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quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Regras da comida. Por Michel Pollan. Resenha

Se comer ficou uma coisa bem complicada, então Michael Pollan −̶ aproveitando-se de toda sua experiência investigativa na área −̶ lista suas "regras" para uma alimentação saudável.

São sessenta e quatro regras ao todo, sempre indicando uma alimentação que vai em direção ao mais natural (dentro do possível) e menos, muito menos, em direção ao processado.

A indústria da alimentação vende a ideia de nutrição em vez da de alimentação. Ora, coma comida, diz Pollan. Especialmente vegetais não vendidos em pacotes ou qualquer tipo de embalagem industrial.

O livro é didaticamente divertido e altamente pedagógico no que diz respeito ao assunto.

 

Por exemplo, a regra que diz:

 

"Não coma nada que sua avó não reconheceria como comida."

 

Resume bem o que livro tenta nos transmitir:

"Imagine sua avó (ou bisavó, dependendo de sua idade) a seu lado enquanto você empurra o carrinho pelos corredores do supermercado. Vocês estão em frente à gôndola de laticínios. Ela pega um pacote de tubos de iogurte Go-GURT – e não tem a menor ideia do que poderia ser aquele cilindro plástico de gel colorido e aromatizado. É comida ou pasta de dente? Hoje há nos supermercados milhares de produtos com algum ar de comida, que nossos ancestrais simplesmente não reconheceriam como comida. As razões para evitar esses produtos alimentícios complicados são muitas, e vão além dos vários aditivos químicos e derivados de milho e de soja que eles contêm, ou dos plásticos em que normalmente são embalados, alguns provavelmente tóxicos."

 

Como agora sabemos, a indústria de alimentos processados abusa do sal, açúcar e gorduras. A regra geral é que se evite todo alimento processado, nada que tenha passado por alguma etapa industrial. É preciso um certo cuidado ao escolher. Um pacote de arroz bem como outro de feijão passaram por uma etapa de beneficiamento −̶ portanto, uma etapa industrial. Arroz integral, vendido nos supermercados, tem ao menos uma etapa desse processo, pois é preciso empacotá-lo. Alimento in natura, totalmente, só direto no produtor.  Por isso mesmo é que Michael Pollan dá sugestões como organizar sua própria horta, por exemplo.

 

Algumas regras não são assim tão evidentes, de tão acostumados estamos a fazer coisas ao mesmo tempo em nos alimentamos.  Vejamos:

 

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Não compre seu combustível no mesmo lugar em que compra o de seu carro.

 

O "nosso combustível" é o alimento, pão e leite, por exemplo. O do carro é gasolina ou álcool. Então a regra é clara: não se alimente no posto de gasolina. Por quê? Ali só encontraremos lanche e guloseimas, certamente.

 

Outras regras interessantes que devemos seguir (para se ter uma boa e saudável alimentação):

-Cozinhe;

-Coma refeições;

-Não tente repetir o prato;

-Coma menos e passe mais tempo preparando do que comendo;

-Coma devagar (acho ótima esta);

-Coma apenas se estiver com fome;

-Tome um copo de vinho no jantar;

-Tome suplementos apenas se for necessário e com recomendação médica;

-Não coma cereais matinais que alterem a cor do leite (evitando os aditivos, que nada ajudam na alimentação, só na estética);

-Coma peixes e alimentos silvestres;

-Coma alimentos cultivados em solo saudável (importante: evitar alimentos com excesso de fertilizantes e agrotóxicos; difícil? tente descobrir...);

-Como de tudo (como um onívoro, mas sem exagero);

-Como animais que se alimentaram saudavelmente (difícil encontrar isso no supermercado);

-Faça refeições coloridas (sem aditivos −̶   com a cor natural do alimento; dica: vegetais diversificados colorem bem o prato);

-Como carne como ingrediente extra de ocasiões especiais −̶   Pollan está nos sugerindo quase fortemente que diminuamos a quantidade e frequência de carne (minha dica: isso vale bem para quem não tem anemia crônica ou outra deficiência nutricional do corpo; consulte um médico);

-Como vegetais, mas especialmente folhas (ajudam a reter os nutrientes por mais tempo no corpo);

-Compre seus lanches na feira e fuja do supermercado (ingerir frutas como lanche é uma boa pedida, especialmente à noite, mas não muito tarde, pois frutas são bem diuréticas e vai fazer você ir ao banheiro na madrugada);

-Coma alimentos que possam ser ingeridos crus e que vão apodrecer −̶   não, não é para comer alimentos podres, mas aqueles podem apodrecer, tal como um abacaxi, por exemplo. Essa regra é para que se evite aquele pacote de biscoito que está do mesmo jeito daqui a um ano, de tantos conservantes possui;

-Evite alimentos anunciados na TV (uma excelente e simples regra);

-Evite alimentos que fingem ser o que não são −̶   tal como a margarina, que imita a manteiga e por muito tempo foi vendida como alimento superior. Não é;

-Evite alimentos com aqueles nomes impronunciáveis −̶   provavelmente são resultado de um bem estudado produto para enganar o consumidor;

-Evite alimentos que contenham alguma forma de açúcar na lista dos três primeiros ingredientes (pois claro, são os de maior quantidade; lembra daquele achocolatado que dá uma superenergia? Noventa por cento de açúcar);

-Esse eu gosto: evite produtos alimentícios que contenham xarope de milho com alto teor de frutose (produtos assim são altamente refinados, cuja concentração de açúcar é elevadíssima).

 

E  finalmente regra número um: coma comida.

 

Você vai se divertir, se informar e talvez economizar um bom dinheiro com este livro, pois se seguir tais regras vai poder dispensar aquelas dietas caras e malucas que proliferam por aí. Na dúvida, consulte seu médico após ler este livro e fale dele. Se você é vegetariano, vegano ou onívoro consciente, dê este livro de presente para aquele seu amigo que não consegue parar de comer bobagens (junk food).

 

Minha sugestão de livro deste autor: "O dilema do onívoro".  Trata-se de uma "aventura" em busca do alimento saudável, desvendando os procedimentos da indústria alimentar.

