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segunda-feira, 12 de julho de 2021

Relatos de viagem à Síria e ao Líbano.

MIRHAN, Lejeune. Relatos de Viagem: Síria e Líbano. São Paulo: Anita Garibaldi, 2015. 

Breve Resumo.

Trata-se de relatos, artigos e depoimentos de viagem  à Síria e ao Líbano pelo Comitê de Solidariedade ao Povo da Síria, consistindo na 1ª Missão de Solidariedade à Síria. Foram realizadas visitas a vários órgãos e partidos daqueles países. Sempre no sentido de obter informações e reiterar apoio à causa de defesa dos povos que lutam contra a opressão imperialista. Opressão esta financiada principalmente pelos EUA, com a ajuda e comando de Estados Fundamentalistas como a Arábia Saudita, dentre eles. Redes de grupos terroristas, mercenários e voluntários formam milícias e pequenos exércitos que invadem os territórios da Síria e Líbano com o fim de ajudar a depor regimes legítimos formados nestes países.

Entretanto, a resistência foi eficaz em refratar estes ataques, mesmo após a II Conferência de Genebra sobre a Síria, onde nações que se diziam "amigas" tentavam manobrar os destinos do povo sírio. A Conferência, a despeito de tudo contra a Síria, findou inócua e sem consensos. Resultou fortalecido o presidente Bashar Al Assad.

Uma equipe de seis pessoas ao todo para lá viajaram, representando várias entidades e partidos do Brasil, dentre eles o PCdoB e o MST, revistas e grupos de trabalho e grupo de estudos. Ao final subscreveram um Manifesto de Solidariedade ao Povo Sírio.

 

Comentário.

O livro −̶   instrutivo e bem organizado −̶   dá um panorama muito bom e quase completo do que está acontecendo verdadeiramente na Síria. Ocorrências e acontecimentos que a mídia ocidental simplesmente ignora ou distorce, o que é pior, invertendo os sinais dos atores em ação. Qual seja: tentando mostrar que é o Estado Sírio e os partidos que o apoiam é que são terroristas, quando na verdade trata-se do contrário. Os verdadeiros terroristas, exércitos fundamentalistas treinados especialmente na Arábia Saudita, são denominados "rebeldes" pelas imprensa ocidental −̶   com exceção da mídia alternativa, claro. Mas a Síria resiste, com apoio direto ou indireto de nações verdadeiramente aliadas: Irã, Rússia e China; países que não concordam com o tipo de interferência que os Estados imperialistas operam nesta faixa do globo.
Não se trata de relatos de combates, como alguns jornalistas pretendem vender uma realidade. São relatos de trocas de informações, notícias e estudos, enfim as impressões in loco do que está ocorrendo contra o povo e o governo legítimo da Síria, último reduto laico e pedaço de território muito cobiçado pelos EUA e aliados, cujos interesses geoestratégicos giram em torno do petróleo, principalmente. 
Há muito mais no livro. Recomendo fortemente como alternativa às notícias falaciosas que circulam por aqui tendo como referência aqueles países. O professor Lejeune Mirhan também possui um blog, de onde podemos obter mais sobre esta obra e outros estudos, além de poder adquirir seus livros [1]. 


Nota
[1] https://www.lejeune.com.br

domingo, 27 de junho de 2021

Do tráfico ao prato - Agência Pública

Do tráfico ao prato - Agência Pública: Entenda como o gado de um 'narcopecuarista' foi parar nos frigoríficos

sexta-feira, 14 de maio de 2021

O porquê de assistir à série "Grande Guerreiro Otomano" (Ressurrection, Ertugrul).

...a poesia é mais filosófica e mais elevada do que a história, pois a poesia se ocupa mais do universal, ao passo que a história se restringe ao particular... (Aristóteles, Poética, 1451b5)


Série turca que foi apresentada em forma de novela, tais como as nossas − quando nos bons tempos, em que se empregavam escritores novelistas de alto nível, como Dias Gomes.

