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domingo, 23 de setembro de 2012


Casa de Bonecas
IBSEN, Henrik. Trad. Gabor  Aranyi. São Paulo, Ed. Veredas, 2007 (1879).

Trata-se de uma peça de 1879, e as formas do realismo eram então vigentes. E uma das críticas mais incisivas e pertinentes deste movimento é ao moralismo burguês, que tenta acima de tudo manter as aparências.

História e enredo.
Para um estudo mais detalhado da história em que se desenrola a peça, aconselho a consultar a wikipédia, mas resumidamente é o seguinte:
Uma dona de casa, Nora, tenta manter as economias domésticas em estrito controle ao mesmo tempo que tenta proporcionar conforto à família, sem abrir mão do consumo - especialmente o supérfluo. Ocorre que no início do drama nem o espectador nem o marido, dentro da história, sabem disso. Ao marido, Helmer, Nora se apresenta como uma gastadora, que não consegue se conter, comprando presentes e enfeitando a casa - como no Natal, onde a cena se passa no primeiro Ato. Helmer a trata como uma criança, de modo condescendente. Nora é alegre, cheia de encanto e esperança na vida. O que Helmer não sabe é que Nora contraiu um empréstimo, por mãos de um homem inescrupuloso - Krogstad, um advogado. Este, assim que sabe da notícia de que Helmer passará à direção de um Banco, onde também trabalha, tenta chantagear Nora, com o fim de não apenas manter-se no emprego, mas obter uma posição melhor. O que Helmer também não sabe, e o público vem a saber depois também somente por meio de uma conversa com a Sra. Linde (Cristina) - antiga conhecida de Nora - é que o empréstimo contraído tinha por finalidade uma viagem, empreendida por ambos, marido e mulher, anteriormente, a fim de que Helmer se restabelecesse de uma doença que o consumia. Enfim, a mulher salva o marido, não menciona a fonte do dinheiro, aliás, menciona falsamente: diz que a quantia veio do pai. Na realidade este não tinha o dinheiro e estava à beira da morte. O pai de Nora teria servido como aval do empréstimo contraído com o advogado, mas morre antes de assinar a promissória. Nora falsifica a assinatura e obtém o empréstimo, mas Krogstad sabe disso. Não diz nada a Nora, até aquele momento, chantageando-a de modo oportuno. Nora mantém-se confiante de que o marido irá compreender tudo - é a espera do "maior dos milagres". A Sra. Linde tenta interferir, pois é conhecida de Krogstad, com o qual poderia ter tido um relacionamento no passado. Krogstad gostou dela antes, mas não chegaram a ficar juntos. Agora tem a oportunidade. Linde convence-o a não revelar nada a Helmer, o que teria feito por uma carta escrita, dirigida ao marido. O advogado aceita, mas Linde muda de ideia na última hora e decide que Helmer deveria saber de toda a história, para o bem de Nora. De fato, por meio de um desenrolar cheio de tensão aos espectadores, Helmer fica sabendo de tudo, pois lê a carta que lhe era dirigida. Aqui é que começa a chave para se entender o enredo da história. Nora espera um "milagre": que o marido entenda tudo e fique agradecido, acima de tudo, ao relacionar o empréstimo com a viagem, a saúde restabelecida e a retomada da vida normal. Mas Helmer, também ele um advogado, só se concentra no deslize de Nora, a assinatura falsificada, entendendo isso como uma grande falha moral e não atentando para o outro lado, o gesto nobre de salvar a saúde do próprio marido. Pior ainda é a proposta de manter as aparências, o casamento ao olhar dos outros. Toma essa decisão após conhecer o conteúdo de uma segunda carta de Krogstad, informando que desistiu da chantagem e devolvendo a promissória. Até então Nora se mantém impassível e fria, ouvindo tudo. Após isso e toda a censura que teve que ouvir, acrescida à proposta do marido de manter as aparências, decide sair daquela casa de bonecas. Era assim que sentia tratada.
Nora toma uma decisão corajosa: não aceita a proposta do marido de continuar assim e apenas manter as aparências, visto que não entende nada acerca dos sentimentos que a envolve e que justificaram aqueles atos. Helmer atenta apenas para o lado moral da desobediência à lei - falsificar uma assinatura é crime, não importa se há justificativa ou motivo nobre. Nora só olha para o ato legítimo, para a relação entre as pessoas, não para a fria letra da lei.
A peça de Ibsen é um verdadeiro libelo contra esse moralismo jurídico que já tomava conta das relações sociais nas sociedades modernas. Não por acaso gerou muita polêmica onde foi encenada. O desfecho, em termos de enredo de acordo com o drama, não poderia ser outro senão a ausência de qualquer conciliação, haja vista a firmeza com que ambos os personagens defendem seus pontos de vista, embora ao final Helmer se sinta confuso e interrogativo. Talvez haja uma ponta de esperança no "maior dos milagres".
O único "regenerado" é Krogstad, que parece abandonar sua índole egoísta ao reencontrar seu antigo amor - a Sra. Linde. Esta também encontra um motivo para viver - "cuidar" de Krogstad, posto que morreram seu marido e sua mãe, não tendo mais ninguém a quem se ligar.

A narrativa.
Trata-se de uma descrição que vai se adensando; o ar leve e os diálogos suaves vão sendo substituídos por uma atmosfera mais pesada à medida que os personagens vão revelando seus atos e seus motivos. Uma parte do desenvolvimento, com relação à carta, envolve também grande tensão para o público.
Não posso dizer nada a respeito da encenação da peça, pois nunca assisti a uma representação. Mas se bem encenada, acredito que ela possa causar uma forte impressão interior. 

quarta-feira, 19 de setembro de 2012


Teoria Quântica. Um guia ilustrado. 
McEvoy, J.P. & Oscar Zarate
São Paulo, Leya, 2012.