 

 

Apêndice: Sumário do livro.

 

INTRODUÇÃO

 

PARTE I

O que devo comer?

(Coma comida)

 

PARTE II

Que tipo de comida devo comer?

(Principalmente vegetais)

 

PARTE III

Como devo comer?

(Não em excesso)

 

AGRADECIMENTOS

 

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Estado Policial: como se defender, segundo Cid Benjamin

Livro fundamental para o momento em que vivemos, mas também para todos os momentos da vida de um militante que atua em movimentos sociais.

O livro é uma espécie de manual de militância; no entanto longe de querer ser um guia completo, apresenta-se mais no nível do aconselhamento básico para a ação do militante social, com o fim de evitar a interferência do poder repressivo do estado nos movimentos onde atua. O pequeno "manual" serve-nos mesmo para os momentos da vida política em democracia, pois esta mesma não está completamente garantida.

O livro nos oferece uma perspectiva histórica de como se formaram as milícias e a sua expansão nociva sobre a sociedade civil -- atuando como órgão repressor auxiliar do estado sobre as populações desfavorecidas e sobre a militância dos movimentos sociais e populares. Milícias não são uma novidade -- fazem parte de uma lógica do estado policial onde atuam forças paramilitares, com a cobertura de agentes do poder público.

A obra também ilustra com muitos exemplos tomados à história de como agiu e age ainda a tortura, os serviços de inteligência e a ação policial, muitas vezes acobertada ou com a ajuda do Judiciário e outros órgãos oficiais, que não se dispõem a combater esses crimes de forma séria (planejada e organizadamente).

Aponta também para alguns aspectos da legislação, tal como a ainda vigente Lei de Segurança Nacional 7170 de 1983 -- versão de uma lei antidemocrática surgida nos anos 1930. Além disso, há um capítulo importante todo voltado para os aparatos e técnicas de vigilância repressivos: câmeras, microfones, escutas, telefones, etc. Outro ponto primordial: a evolução do aparelho repressivo: para além da tortura, a espionagem e os métodos de infiltração, visando desbaratar organizações. Pelo que podemos aprender de Cid Benjamin é que os métodos de repressão são basicamente os mesmos, evoluindo muito nas técnicas e aplicação. Até mesmo a tortura não foi totalmente abandonada. Sobre isso o autor é enfático:

 

"...o Brasil tem uma tradição de tortura de presos que vem da escravidão e continuou depois nas delegacias de polícia." (p.123)

 

Capítulo especial sobre o uso de equipamentos modernos ligados à internet.

Benjamin conclui ao final que este livro não deveria, mas é, muito necessário. Não deveria ser necessário ainda mais num momento de suposta normalidade democrática. Ademais, nada impede que caminhemos para uma fase de ditadura, pois os elementos estão todos aí operando, como o demonstra o governo bolsonaro. Manual de sobrevivência para nossos tempos.

 


Comentário.

Contém uma introdução do ator Wagner Moura, onde faz a seguinte pergunta: "como chegamos a este ponto?" A resposta está aqui neste livro, afirma.

Também há uma introdução de João Batista Damasceno, desembargador do TJ-RJ, que aponta para aspectos jurídicos da questão. Destacamos um importante trecho de sua parte, na definição de Estado policial:

 

"Estado policial não é o Estado no qual a polícia tem o poder. É o Estado em que as agências de diversas naturezas, notadamente as do sistema de Justiça, passam a funcionar com a lógica policialesca. A fraternidade que permearia as relações sociais é relegada, todos são tratados como suspeitos, até prova em contrário, e os padrões civilizatórios que orientam os comportamentos sociais são substituídos pela brutalidade." (p.12)

 

Em tempo: a LSN 7170/83 foi discutida no período de redemocratização, sendo considerado um “lixo autoritário”, a ser removido junto com outros, tal como a Polícia Militar, o caduco Código Penal, etc. O momento da discussão passou e o assunto foi praticamente esquecido.

 

Sumário do livro.

1.Atentados ao longo da história

2.Criminalização do movimento popular e de organizações de esquerda

3.A expansão das milícias

4.As milícias e o poder

5.Algumas medidas de proteção

6.Celulares, computadores, notebooks e tablets

7.Câmeras, microfones e outros mecanismos de vigilância

8.Infiltrações policiais. Mais usadas do que se imagina.

9.Numa ditadura aberta.

10.A evolução da repressão: indo além da tortura.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Magistrados: "Servidores" ou "Funcionários Públicos"? Parte II

Cícero denuncia Catilina - Afresco que representa o senado romano reunido na Cúria- Hostília-Palazzo Madama,Roma


A questão principal que envolve todas as confusões sobre servidores públicos é a seguinte: quem são os servidores? Juiz é servidor ou funcionário público? Ou nada disso... Então o que é?

 

Esta é uma questão que é mais que um detalhe meramente técnico. É devido a essa confusão que muito servidores são diariamente ofendidos, chamados de mentirosos, enxovalhados pela população e principalmente pela mídia. Professores, enfermeiros e auxiliares de enfermagem, técnicos judiciários e outros −̶  todos que estão na linha de frente prestando serviços diretos ou indiretos à comunidade são “vítimas” dessa guerra de contrainformação, obrigados a ouvir disparates os mais diversos, não só em seus postos de serviço, mas até na família. Outra parte da população imagina que “funcionário público” diz respeito aos políticos e às altas esferas governamentais. Impera uma confusão que não é casual.

 

E por quê? Vejamos.

 

Férias de sessenta dias, auxílio moradia, gordas aposentadorias, jornada de trabalho semanal de três dias, entre outras "regalias" são atribuídas aos servidores, ou melhor, no entendimento do senso comum aos "funcionários públicos".  Mas o que se entende por funcionário público no imaginário popular? Essa é mais uma questão.