 

Um bom argumento a favor da questão, que apresento já de pronto, é o de poder entrar em contato com uma dramaturgia e uma cultura bem diferente da nossa. E por dramaturgia entendo aqui no sentido amplo: a arte de representar − aquilo que Aristóteles denominava imitação da ação (Poética - 1448). Em outras palavras: o modo de representar dos atores, a expressão de seus rostos, a linguagem corporal e a simbologia dos gestos; a direção da ação; o roteiro da ação; a gravidade do drama, se realista, se romântico, se outra coisa.

 

Ressurrection é romântico, assim como a maior parte da dramaturgia contemporânea ocidental. Ao menos para aquelas produções mais comerciais, encenadas no formato de  narrativa mais clássico e onde a figura do heroi se destaca. 

 

Esta série (Dirilis Ertugrul, no original turco) não foge muito às regras comerciais, mas é possível perceber algumas (boas) diferenças − e para isso é preciso paciência para assistir aos primeiros capítulos e avançar nas cinco temporadas, de mais ou menos cem capítulos cada. Como eu já disse, trata-se de uma novela feita para a TV. Há cenas de muito choro, muito sofrimento, muito drama mesmo; um alívio: não chega nem perto dos dramalhões mexicanos. E há momentos de muita ação, lutas bem coreografadas, tensão e suspense bem ao gosto Hollywood. Mas com toques de uma outra dramaturgia, bem menos canastrona que as norte-americanas. 


Também como as séries ocidentais, há aqui um forte conteúdo ideológico. E é menos pelo motivo religioso que o político: uma certa ênfase nacionalista com  afirmação de valores culturais, sociais e religiosos.  

 

Os turcos aqui lutam por espaço, condicionados em uma geografia marcada por migrações constantes, seja pela busca de novos pastos, seja pelo crescimento demográfico. Nessa dinâmica, há o enfrentamento dos Cruzados (especialmente os Templários) de um lado e dos mongóis de outro, um a leste outro a oeste. 


Ressurrection é uma produção que se encaixa bem no projeto político de Erdogan, de edificação nacional, com apelo religioso[1].

 

Mas há nuances. A religião, embora uma constante, é apresentada de modo moderado, desfazendo visivelmente alguns estereótipos criados e imaginados por nós, não muçulmanos. Presente também a ciência, mais desenvolvida aqui neste mundo islâmico que no Ocidente Medieval Cristão. Um bom momento dos episódios são as aparições de Ibn Arabi, sábio filósofo da Andaluzia, cuja obra ainda não está totalmente estudada e elucidada, segundo a Wikipédia [2]. A conferir. 

 

A série, enfim, é uma ficção, uma bela suposição dos fatos que poderiam ter acontecido naqueles tempos (ao menos onde nossas fontes alcançam). No final da bela abertura de apresentação da série há esta advertência: "histórias e personagens desta obra foram inspirados em nossa história". Quem é historiador ou domina o mínimo de história sabe ou precisa saber que as fontes, escritas ou arqueólogicas, sobre esses séculos XII e XIII são mínimas. E as existentes são, muitas vezes, duvidosas, com acréscimos ou supressões. Não há como saber ao certo seus detalhes. 

 

Mesmo as aparições de ibn Arabi na história são uma incógnita. O que é certo para nós é que os turcos viviam em tribos, eram nômades e disputavam o espaço entre si; realizavam um comércio com o mundo muçulmano tanto quanto com o cristão e estabeleceram muitos entrepostos comerciais, garantidos por associações de tribos; combateram os Cruzados, a oeste, quanto os Mongóis, a leste;  combatendo estas frentes, unificaram-se sob Osman, filho de Ertugrul ("Arturo" é o som que parece ouvirmos), garantiram a ocupação de seus territórios e avançaram, durante séculos, rumo ao Império Bizantino, fazendo-o cair sob Mohamed, o então sultão no século XV. Se Osman é mais importante que Ertugrul, não se pode duvidar que este preparou o terreno para a unidade dos turcos, sendo assim um grande líder guerreiro.


