesma coleção, como os de psicologia, por exemplo. Mas quem ainda quiser ler alguma parte bem aproveitável, pode comprá-lo e ler a partir da página 100, aproximadamente. Ou ler com reservas as primeiras cem páginas, não descuidando das demais. 
As ilustrações são excelentes. Há um gráfico interessante ao final do livro - uma espécie de evolução cronológica da filosofia. 

O início até que é bom, como podemos verificar à página três, na introdução, onde o autor coloca "questões" que a filosofia procura responder, tais como:

-Qual é a natureza da realidade? O que vem a ser efetivamente a existência humana, o que são os seres humanos?
-Podemos ter certeza efetiva a respeito de alguma coisa?
-O que é a verdade? O que é significado?
(...)

Entre outras questões muito interessantes, como "somos realmente livres para decidir o que somos e o que fazemos?" , "o conhecimento científico é melhor dos que os outros", "qual a relação entre a linguagem humana e a verdade?"

Quem se basear nesta introdução para comprar o livro vai se arrepender, pois ele não responde de forma satisfatória às questões propostas, pelos motivos já expostos na chamada desta resenha,  seja uma delas, a versão simplificadora e de senso comum (demais) a respeito dos filósofos. Um livro de filosofia cheio de clichês, é o que temos ao final - não é possível ter uma boa ideia a respeito dos autores filosóficos. É bem verdade que o livro começa a ficar bem melhor no final, especialmente quando debate as questões da linguagem e quando trabalha os autores pós-modernos. A parte das origens da Filosofia Moderna, à página 54, também está boa e bem explicada.

Vejamos algumas "deturpações":
A chegada do cristianismo - p.41 e segs. Simplifica demais os argumentos teológicos, reduzindo-os à questão do poder da Igreja. Afirma também que a Igreja "reprimia ativamente qualquer ideia ou visão de mundo independente". Isso não é verdade, pois a repressão às ideias não veio como a chegada do cristianismo, mas sim com a Reforma Católica, já na modernidade. Além disso, o que se denomina por "monopólio" nada mais foi do que o exercício de um saber em que somente alguns estavam preparados para isso, tal como os membros da Igreja. É bem verdade também que a Igreja, a partir de fins da Idade Média e início da Modernidade, requisita a exclusividade sobre o saber, pois está em jogo a questão da Verdade. Não se impediu com isso que se desenvolvesse um pensamento autônomo, independente - e mesmo dentro Igreja. Não se impediu também que a própria Igreja fosse combatida e atacada. Portanto, houve uma tentativa de monopólio, sim, inclusive jurisdicionado pela própria Igreja, mas nunca foi totalmente exercido, nem tampouco totalmente obedecido. Ademais, como eu já disse, houve pensamento independente dentro da própria Igreja, tal como Marsílio de Pádua, para ficar apenas em um exemplo.

O primitivo estado de inocência de Rousseau - p. 71. Aqui está um bom exemplo de total desinformação a respeito do filósofo. O autor afirma que Rousseau pregava uma volta ao primitivismo e à natureza. Onde Rousseau escreveu isso? Essa "volta à natureza" foi explorada depois pelo romantismo, como afirma corretamente o autor, mas Rousseau nunca disse isso assim. O que Rousseau afirma em seus escritos é que isso seria bom, mas não é mais possível. A civilização torna o homem "mau", ao passo que nas sociedades primitivas o homem é "bom". Portanto, o homem não é essencialmente "mau", sendo possível torná-lo melhor com a educação - uma visão que seria mais tarde aproveitada pelos revolucionários franceses.

Pragmatismo - p.107. Faz uma avaliação elogiosa demais à essa corrente filosófica, ao afirmar que ela seria a filosofia norte-americana libertária mais importe e autêntica. Mas, libertária em relação a quê? ao Estado?ao indivíduo? ao poder econômico? ou à metafísica? Parece que mais em relação a esta última, mas o autor poderia ter deixado isso mais claro.

Sobre Noam Chomsky - p. 104. Não é verdade que Chomsky se coloca somente contra o governo e as agências estatais. Ele o faz também com relação à mídia e às grandes corporações privadas, que por sua vez influenciam e exercem seu poder sobre a mídia. O autor parece não ter lido nada sobre Chomsky, nem ter acompanhado sua luta política.

Teoria da falsificação. Sobre a tradução deste termo - p. 150. Afora alguns termos que nos parecem "esquisitos", há um que realmente peca, apresentado na página 150: "falsificação". A teoria de Popper não é a da falsificação, mas a da refutação. Ocorre que dentro da teoria da refutação, temos o que denominamos de "doutrina do falseamento". Veja: falseamento, não falsificação. Os termos em filosofia (não só nela) têm que ser preciso, pois expressam conceitos. Além da tradução ser imperfeita, a explicação da teoria filosófica, própria do autor (Robinson), também é confusa.  Nesta mesma página menciona a psicanálise freudiana como "pseudociência".  O que seria uma pseudociência para o autor? Uma quase ciência? Uma ciência em que não é possível apresentar provas materiais ou que não possui método científico? Isso seria suficiente para algumas teorias receberem a alcunha de "pseudociência"?

Obrigado amigos.