 

Tentei demonstrar em meu artigo anterior que esse termo "funcionário público" é vazio, destituído de significado na lei, a não ser na seção criminal; enfim, um termo equivocado e anacrônico, mas que serve para a mídia e os inimigos dos serviços públicos colocarem num mesmo conjunto todos os que trabalham para e recebem do governo. Em outras palavras, entram "todos no mesmo saco": juízes, promotores, agentes de trânsito, professores... Essa desorientação toda faz parte de um jogo de linguagem onde o que se quer na prática como resultado é legitimar o discurso da redução (senão o fim) dos serviços públicos.

 

 

Recordando: não existe o termo "funcionário público" na Lei 8.112/90, a lei que disciplina todos os servidores públicos. Juiz e promotor estão contemplados nesta lei? Não. Os magistrados (juízes e desembargadores) bem como promotores e procuradores estão considerados nas chamadas Leis Orgânicas. As Leis orgânicas tratam estas figuras como "membros". Portanto, juízes são membros do Poder Judiciário e promotores são membros do Ministério Público.

 

Primeira pergunta respondida: juiz não é servidor, nem funcionário público. Juiz, bem como promotor e assemelhados são “membros”, assim como os ministros do STF são membros −̶   são o próprio corpo da instituição.

 

O termo “membro” não é fortuito: membro, de fato, é uma parte do corpo. Está se tratando aqui de alguém que não é funcionário do Poder, mas o próprio poder. Consequentemente muito menos é servidor.

 

É intuitivo imaginar que estes membros exerçam poder de autoridade [1]. Mas de que tipo? Não há legislação específica, a não ser dada pela processual penal e pelas várias jurisprudências, sobre o conceito de autoridade [2]. E não há que se considerar simplesmente como o poder atribuído a alguém para o exercício de uma função, pois qualquer servidor exerce uma. A Constituição menciona inúmeras vezes o termo, sem defini-lo. Façamos então um exercício de sociologia jurídica e digamos então que a autoridade política é exercida por ocupantes de cargo de poder político e autoridade policial é exercida por delegados e agentes policiais [3].

 

Mas para ser bem simples, claro e didático: autoridade é a que manda; e obedece quem tem juízo, isto é, o servidor comum.

 

Os membros, portanto sendo membros de poderes, possuem poder o suficiente para garantir suas "prerrogativas", todas previstas em lei. Nada é feito contra legem (contrário à lei). Está tudo na lei. Não se trata de desvios, mas de uma aberração que é decorrência do poder que é atribuído e exercido por estas pessoas. Do ponto de vista jurídico não são “regalias”: são prerrogativas!

 

No entanto, as tais "regalias", tão propaladas pela imprensa e que são atribuídas a todos os servidores não existem. Ou melhor, elas existem para os membros. E como dissemos, todas previstas na legislação. Mas a grande imprensa, bem como a mídia em geral, quer sempre confundir uma coisa com a outra. Por quê?

 

Ora, resumindamente antecipo o porque:

-Fica mais fácil atacar os serviços públicos e dizer que "tudo é uma enorme gastança”;

-A exigência sobre os serviços públicos aumenta em contraste com “gastança” dos “funcionários públicos”, que são confundidos com “gente do governo”;

-O servidor público que está de verdade na linha de frente face ao público vira um alvo fácil de ressentimentos e propaganda negativa, de desprestígio;

 

Segunda questão respondida. Servidores são desprestigiados diariamente pela imprensa “tradicional” porque são identificados com a figura construída do “funcionário público” ineficiente, gastador, indolente, “marajá”.  

 

Na vida real, em termos práticos, é o servidor público (não os membros) que se constitui verdadeiramente como "funcionário público", funcionário de verdade, que trabalha por salário — seus recebimentos fazem parte do gasto direto com pessoal, gastos com a “administração”. Os membros, como são membros de poderes, são parte da estrutura do Estado −̶   por isso eles recebem “proventos” e não salário (ou remuneração, nos termos linguagem própria). A estrutura do Estado é a sua constituição — não são os imóveis, nem os móveis  — mas sua organização política −̶   organização na qual se constitui com e entre os membros de poderes. Última questão respondida.

 

Reforma Administrativa

Vamos ver os ataques diretos, materiais, aos direitos dos servidores. Vamos analisar “Reforma Administrativa” que se pretende aprovada pelo Parlamento.

 

A PEC 32/2020, num de seus dispositivos, exclui os membros de poderes da tal Reforma. Isso quer dizer que juízes, promotores e assemelhados não serão contemplados na mudança da lei. Em outras palavras, escapam da Reforma e continuarão com os mesmos "privilégios" de sempre — incluindo seus altos salários, diárias e demais benefícios, que verdadeiramente pesam no orçamento do Estado. Este é o preço de se manter a estrutura estatal funcionando. Não tem a ver com serviços, embora se considerem −̶   do ponto de vista desses agentes −̶   como fornecedores de um "elevado e relevante serviço à sociedade". Mas repito: é ao Estado que prestam esse serviço — que é mais um compromisso político com a organização estatal que um serviço público, necessariamente. Não se trata de um serviço público prestado diretamente à população, em seu benefício. No exercício do poder estatal, pelo contrário, agem contra a população −̶  o Direito brasileiro em sua efetiva positividade é patrimonialista, negador de direitos.  Como estes poderes integram a organização constitucional não poderiam estar incluídos na Reforma, pois isso exigiria uma emenda constitucional muito mais difícil de ser aprovada −̶  já com relação aos servidores, a mudança fica mais fácil, dada a desmobilização neste setor.

 

A CF de 1988 prevê autonomia administrativa e financeira dos órgãos judiciários e Ministério Público (Art. 99), sendo que seu orçamento, de acordo com essa previsão, deve ser elaborado pelos próprios tribunais — a ser aprovado no âmbito da lei de diretrizes orçamentárias. O que devemos atentar é para o detalhe de que este orçamento é para despesas primárias, isto é, obrigatórias. Despesas com pessoal são obrigatórias. Nelas também são incluídas as diárias dos membros, uma espécie de remuneração para quando acumulam funções, para quando se deslocam de sua sede ou para plantões; essa remuneração é que permite dobrar os proventos, atingindo o teto constitucional. Até 2019 era possível haver repasses do orçamento aos tribunais para "cobrir o rombo" com as despesas. Este ano temos o "teto de gastos", que não sabemos como irá impactar essas despesas, mas até o momento os pedidos de aporte extra estão ainda previstos.