A vantagem de uma série assim tão longa é a de perceber a complexidade do processo. Toda construção de uma identidade é uma elaboração lenta, admite um toque artificioso, e necessita de um discurso preciso e eficiente em torno da legitimidade da união. A montagem da série em forma de novela permite-nos a imagem desse quadro.


Mas vale a advertência deste humilde historiador: a história é mais modesta que sua crônica, mas muito mais complexa que seu resumo. 


Por tudo isso vale a pena assistir à série.  Até o fim. E capítulo por capítulo. 



Notas. 

[1] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-44599658

[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Ibn_Arabi


Site confiáveis sobre história islâmica e islamismo:

https://historiaislamica.com/pt/quem%20foi%20ertugrul/

https://iqaraislam.com/o-califado-fatimida

https://iqaraislam.com/licoes-ertugrul


sexta-feira, 7 de maio de 2021

O valor do trabalho em BigMac

 O valor do trabalho no Brasil é algo muito baixo. Todos nós sabemos. Observemos a tabela abaixo, que qualquer um pode compreender facilmente.






Quer dizer: se você ganha um salário mínimo são necessárias quase quatro horas para comer o "big lanche", sem contar com a bebida e as batatinhas. Mas é possível comprar na "oferta", um "combo", como se diz. Esse valor refere-se a Janeiro de 2021 referido no índice BigMac do Dicionário Financeiro [1]. Nos Estados Unidos, esse mesmo lanche custa US$ 5,66, segundo esse índice, que nos serve a estas comparações. Neste país o salário mínimo está em US$ 7,25 -- por hora. Para uma semana de 40 horas de trabalho temos US$ 290. No mês, considerando-o como quatro semanas, temos US$ 1.160. É bom lembrar que a semana de trabalho nos Estados Unidos da América é de 40 horas semanais, não 44 horas como aqui no Brasil. Então temos resumidamente a tabela abaixo (valores em dólares):






Pelo que podemos depreender da comparação entre as duas tabelas, nem mesmo nos Estados Unidos o trabalhador que percebe um salário mínimo está em boas condições de poder de compra. Mas temos nuances nessa palheta de cores. Vamos lá. 

A média salarial no Brasil em 2019 estava em R$ 2.308,00 [2]. A considerar a extrema desigualdade na distribuição de renda no país, é preciso imaginar que a maioria dos brasileiros vivem com menos que isso. E é preciso considerar que essa média salarial é dos que percebem algum salário; se vamos à média dos rendimentos por família, isto é, a renda domiciliar per capita, chegamos a incríveis R$ 1,406,00, em 2019, segundo dados do IBGE, relatório de 2020 [3]. Ainda segundo este relatório, mais de 13 milhões de brasileiros vivem na pobreza extrema, quer dizer, ganhando até US$ 1,90 por dia -- US$ 57 por mês ou pouco mais de R$ 90,00 no valor do dólar de 2011 (PPC de 2011 a 1,66 o dólar). Para estes, um BigMac corresponderia a  1/4 de seu rendimento total -- uma semana inteira de trabalho, vamos dizer. 

Essa "equação BigMac" é um dado abstrato. Mas dados abstratos, bem interpretados e compreendidos em sua própria dimensão, servem muito bem para refletir sobre os fatos concretos. Assim, a história do preço de um lanche pode muito bem exemplificar a medida do nível de pobreza -- ou do valor do trabalho -- de uma nação. Realmente, que "Deus tenha misericórdia" de uma nação assim tão pobre. 










[1]https://www.dicionariofinanceiro.com/big-mac-index/#:~:text=Como%20%C3%A9%20calculado%20o%20%C3%8Dndice%20Big%20Mac&text=Por%20exemplo%2C%20analisando%20em%20janeiro,Brasil%20R%24%2021%2C90.
[2]https://educa.ibge.gov.br/criancas/brasil/nosso-povo/19626-trabalho-e-rendimento.html
[3]Síntese dos Indicadores Sociais, IBGE, 2020, p.58

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Big Tech: ascensão dos dados e morte da política.


MOROZOV, Evgeny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. Trad. Cláudio Marcondes. São Paulo: Ubu Editora, 2018. 

Trata-se de uma reunião de artigos escritos pelo autor desde 2014. Segundo Ronaldo Lemos (orelha do livro): "Morozov é uma das vozes mais necessárias para se pensar o papel da tecnologia hoje...".

Crítico da "indústria" do Vale do Silício, Morozov não envereda, neste livro, por caminhos fáceis para refletir sobre "inovação", "empreendedorismo", "economia compartilhada", "IA" (Inteligência Artificial), "Big Data" e outros tantos termos derivados das soluções tecnológicas. Na visão do autor não será a tecnologia, especialmente a de softwares e aplicativos, que resolverá nossos históricos problemas. Problemas políticos exigem resoluções políticas. O maior inconveniente  das soluções por aplicativos e Big Data é que estas se voltam quase exclusivamente para soluções individuais e não coletivas. A política como solução de problemas públicos ficou esvaziada pelo discurso de que tudo pode ser resolvido pela tecnologia. Ora, não só isso é improvável como não seria desejável. Improvável porque as soluções tecnológicas advindas do Vale do Silício buscam resultados econômicos, não sociais. Não desejável porque os verdadeiros problemas nunca são de fato resolvidos: o desemprego, a precarização da vida e da saúde, o empobrecimento, entre outras mazelas. E mais: as novas tecnologias aplicadas contribuem para um déficit democrático cada vez mais maior, de uma vez que o espaço público é constantemente reduzido e o consumismo, cada vez mais exacerbado, induz ao isolamento entre os seres, criando verdadeiras "cercas invisíveis. Ao invés de conectar, as redes terminam por separar as pessoas.

Há ainda o problema da vigilância do cidadão: a observação contínua dos indivíduos, cujas escolhas são orientadas por algoritmos, permite também a vigilância estatal pelo rastreamento de dados. As fake news, subproduto das empresas de tecnologia de dados, tornaram quase nulo o debate público e democrático.

Enfim, as opções tecnológicas não vieram para "salvar" o mundo dos problemas. Ao contrário: elas se aproveitam dos problemas estruturais do capitalismo −̶   como o dos transportes, por exemplo −̶   para obter lucros, enormes lucros. Não será com mais tecnologia que iremos resolver nossos problemas, mas com política e decisões democráticas para as grandes questões do momento, tais como a do meio ambiente, a segurança, a desigualdade e outras tantas.

 

Evgeny Morozov, nascido na Bielorrúsia em 1984, é formado em Economia e Administração de Empresas pela AUB −̶   American University in Bulgaria. Formou-se PhD em História da Ciência na Universidade de Harvard em 2018. É autor de vários livros na área do solucionismo tecnológico.


Ronaldo Lemos é advogado formado pela USP e com mestrado pela Harvard. É professor e  pesquisador na área de tecnologia e direito digital. (informações da Wikipédia)


sábado, 20 de março de 2021

Desconstruindo Jeca. Uma leitura de Urupês.

LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Globo, 2007 (1918).

Urupês, 1918. Primeira obra de Lobato, mas na verdade,  uma reunião de contos e artigos já escritos desde 1914, quando já enviava cartas para uma seção do Jornal O Estado de São Paulo. Os contos, publicados numa revista −̶   Revista do Brasil, 1916 −̶   seriam reunidos, juntos aos artigos, no livro Urupês. Obra que venderia bem, a considerar os números de época, especialmente após uma menção à figura do caboclo por Rui Barbosa numa de suas palestras.