 

Enfim, por quê é importante ressaltar todas estas diferenças? Primeiro porque o gasto com os membros (agentes políticos) é realmente muito alto. O pagamento com diárias, deslocamentos, automóveis, cerimoniais, verbas de representação, além de outros gastos administrativos que poderiam ser racionalizados, é alto. Por exemplo, dificilmente um desembargador ou procurador de justiça abre mão do "veículo de representação"; os gastos com a segurança dos membros evidenciam também serem elevados. Todo esse gasto geral impacta o orçamento, de fato. Mas a pressão para diminuir as despesas recai sobre quem e sobre o que? Justamente sobre aqueles que não têm poder, os que trabalham diretamente com a população, os que não recebem auxílio-moradia e muitas vezes nem o auxílio-creche: os servidores públicos de verdade e sobre os respectivos serviços públicos prestados diretamente à população. Então o cenário que temos é o uma pressão enorme, sempre, para reduzir o número de servidores, seus salários e benefícios. Por outro lado, pelo lado dos agentes políticos, a pressão torna-se apenas simbólica: são imaginados pela população como sendo servidores ou “funcionários públicos” — mas não são, pelo que demonstramos. A redução de despesa termina sempre incidindo sobre a quantidade e qualidade dos serviços públicos prestados e não sobre estrutura político-estatal. Isso leva a um círculo vicioso onde os serviços públicos são cada vez mais precarizados em nome do ajuste fiscal e da moralidade, provocando descontentamento popular e gerando uma percepção cada vez mais negativa da oferta deles.

 

Se não houver esclarecimento e educação sobre o funcionamento da administração pública e o da estrutura político-estatal, esse debate sobre a moralidade do "gasto público" jamais terá fim — a confusão reinará sempre contra a população −̶  a mais carente, obviamente, que depende do serviço público como parte integrante de seus rendimentos.

 

NOTAS

[1] O termo “autoridade” vem do latim auctoritas, que na Roma antiga designava o poder que transcende (o próprio poder terreno, subjugando-o); o poder de auctoritas era arrogado por quem direito previsto na lei; na era imperial é transferido vitaliciamente para a figura do Imperador, que agora legalmente detém todos os poderes −̶   imperium. Se levarmos a sério a origem e a permanência do significado, podemos deduzir que a autoridade política detém um certo poder de imperium, que transcende de algum modo as funções públicas que exerce. Segundo o filósofo Giorgio Agambem, o poder de auctoritas, resumidamente falando, era detido no Senado e invocado para suspender o Direito. Auctor é aquele que aumenta, aperfeiçoa, acresce ao ato e era exercido pelo pater −̶   aquele que autoriza. Quer dizer, o poder de auctoritas está para além da magistratura.

Fontes:

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004 (2003). Coleção Estado de sítio.

ALLAND, Denis; RIALS, Stéphane. Dicionário de Cultura Jurídica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. p.127

 

[2]https://jus.com.br/artigos/47144/o-conceito-de-autoridade-policial-na-legislacao-brasileira#:~:text=Na%20legisla%C3%A7%C3%A3o%20processual%20comum%2C%20ali%C3%A1s,%C3%A9%20o%20Juiz%20de%20Direito

 

[3]Mais uma vez citamos aqui o ilustre jurista Hely Lopes Meirelles, acerca da distinção entre poderes administrativos e poderes políticos:

“Para bem atender ao interesse público, a Administração é dotada de poderes administrativos −̶   distintos dos poderes políticos −̶   consentâneos e proporcionais aos encargos que lhe são atribuídos. Tais poderes são verdadeiros instrumentos de trabalho, adequados à realização de tarefas administrativas. Daí o serem considerados poderes instrumentais, diversamente dos poderes políticos, que são estruturais e orgânicos, porque compõem a estrutura do Estado e integram a organização constitucional.” (MEIRELLES, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2002, p.112)

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Os Engenheiros do Caos, Giuliano Da Empoli. Ou: Como a engenharia da mentira está produzindo o caos na sua vida.

“Os maus, sem dúvida, entenderam alguma coisa que os bons ignoram.”

Woody Allen

É assim que Da Empoli abre as páginas de seu pequeno livro. Vamos entender porque.


A verdade aparente e o Carnaval na política.

Um novo modelo de fazer política está se impondo, segundo Da Empoli. Um modelo onde o discurso da verdade pouco importa — o que importa é no que o público acredita ou possa estar acreditando, desde que isso aparente a verdade. Se no discurso não importa mais a verdade, sendo que os fatos possam ser produzidos para que se acredite em algo, o espaço público, por sua vez, torna-se um grande Carnaval. O Carnaval populista, de acordo com Da Empoli. Agora, o político deverá se apresentar antipolítico, antissistema — a ordem é "acabar com a velha política", vendida e vista pelos eleitores cidadãos como corrupta e venal. Uma verdadeira batalha cultural é empreendida. E mais:

 

                "Se, nos anos 1960, os gestos de provocação dos manifestantes visavam sobretudo atingir a moral comum e quebrar os tabus de uma sociedade conservadora, hoje os nacional-populistas adotam um estilo transgressor em sentido oposto: quebrar os códigos das esquerdas e do politicamente correto tornou-se a regra número 1 de sua comunicação." (Introdução)

 

Os novos meios e técnicas.

Mas sobretudo, há novos meios de se atingir o eleitor médio: as fábricas de fake news: softwares cujos algoritmos que — trabalhando sob uma base de dados imensa (big data), coletada na própria rede — operam para mudar a opinião e produzir uma reação no público alvo: pode ser com relação a um produto novo no mercado ou a eleição presidencial.

As ferramentas de software são inúmeras, cada novidade possui seu próprio algoritmo e é feita sob encomenda para uma determinada finalidade, envolvendo um perfil psicológico próprio, conforme os objetivos a serem atingidos.