Uma leitura atenta do conto "Urupês" não escapa à consideração de um juízo no mínimo preconceituoso de Lobato. Não é possível, no contexto da descrição, identificar uma intenção puramente ficcional. Mesmo porque "Urupês" foi enviado como carta ao jornal O Estado, em seguida de "Velha praga". Nesta, atenta para o problema das queimadas; naquela, atribui a culpa ao caboclo. Embora possua uma aparência de um conceito sociológico, devido aos traços acentuados da figura do caboclo, na verdade trata-se de um prejuízo, pois a descrição é feita sem nenhuma reconstrução, qualquer que seja ela. E, como dissemos, o caráter ficcional é irrelevante, posto que também não há nenhuma construção. O conto é exposição viva da observação direta do autor, quase nada mais. Se houver qualquer dúvida quanto a isso, que se leia atentamente, repito. Mas o próprio Lobato nos diz:

 

"Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade!" (p.170)

 

E por aí vai. Muito bem escrito, observe-se. Assim como todos os outros contos. Mas neste em especial é possível identificar algumas ideologias de época, ainda fortemente vigentes, tal como a da degeneração das raças. Jeca é um caboclo, mestiço de branco com índio, segundo tal pensamento. E da "mistura de raças" teria se sucedido essa figura que Lobato tanto execra. E o pior: o sangue branco teria origem também impura. Vejamos este trecho:

 

"Dia virá em que os veremos [os caboclos], murchos de prosápia [orgulho], confessar o verdadeiro avô:

̶   'Um dos quatrocentos de Gedeão trazidos por Tomé de Souza num barco daqueles tempos, nosso mui nobre e fecundo "Mayflower".' (p.169)

 

Gedeão é uma figura bíblica, um dos juízes de Israel que teria libertado seu povo da invasão estrangeira, à frente de trezentos seguidores (Juízes, cap. 7 da Bíblia). Lobato faz coincidir, embora mencione quatrocentos, uma e outra coisa, simbólica e real −̶   os que aqui desembarcaram, muitos em degredo, eram descendentes de judeus, agora denominados "cristãos novos". É essa assimilação que sustenta também a mítica dos trezentos ("trezentos deputados bandidos", etc) e a mítica de que aqui se desenvolveu uma colônia de bandidos, já que de "degredado" para "ladrão" é um deslocamento muito fácil. "Nosso mui nobre e fecundo" é uma expressão de plena ironia cínica.

Obedecendo à "lei do mínimo esforço" o caboclo, segundo Lobato, é refratário ao progresso:

 

"Seus remotos avós [os tais quatrocentos de Gedeão] não gozaram maiores comodidades. Seus netos não meterão quarta perna ao banco. Para quê? Vive-se bem sem isso." (p.171)

 

Para Lobato o caboclo é tão preguiço que constrói um banquinho com apenas três pernas, a fim de evitar maiores esforços. E reforça logo em seguida:

 

"Da terra só quer a mandioca, o milho e a cana. A primeira, por ser um pão já amassado pela natureza. Basta arrancar uma raiz e deitá-la nas brasas. Não impõe colheita, nem exige celeiro. O plantio se faz com um palmo de rama fincada em qualquer chão. Não pede cuidados. Não a ataca a formiga. A mandioca é sem-vergonha." (p.172)

 

O caboclo, diz Lobato, é tão degenerado que seria digno de um estudo de Silvio Romero. Bem conhecemos este: defensor do evolucionismo à Spencer, sua obra é praticamente toda calcada nessa filosofia [1].

 

Por fim, o livro Urupês, diferentemente do conto, nos impõe outras observações. E outras contradições emergem, inclusive contra o próprio conto homônimo. Mas esta, bem como a evolução intelectual de Monteiro Lobato, é outra história. O que importa reter aqui é que este conto "Urupês" é representativo de um novo marco no debate intelectual em torno da mestiçagem. Debate que se perfilaria por todo o século XX, quiçá ainda entre nós.

 

 

Notas. 

[1]SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Cap. 1.

Silvio Romero pertencia ao círculo intelectual da chamada "Escola de Recife", defensora de tais ideias.

sexta-feira, 5 de março de 2021

O homem que amava os cachorros - Leonardo Padura


No estilo de romance policial, Padura reconstroi o assassinato de Trotski por Ramon Mercader, ex-soldado revolucionário na Espanha republicana. Contratado pela NKVD, Mercader, antes um ingênuo revolucionário, torna-se uma máquina de obedecer e é por suas mãos que morreria Trotski, perseguido pelo Stalin ao tempo de seu isolamento no poder, eliminando antigos e novos adversários. Não da revolução, necessariamente, mas da concorrência pelo poder soviético.

 

Comentário.

Por meio de qual alquimia um revolucionário se transforma numa máquina de matar e elimina outro revolucionário? Como um bravo e romântico revolucionário  é desconstruído e tornado num assassino? Como o maior revolucionário da história é acuado até a última de suas forças e eliminado em sua própria residência?

Essa é a história de lutas e traições da luta, mas também da espiral revolucionária comandada pelos bolcheviques, que souberam lidar com os reveses externos, mas também não souberam comandar a luta e a construção interna da URSS. Stálin é apenas o corolário dessa história.

O mérito de Leonardo Padura é ter descrito essa história em romance policial, magistralmente escrito de acordo com este estilo.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

As cidades invisíveis. Italo Calvino.

 

CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo, Companhia das Letras, 1990 (1972). == RESENHA CRÍTICA ==












I

Marco Polo, por meio de missões diplomáticas, oferece suas descrições das cidades do Império Mongol para o grande Kublay Khan, que quer ter uma ideia da grandeza e extensão da obra imperial. As cidades, uma vez conquistadas, são mantidas no plano ideal e administrativo do império. Por isso são "invisíveis", isto é, atualizadas por sua descrição narrativa. O segredo de Marco Polo para manter sua audiência imperial atenta é justamente a composição narrativa das cidades, ou seja, o modo de contar especial do narrador. E é pela descrição narrativa que este livro também consegue manter atento (e muito) o leitor. Qualquer leitor, acredito.

Todas as cidades podem ter algo em comum, mas certamente todas elas possuem algo que lhe é específico, peculiar, podendo dessa maneira organizar as vidas de seus moradores e dirigir sua evolução. É o que alguns arquitetos e filósofos diriam da "vida própria" de uma cidade, soma de todas as interações de sua população. Ao que me parece, é justamente aquilo que Marco Polo descreve ao grande Khan, mas de uma forma bem incomum. 

Walter Benjamin afirma em um de seus textos que a arte de narrar estava em vias de extinção. Ao menos no tempo em que escreveu O Narrador. Era o tempo do pós Primeira Guerra, a Grande Guerra, como se costumava dizer. Assim, "...os combatentes voltavam mudos do campo de batalha..." [1], isto é, pobres em narrativa devido ao drama, ao sofrimento, à dor que não queriam reviver, não queriam contar. Uma experiência dessa exige distanciamento para ser narrada, seja no tempo e no espaço. Mas uma vez contada, não será heroica, será trágica, pois:

"...nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência ética dos governantes." [2]

Então trata-se de uma interrupção da arte de narrar que passa de pessoa a pessoa, de geração a geração.

O que Italo Calvino nos apresenta é o contrário disso. É arte de narrar, de contar uma história, no seu mais absoluto estado. 


II

A obra é riquíssima em linguagem simbólica. Presta-se a muitas áreas, mas em especial pode ser a da arquitetura. Abaixo um link para uma resenha muito interessante extraída de uma revista on line. E possui um gráfico muito interessante das cidades:

https://vitruvius.com.br/index.php/revistas/read/resenhasonline/08.085/3050


III

Mais uma de arquitetura:

https://revistacult.uol.com.br/home/peruana-quer-ilustrar-cidades-invisiveis-de-calvino/




[1] BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I. Trad. Sérgio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p.197

[2] idem, p.198.



segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Cidade de São Paulo. Sem muito o que comemorar em 2021.

 

Escher - Côncavo e convexo - 1955 – Litografia - Escher Collection, Gemeentemuseum Den Haag, The Hague, the Netherlands © The M. C. Escher Company, the Netherlands. All rights reserved.