O que Trump, Bolsonaro, Salvini e Johnson têm em comum? A assessoria de Steve Bannon, por meio de sua empresa, a Cambridge Analytica. Ligada a esta estão outras empresas, tal como a AggregateIQ, canadense, que trabalha com big data. À frente estão os novos agentes dessa revolução: os spin doctors, consultores e desenvolvedores de soluções para os nossos políticos — soluções que integram um pacote que envolve não só prospecção e marketing, mas também técnicas de modificação de comportamento, seja de consumidores, seja de eleitores. Estes são os engenheiros do caos. 

 

Os principais clientes.

Os principais clientes nesse Carnaval são os políticos nacional-populistas, segundo a conceituação de Da Empoli. Políticos de extrema-direita, antes desacreditados na política tradicional, apresentando-se como antissistema e "oferecendo" sua experiência técnica, gestora. Que não se pense que é apenas uma onda, afirma. A política foi transformada e nunca mais, pelos rumos que vai tomando, vai ser vista e feita da mesma forma. O nacional-populismo explora o ódio, o ressentimento, a loucura conspiratória, a polarização, entre outros sentimentos e atitudes negativos. Há uma base psicológica para eles, mas os algoritmos o elevam ao máximo. Na base do ódio estão os trolls, que podem ser robôs (agentes automáticos) ou usuários humanos, que trabalham disseminando a discórdia, a fúria e o caos nas redes sociais, com base local ou em outro país, aleatoriamente ou com estratégias definidas pelos spin doctors.

A Itália, diz Da Empoli, foi o principal laboratório desse novo modelo de fazer política (e de ganhar nela também), tendo seu início nos anos 2000. Movimentos de direita como o 5S (5 estrelas) e Liga Norte, só vêm crescendo em razão disso. E o sucesso é cada vez mais amplo, como demonstra fato ocorrido na Inglaterra, o Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia).

Dominic Cummings, comandou uma equipe na campanha do Brexit.

Steve Bannon, principal assessor de Trump nesta área, ajudou-o na eleição.

Arthur Finkelstein, um judeu homossexual de Nova York que se tornou o mais eficaz conselheiro de Viktor Orban, na Hungria, mas já tendo assessorado antes Bush, Netanyahu e o próprio Trump. 

Gianroberto Casaleggio, na Itália.

Estes são os engenheiros do caos que verdadeiramente se instala sobre a Terra.

 

Comentário.

Alguém já cansou de falar em ódio na política. Esse movimento que explora o ódio já havia sido mencionado, segundo Da Empoli, pelo filósofo Peter Sloterdijk:

                "Hoje, diz Sloterdijk, ninguém gerencia mais a cólera que os homens acumulam. Nem a religião católica – que teve de abandonar os tons apocalípticos, o juízo universal e a revanche dos humilhados no “outro mundo” para se adaptar à modernidade –, nem a esquerda – que, em geral, reconciliou-se com os princípios da democracia liberal e as regras do mercado. Por isso, desde o início do século XXI, a cólera passou a se expressar de maneira cada vez mais desorganizada, dos movimentos anti-globalização às revoltas dos subúrbios" (Cap. III)

Com qual objetivo é que se tornando mais ou menos claro à medida que os fatos vão se sucedendo: radicalização à direita e afastamento das esquerdas do jogo político. Obviamente que o neoliberalismo, aspecto não explorado por Da Empoli neste livro, toma seu assento neste caos. Pauperização, uberização (proletarização extrema), endividamento das pessoas e do Estado, desrregulamentação total da economia, violência (inclusive policial), são umas das consequências decorrentes desse caos. Em meio à bagunça, à "balbúrdia", à desordem econômica e política, uma coisa é certa que se mantém na ordem: o capital. 

Os engenheiros do caos, os spin doctors, não são necessariamente donos das empresas de dados, tal como Bannon, mas podem ser associados ou ainda meros contratantes. O que interessa é a nova  visão e estratégia política envolvida, onde o novo marketing é fundamental.

 Então há uma convergência interessante: as redes sociais, Facebook (mais Whatsapp), Youtube e Twitter; políticos de extrema direita (e muitos de direita); bilionários (como Bannon) com dinheiro e vontade de financiar estes políticos e impulsionar o ódio nas redes; por fim os engenheiros do caos, roteiristas aglutinadores dos atores da bagunça. A receita fica completa com estes ingredientes: ódio à esquerda, ao discurso do politicamente correto, das pautas identitárias, da política tradicional, aos impostos, às políticas sociais, ao Estado... e por aí vai. Interessante: por que ninguém fala em ódio à guerra e aos banqueiros? Há um trabalho muito bem sucedido nessa espiral do silêncio.

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segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Servidores e Agentes Políticos – Quem é “funcionário público”? – Parte I

No momento em que os servidores são atacados pela mídia, Governo e Congresso se preparam para uma nova investida sobre os serviços públicos, via "reforma administrativa". Esta reforma na verdade vai incidir apenas sobre aquilo que rege o estatuto dos servidores públicos. Ocorre que a chamada PEC 32 vai interferir não só sobre os direitos dos servidores, mas também sobre os chamados “serviços públicos”. De que modo? Escapa ao grande público, inclusive aos próprios usuários dos serviços públicos, como a nova legislação constitucional afetará suas vidas.

 

Então se faz necessário um esclarecimento maior sobre o assunto “servidores públicos”.  Esclarecimento esse que normalmente não se faz, nem mesmo a mídia alternativa — por mais boa vontade que possua — não somente por falta de dados ou informações jurídicas, mas por uma confusão com a lei que vem desde a promulgação da Carta e que os meios de comunicação não fazem nenhuma questão de desfazer. A lei diz uma coisa. No imaginário popular, construído pela mídia e manipulado por ela, está outra coisa. A confusão envolve dois termos: “servidor público”, “funcionário público”. A conveniência dos vários interesses envolvidos na questão dos serviços públicos faz dirigir o emprego do termo para, ora um, ora outro. Então vamos discernir melhor sobre eles, pois é a confusão deles que obscurece o debate e atrasa a luta por melhores serviços públicos.

 

[o popular reclama contra o funcionário público e o funcionalismo, mas o que está na cabeça dele neste momento?]

 

O que está na cabeça de todo mundo. 