"São Paulo, aberta 24 horas." Não mais. Ao menos não para todo mundo, pois lugares seguros depois das vinte horas são caros e o transporte por sua vez já faz algum tempo que não funciona mais após a meia-noite. Os shoppings fecham às vinte duas. É interessante como ainda sobra festa na cidade, em lugares fechados, "baladas". É essa a cidade cosmopolita, que engoliu o espaço público?

 

"São Paulo, onde você encontra de tudo para comer e onde há cozinha do mundo inteiro." Não mais. Pelos mesmos motivos acima. Além disso, a maior parte das refeições agora é via fast food ou algum restaurante desse tipo disfarçado, como alguns mexicanos ou indianos por aí. Existe um turismo gastronômico em São Paulo para todo tipo de bolso. Achar que vai comer uma comida típica é outra coisa. No mesmo raciocínio podemos incluir as comidas regionais. Nestas ainda é possível, devido à permanência de pequenas tradições, encontrar algo de original. Mas está cada vez mais difícil. Os chefs de cuisine já dominaram o pedaço com suas cozinhas gourmets.

E o que encontrar em São Paulo, facilmente? Prédios de apartamentos. Modelo de cidade que foi se construindo ao prazer (e regalo) de empreiteiros e agentes ligados ao capital imobiliário, não seria para menos. Políticos incluídos, claro. O resultado...? Vejamos.

 

-Rios de São Paulo. Todos cobertos ou canalizados. Nenhuma novidade. Já nos acostumamos às enchentes, que já diminuíram sim, com... mais obras! (leia-se: enormes buracos de concreto para escoamento das águas);

-Trânsito. Cada vez mais infernal. Todos reclamam. Ninguém quer deixar o carro em casa, com razão, pois o transporte público... bem, sabemos. E é caro, pois é preciso subsidiar a "eficiência" da iniciativa privada;

-Árvores. Cada vez menos árvores. E cada vez mais espanadores de pó (palmeiras). É um dos fatores que torna o clima de São Paulo insuportável no verão e cruel no inverno;

-Barulho. Muito barulho. E existe até competição de quem faz mais barulho −̶   seja com música desambiente ou com som de carro. Nem estou me referindo aos "pancadões", alvo preferido das reclamações em jornais; buzinas, alarmes, TVs de 12 milhões de pessoas, tudo isso junto formam um enorme ruído de fundo altamente contrastável com o silêncio de quando vamos para o interior, por exemplo;

-Poluição. A eterna poluição. Qual será a cor de nossos pulmões neste momento?;

-Sujeira. São Paulo está se especializando nisso, a despeito das empresas de limpeza terceirizadas, muito eficientes; a sujeira dos pombos está cada vez mais difícil de limpar, até mesmo no Metrô. Ou São Paulo acaba com os pombos ou os pombos acabam com São Paulo;

-Muros. Grades. Portões de ferro. Deixam a cidade maravilhosamente embelezada, não? Mas há um escape: o grafite. Isso quando não chega algum prefeito e manda pintar tudo de cinza; há quem goste da arquitetura paulistana, que deita o passado ao chão todos os dias;

-Segurança. Não sei de quem tenho mais medo.

 

Esse é o conjunto de coisas que nos incitam à intolerância e à falta de civilidade entre nós, pois não há como existir qualquer coisa assim num ambiente tão hostil e inóspito. Mas há quem ponha a culpa no caráter do brasileiro, que, segundo esse tipo de avaliação, "não se adapta à vida da sociedade democrática" ou qualquer outra bobagem liberal do gênero.

 

Alguma coisa de boa? Lógico que a oportunidade de emprego e de moradia são elementos fundamentais numa cidade. Isso São Paulo já fez melhor −̶   mas ainda é a esperança de milhares de famílias. Estas merecem a verdadeira homenagem, pois são elas que mantêm a cidade ainda viva, fazendo circular algum sangue no corpo degradado de concreto vertical.

Parabéns povo de São Paulo. Aquele que trabalha mesmo. E só.