"Brasil gasta muito com servidores"; "pagamos muito imposto para pouco e péssimo serviço". Essas são as frases mais proferidas pelos articulistas e jornalistas da grande imprensa. A construção da frase pode variar, mas o assunto é sempre o mesmo −̶   pode haver um câmbio entre as palavras “servidor público” e “funcionário público”, que são empregadas sempre com carga negativa e grande peso Por detrás dessas meias verdades escondem-se interesses que não são explicitados de nenhum dos lados: do poder público, de quem esconde os altos salários; da área privada, pela tentativa de implodir com os serviços públicos e, por esse meio, abranger a oferta deles — em outras palavras, privatizar.

 

É preciso começar desfazendo um mal entendido sobre a palavra "funcionário público". Esse termo não existe em nossa atual legislação constitucional. A última referência a ela consta na Carta de 1946 [1] em seu título VIII, artigo 184 e seguintes. A CF de 1988, comumente denominada de "Constituição Cidadã" emprega o termo "servidores públicos" e são assim referidos a partir do capítulo VII deste documento.  A nossa Carta estabeleceu ainda a criação do Ministério Público como órgão independente do Judiciário, com funções executivas, fazendo parte, portanto, do Poder Executivo, embora esteja abrigado no Título IV (DA ORGANIZAÇÃO DOS PODERES), Capítulo IV, da Carta em tela, como "DAS FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA", com seus respectivos artigos a partir da seção I (DO MINISTÉRIO PÚBLICO).

 

O Judiciário, propriamente, está contemplado no Título IV, Capítulo III (DO PODER JUDICIÁRIO) com seus artigos nas seções seguintes. Em toda a Carta, os integrantes destes poderes são referidos como "membros", distintos de "servidores" que, como mostraremos, são descritos em capítulo à parte.

 

Esta introdução é fundamental para entender o que segue. Vejamos.

 

A diferença fundamental é que magistrados, promotores e procuradores são, de agora em diante,  denominados apenas como "membros"; o restante dos empregados públicos são denominados "servidores". Não há mais referência a “funcionário público”. Os servidores serão disciplinados pela Lei do Servidor Público L. 8.112/90, redigida pouco depois da Carta e entrando em vigência naquele ano de 1990. Da mesma forma as Leis Orgânicas do Ministério Público e do Judiciário. A Lei Orgânica do Ministério Público da União rege os Ministérios Públicos Federal, do Trabalho, Militar e do DF. Ainda está em vigor a Lei de No 1.341, DE 30 DE JANEIRO DE 1951, complementada pela Lei Complementar nº 75, de 20 de Maio de 1993. Nesta última não absolutamente nenhuma referência a "funcionário público". Na lei 1951 há apenas uma referência, em relação à admissão na carreira, que diz o seguinte:

 

Art. 3º O ingresso nos cargos iniciais das carreiras far-se-á mediante concurso de provas e títulos, entre bacharéis em Direito de comprovada idoneidade moral e que tenham mais de quatro anos de prática forense e idade máxima de trinta e cinco anos. Se se tratar de funcionário público, será de quarenta e cinco anos a idade máxima para a inscrição no concurso.

 

Como se vê, o servidor público era tratado como "funcionário público" antes da CF/88. Portanto, mesmo antes da referida Carta os membros de poderes não eram considerados como funcionários públicos comuns. Quer dizer, a confusão de quem é ou não servidor já vinha desde antes da Constituição democrática de 1988.  Assim, pelo que se depreende, a denominada Lei do Servidor Público de 1990 realizou a tarefa de retirar o termo funcionário público do código, não com o intuito de desfazer confusão, mas sim com o objetivo de facilitar a observância da lei como um todo aos servidores, cabendo aos Tribunais Superiores decisões sobre casos omissos — como da aplicação de lei penal (válida para todos) ou de equiparação de direitos (válida para os membros, quando os servidores são beneficiados, mas não vale a recíproca).

 

Portanto, em resumo, a Lei 8.112/90, Lei do Servidor Público não se aplica aos denominados membros do Ministério Público e do Judiciário. Quer dizer, juízes, promotores, procuradores, desembargadores e ministros do STF não são servidores. Os membros de poderes possuem tratamento específico nas respectivas leis orgânicas. No caso do MP do Estado de São Paulo temos a LEI COMPLEMENTAR Nº 734, DE 26 DE NOVEMBRO DE 1993. Esta estabelece, entre outras prerrogativas, como será exercida a autonomia do órgão.

 

Portanto, membros dos poderes não são — nos termos da lei — servidores públicos, muito menos funcionários públicos, embora possuam uma função pública (múnus público); sendo assim, são considerados, na interpretação jurídica, agentes públicos. Agentes públicos também são os servidores, mas de outra classe. No entender de Bandeira de Mello — entendimento esse que decorre não apenas da própria letra da lei, mas do exercício do poder — classificam-se os agentes públicos em: agentes políticos e servidores públicos [2]. A categoria de agentes políticos é composta, segundo este jurista, dos detentores dos cargos da mais elevada hierarquia e tem como incumbência traçar e imprimir a orientação superior da Administração Pública. E segundo Meirelles:

 

"Têm normas específicas para sua escolha, investidura, conduta e processo por crimes funcionais e de responsabilidade, que lhe são privativos." [3]

 

São privativos — isto é, lei específica regula suas funções e desvios, tal como os crimes de responsabilidade, previstos na própria CF.

 

Portanto, servidores públicos respondem diferentemente pelos seus atos, funções e desvios, daqueles agentes de alta hierarquia, como mencionou o ilustre jurista. O termo "funcionário público" ainda aparece no código penal, em seu Título XI, em especial nos artigos 312 a 326 — crimes cometidos por funcionários públicos contra a administração em geral. Estes crimes, denominados "crimes próprios" só podem ser praticados por pessoas que exercem uma função pública. E é exatamente por este motivo — somente nestes casos — que agentes políticos são equiparados a funcionários públicos, isto é, para aplicação do crime próprio. Aos agentes políticos também são resguardados todos os direitos que os servidores possuem — tais como adicional de férias, quinquênios, licença-prêmio, etc. Mas também possuem algo mais, que são tratadas como "vantagens do cargo" -- estas vantagens estão em lei própria [4] e não na lei dos servidores. Vantagens garantidas tais como férias de 60 dias e outras ocasionais, tais como diárias e indenizações por acumulação de cargo -- todas estas vantagens que o servidor não possui.

 

Toda essa digressão jurídica para chegar até aqui e afirmar: juízes, promotores, procuradores de justiça e procuradores federais NÃO SÃO SERVIDORES PÚBLICOS. São agentes políticos, dotados de poder de orientação e decisão, recebendo por isso, além dos direitos previstos ao funcionalismo em geral, vantagens específicas do cargo -- uma retribuição social totalmente desproporcional e que os coloca muito acima de todos os outros agentes.

O próprio reajuste de salários é realizado de forma diferente para um e para outro. Diárias, por exemplo, não dependem de aprovação e não entram na Lei de Responsabilidade Fiscal, pois são recursos inclusos na fatia do orçamento que dota o órgão. Ao receberem tais diárias não há desconto de Imposto de Renda, nem na fonte nem na declaração. As diárias estão previstas, como no caso do Ministério Público, para acumulações, deslocamentos e plantões. Além da parcela em valores há uma anotação de dias para compensação de folgas futuras. Na prática, magistrados e promotores — ou melhor, todos os agentes políticos — vendem suas férias de sessenta dias e gozam suas folgas com este dias para compensação.

 

Se tudo isso estivesse muito esclarecido para a população em geral, muito que bem. Mas o problema é: para a percepção da população em geral FUNCIONÁRIO PÚBLICO é todo mundo que trabalha para o governo (o Executivo) ou faz parte dele. Parte da população acredita que “funcionários públicos” são os deputados e senadores. E boa parte dela nem sabe que, por exemplo, professores são servidores. O grande público não faz distinção entre ESTADO e GOVERNO.  Funcionário Público é um conceito. Não é uma categoria profissional, pois não está contemplada na lei. O que está contemplado na lei é a categoria de SERVIDORES do Estado, de um lado, e a de MEMBROS, do outro. O próprio termo MEMBRO, como numa metáfora, nos remete a algo que é essencial: um membro faz parte do corpo, como um braço faz parte da estrutura do corpo humano. A percepção sobre si mesmos destes membros de poderes não reconhece na sua pessoa um funcionário público. Na sua absoluta maioria, veem-se numa posição distinta, elevada, acima da sociedade. Não é exagero o que estou afirmando — basta colher o testemunho de alguns advogados que lidam frequentemente com estes agentes para se ter uma ideia do assunto.

 

 

Dessarte quando se coloca a questão da Reforma Administrativa não se está falando em Reforma dos Poderes. É por isso que os servidores estarão incluídos na reforma, mas magistrados e promotores não. Não é necessário nem ler a PEC, basta acessar o site do Senado e ler o resumo do projeto, que na sua abrangência diz o seguinte:

 

Não vale para os chamados membros de Poder: parlamentares, juízes, desembargadores, ministros de tribunais superiores, promotores e procuradores. O governo alegou que haveria vício de iniciativa e não poderia propor mudanças para tais tipos de agentes públicos pertencentes a outros Poderes. Também não vale para militares.

Fonte: Agência Senado — https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/09/08/veja-os-principais-pontos-da-reforma-administrativa-proposta-pelo-governo

 

De reforma em reforma, os privilégios dos agentes políticos continuam, mas os serviços públicos -- dada a diminuição e esmagamento da classe dos servidores -- se degradam. Ninguém quer esclarecer estas coisas: o maior gasto é com a manutenção dos agentes políticos, que são a estrutura do Estado. Não é de hoje que a mídia em geral — jornal, TV, rádio e agora até mesmo a internet — luta incansavelmente contra a figura imaginária do "funcionário público". Apresentadores de jornal, tal como o falecido Ricardo Boechat, aproveitam o seu espaço diário para bombardear os serviços públicos e os gastos governo com pessoal, confundindo a população entre uma coisa e outra. O Jornal Folha de São Paulo, a título de exemplo, reiteradamente ainda estampa nos títulos das notícias o "salário médio do funcionalismo". Uma falácia, pois nessa média entram os proventos de servidores e de membros, dando a impressão que a média salarial é alta [5]. 

 

A diminuição dos serviços públicos — com fuga de usuários para a iniciativa privada, tais como os planos de saúde — é de interesse dessa grande imprensa e da grande mídia, pois o objetivo é vender a ideia de que os impostos são altos porque o serviço público é perdulário e ineficiente. Ninguém quer esclarecer devidamente estes pontos — nem os políticos, nem ministros, nem juízes, nem promotores, nem procuradores  — dado que escamotear estas filigranas jurídicas é essencial para a  manutenção dos privilégios dos verdadeiros privilegiados. Daí a opacidade do debate. O que se conseguirá com a Reforma não vai ser absolutamente uma economia para o Estado, mas a deterioração dos serviços públicos já bastante atacados e que, diga-se de passagem, nunca atingiu um ótimo. Os verdadeiros gastos inúteis continuam, como vimos, com a manutenção de privilégios e prerrogativas dos agentes membros de poderes: carros, auxílio moradia, auxílio livro, diárias exorbitantes, entre outras coisas que são garantidas a qualquer membro.

 

Em outras palavras, o termo "funcionário público" é um termo vazio de significado prático (já que não está, de modo específico, tratado na forma da lei; é um equivalente significante apenas), mas pleno de sentido simbólico, posto que habita o imaginário da população de uma maneira negativa. Esse descrédito parece ser uma tradição brasileira. Jânio Quadros, nas suas campanhas, elegeu-se em grande medida com o mote da moralização da política e do "funcionalismo público". A diferença, a partir da CF 88, é que os agentes políticos conseguem se blindar, preservando seus privilégios enquanto os serviços públicos, junto com estes os servidores, sofrem cada vez mais.