 

 

 

"De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas."

Italo Calvino, Cidades Invisíveis, III

domingo, 17 de janeiro de 2021

Machismo e misoginia no Xadrez. O lugar da mulher.

LEYDEN, Lucas van - The Game of Chess, c. 1508
Oil on oak, 27 x 35 cm - Staatliche Museen, Berlin
Retirado de: <https://www.wga.hu/cgi-bin/search.cgi?author=van+Leyden&time=any&school=any&form=any&type=any&title=&comment=&location=&from=40&max=20&format=1> 


Sim, existem jogadoras de xadrez mulheres... Talvez isso não se constitua uma novidade aos apreciadores do jogo, mas certamente é uma aos não iniciados. Se bem que com a série Netflix Gambito da Rainha o negócio tenha mudado. Mas para a maior parte do público que não acompanha o esporte (sim, xadrez é um esporte) essa é uma notícia como outra qualquer.

Judit Polgár, húngara de origem, iniciou-se desde muito cedo na atividade, estimulada por seu pai, que acreditava que entre homens e mulheres não havia diferença intelectual e de habilidades que justificassem superioridade de um sobre o outro. De fato, nada a impediu de tornar-se GM (Grande Mestre) no xadrez −̶   aos 15 anos de idade [1].

A interessante série da Netflix apresenta, em alguns momentos (senão quase todos), o preconceito masculino no meio enxadrístico. Mas a série é otimista, ao final, ao apresentar os adversários como pessoas resignadas ao gênio feminino.

Na vida real nem sempre ocorre assim. É o caso que agora se tornou clássico de preconceito machista para com a jogadora Anna Rudolf, também húngara, ocorrido em 2008. Vencia uma série de jogos num torneio da França naquele ano, inclusive contra um GM francês, Christian Bauer, quando a certa altura foi acusada por outros competidores de jogar com a ajuda de um ENGINE (máquina −̶   um computador, um software, resumindo...). Como? Segundo seus adversários, todos letões (o francês mesmo não a acusou) ela fazia uso do software por meio de um lipstick (batom) que permanecia em sua mesa enquanto jogava [2]. Isso mesmo, segundo os jogadores da gloriosa Letônia, Anna Rudolf teria recebido sinais de seu lipstick, que indicava a melhor jogada a seguir. Como ela teria interpretado esses sinais é que seria um grande mistério, se tudo isso não passasse de uma grande bobagem de homens ressentidos de suas próprias deficiências. Certo é que Anna não está entre os jogadores(as) de maior rating, mas as partidas não dependem apenas do rating do jogador. Depende de muitas variáveis, não só preparo. Jogadores de xadrez são conhecidos e reconhecidos pelo espírito desportivo que demonstram nas competições. No entanto, nesta em especial muitos não quiseram cumprimentar a adversária −̶   como vimos sempre na série, após o final das partidas, estendendo a mão ao cumprimento. A propósito, a série em tela parece até ter se inspirado em Anna Rudolf. Confiram. 

Nada foi provado contra Anna Rudolf, mas permaneceu um pouco o trauma. A jogadora é conhecida pela sua vaidade feminina. Quando um poder desse invade uma seara masculina os egos ficam ofendidos. Arranja-se sempre uma desculpa ou um modo de desqualificar o outro lado. Para mim o que fica é um exemplo vergonhoso da condição do macho, tão vergonhoso quanto frágil e ridícula foi a acusação contra Anna Rudolf, inteligente, charmosamente vaidosa e... mulher.

 

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Judit_Polg%C3%A1r - acesso em 17/01/2021

[2] https://www.nytimes.com/2008/01/13/crosswords/chess/13chess.html acesso em 17/01/2021. Mais detalhes sobre o fato numa entrevista dela com Judit Polgár, em: https://www.theatlantic.com/family/archive/2019/09/female-chess-masters-talk-sexism-and-friendship/598003/

Para os aficcionados a partida contra Bauer pode ser vista em: https://www.youtube.com/watch?v=eye_RvGGW-Y