 

Nos últimos anos observamos um deslocamento sub-reptício e ainda mais capcioso do termo "funcionário público". Trata-se de um trabalho de semiose da mídia: ao invés de referir-se agora a "funcionário público" para todos que trabalham para o Estado, todos são tratados doravante como "servidores públicos". Por isso vemos estampado: "Servidor público ganha o dobro, em média, que trabalhador da área privada". É uma grande mentira, sedimentada numa enorme confusão praticada de forma intencional.

 

E o que dizem os membros? Publicamente, nada. Privadamente não gostam de ser confundidos com a figura de “funcionários públicos”, muito menos com os próprios servidores. A visão de si mesmos é aristocrática, calcada num sentido de alta hierarquia e um senso de dever e obrigações que, assim entendem, paira acima da sociedade. Desse modo estão sempre a justificar seus privilégios -- tal como o Auxílio Moradia. Não se veem como cidadãos comuns e agem de acordo com isso, seguindo uma ética própria da alta hierarquia (tratamento e deferência especial). Vale mencionar o exemplo recente do desembargador que perante uma fiscalização do uso obrigatório de máscara, queria desobedecer lei prevista para todos, arrogando-se o direito de interpretá-la ex tempore — fora do exercício legal do cargo. Há muitos magistrados e muitos promotores que gostariam que não existisse a classe dos servidores ou dos "funcionários públicos". A ideia de terceirização é algo que ganha terreno nesta seara.

 

Há muitos outros aspectos sobre os serviços públicos que deveriam e devem ser esclarecidos ao grande público e à população em geral, tais como a distribuição de recursos do orçamento, etc. A mídia alternativa, por mais boa vontade que tenha, não consegue esclarecer todos estes pontos.  A população é prisioneira de uma narrativa que massacra a figura simbólica do "funcionário público" todos os dias.

 

Enfim, temos o cenário de uma espécie de divisão social, bem ao gosto das classes médias, que na visão destas a sociedade divide-se entre os pagadores de impostos (da área privada) e os gastadores (da área pública). Há outras manipulações ainda, tal como afirmar que o número de "servidores" no Brasil é dos mais altos do mundo, entre outras balelas e falácias que dificilmente são desfeitas. A população fica contaminada desse discurso, ainda que sofra diariamente com a falta de servidores. [6]

 

A campanha para que os servidores (de verdade) ganhem menos – ou para que ganhe o mesmo que a área privada -- prossegue fortemente nestes tempos autoritários e tem conseguido seus resultados. Por sua vez, os agentes políticos escapam (em termos práticos) desse massacre. Primeiro porque estão distantes fisicamente da população; segundo porque as leis restritivas nunca os atingem.

 

Alguns profissionais sofrem mais a esse ataque do que outros, especialmente naquelas áreas em que o atendimento ao público é maior: ensino e saúde. Na realidade, abstraindo os salários de magistrados e promotores, a média salarial desses profissionais é baixíssima. Enquanto vigorar essa situação de confusão −̶   artificialmente produzida −̶   o que temos é a derrota do Estado de Bem Estar social. As disparidades só aumentarão a cada reforma, seja ela administrativa ou previdenciária. Não é possível acreditar, em termos materiais, que quaisquer dessas reformas solucionem a tão propalada questão orçamentária. De todo modo, um bom começo é desfazer essa confusão entre quem é servidor e quem não é — de fato e de direito.

 

Notas.

 

[1] https://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1940-1949/constituicao-1946-18-julho-1946-365199-publicacaooriginal-1-pl.html

[2] MELLO, Celso A. B. de. Regime constitucional dos servidores da administração direta e indireta. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1990. p.09; ver também: MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo, Malheiros Editores, 2003. p.75. Para este jurista, diferentemente de Bandeira de Mello, os servidores públicos não são agentes públicos, mas uma subespécie de agente administrativo. O que entendo estar correto.

[3] MEIRELLES, op. cit. p.75

[4] A título de exemplo: https://amp-mg.jusbrasil.com.br/noticias/100616057/vantagens-eventuais-dobram-salarios-de-juizes-de-sp

[5] Digamos que um Promotor de Justiça ganhe 40 mil; um servidor do Ministério Público ingressa com 4 mil, atualizados no último concurso. Se fizermos a média -- como a Folha de São Paulo gosta de fazer sempre com estes números -- temos 22 mil. E daí a manchete mentirosa: "Servidor ganha em média 22 mil". Não se procura obter a média salarial de servidores, servidores de fato e de direito.

[6] E talvez não seja para menos, pois o que conta é o dia-a-dia da população. Uma mãe leva seu filho numa UBS (Unidade Básica de Saúde); se o atendimento for simples e puder ser realizado pela enfermagem, sai dali feliz. Se precisar de um atendimento médico vai precisar esperar, pois há falta de médicos nas unidades básicas — o mais comum agora é encontrar um médico só para o atendimento — como eu mesmo pude constatar recentemente.  Se precisarmos de um médico especializado vamos ter que agendar uma marcação para outro dia e outro horário e ainda segundo as agendas disponíveis. Seremos direcionados para um hospital centralizador -- como o da Santa Casa, por exemplo. Não menos de quinze dias para isso. Enfrentaremos esse dia num prédio bem frequentado, com muitos pacientes a serem atendidos, todos dispostos em saguões enormes.  Uma vez atendido, poderemos precisar de exames e seremos novamente conduzidos, com uma guia de exame na mão para um novo agendamento -- apenas para o agendamento, não para o exame. Estas "janelas" para abertura de agenda é que represam o atendimento no SUS. Enfim, o que quero concluir é que é preciso aumentar em muito a quantidade de pessoas trabalhando nestes serviços -- no caso em questão, mais médicos e mais unidades para exame, pois absurdamente insuficientes. Um paciente que enfrenta todo esse percurso doloroso não vai, ao fim, ainda que agradecido pelo atendimento, possuir uma simpatia muito grande por "funcionários públicos". Repito: ainda que demonstre agradecimento, se tudo der certo. O serviço público é sabotado pelo próprio Estado e isso precisa ser enfrentado, debatido e esclarecido. É preciso mostrar quem são os verdadeiros "marajás".