Amigos, recomendo a leitura deste não tanto pelo didatismo, pois a exposição não é feita de modo muito simples. O autor preferiu uma abordagem sem concessões, colocada numa linha histórica,  fazendo com que o leitor consiga apreender a dificuldade de se elaborar uma teoria completa a respeito de qualquer assunto. É divertido. As ilustrações são bem inspiradas e auxiliam na visualização dos problemas. Segue um resumo, para quem quer entender melhor e/ou inspirar-se a adquirir o livro. Ou não.


Teoria quântica e a física clássica.
A teoria quântica, em seu acabamento final, continua a desafiar o nosso senso comum e nossas noções de física, que ainda permanecem no plano do século XVII, ao menos para a maioria dos mortais - mesmo para aqueles que nunca aprenderam física, pois estas noções estão impregnadas no discurso cotidiano. E não só nisso: para a construção de prédios, pontes e estruturas relativamente simples, basta a física clássica.

Quanta e energia.
Quando vamos à estrutura do universo ou à do átomo, tudo muda. É preciso apelar para outras noções, mais complexas, tal como a da física dos quanta. A origem deste nome se relaciona a uma "saída matemática", a fim de obter uma equação que desse conta dos números obtidos com instrumentos de teste (caixa de corpo negro com uma pequena saída para a radiação), por meio do qual eram observadas as radiações. A ideia de Max Plank foi justamente "fracionar" matematicamente os pacotes de energia a fim de poder ajustar o cálculo teórico aos números obtidos nas observações. Estaríamos aqui um pouco antes do início do XX e nada se sabia a respeito do átomo, para o qual Rutherford e Bohr iriam lhe fornecer um modelo.  Por conseguinte, quanta diz respeito a uma fração de energia; números quânticos estão relacionados à posição das partículas dentro do átomo; Einstein provou a existência do átomo por meio de um de seus famosos artigos de 1905. Em outro artigo, estudando a cinética dos elétrons, estabelece um modelo e uma equação para o efeito fotoelétrico - daí veio a tese dos fótons. Einstein não admitiu totalmente a quantização da energia de Plank e queria uma regra muito mais geral - chegaria assim mais tarde à teoria da relatividade geral. É de se observar que Einstein escreveu seus artigos sem nenhum contato direto com laboratórios, os quais já havia abandonada há algum tempo, dado que trabalhava num departamento de patentes na Alemanha.

O livro.
Este livro aborda, assim portanto, de maneira não muito simples - diga-se de passagem, a construção da teoria quântica desde os seus primeiros passos. Equações, princípios e fórmulas são ilustradas e nos fornecem as informações sobre os caminhos que tomaram os teóricos até chegarem a formulações mais precisas, tal como a de Heisenberg. Uma coisa é certa, certíssima: não existem gênios solitários, que  fizeram "descobertas" maravilhosas. Existem homens geniais, muitos, que contribuíram com uma pequena ou boa parte para a construção dos paradigmas que temos hoje. Acredito que se isso é válido para a física, é válido para todo o resto do conhecimento humano que dependa de investigação. Inclusive, acredito, nas ciências sociais.

Os nomes.
Os três nomes mais diretamente relacionados à teoria quântica - Heisenberg, Schrödinger e Dirac - não teriam chegado à metade do caminho não fossem contribuições de outros tantos, tal como o próprio Bohr, Pauli, De Broglie, Plank, Balmer (um simples professor) e, inclusive, Einstein, entre outros tantos. Não esquecendo mesmo dos físicos clássicos do século XIX e início do XX

Experiência do Mundo.
Interessante é concluir, pelo texto apresentado, que todas as experiências nos fornecem um modelo indireto da Natureza. Seja lá o que isso possa representar ou não. Os dados das experiências são levados a gráficos e representações, fornecendo (quando possível) explicações. Esse é o maior mérito do livro, pois o que geralmente se pensa a respeito de experiências, no senso comum, é que o cientista está "observando" diretamente os fenômenos da natureza e extraindo daí suas lições - leis e princípios. Nada mais enganoso. E muitas vezes não há nem um modelo, nem uma representação, tal como acontece com a teoria de Heisenberg  - totalmente matemática, chamada de mecânica matricial. Não há uma representação visual, como o modelo de átomo de Bohr - mestre de Heisenberg - que aprendemos pelos livros didáticos.

Modelos.
O modelo de Bohr é o do átomo com elétrons que perfazem uma órbita em torno do "centro sólido", tal como no sistema solar.  Os elétrons, uma vez excitados, pulam de uma órbita para outra, desprendendo energia em forma de fótons (luz). Esta é uma tradução bastante simplificada de seu modelo. Seu discípulo, Heisenberg, a fim de resolver intrincados problemas relacionados aos campos elétrico e magnético, desenvolveu um modelo matemático - baseado em matrizes - para resolver tais problemas. O próprio termo, "mecânica matricial", não era bem quisto por Heisenberg, mas trata-se certamente de um formalismo puramente matemático, rejeitando qualquer modelo de visualização.
Enquanto isso, Schrödinger, na década de 1920, realizava suas experiências adotando um modelo de ondas para o átomo, chegando assim a equações muito precisas, que davam conta dos mesmos problemas matemáticos antes colocados. Max Born forneceu a interpretação probabilística a este modelo.

A verdade.
Quem está com a verdade? Ambos estão. E o próprio Heisenberg chegou a essa conclusão, após os resultados das investigações de Dirac, especificamente. Dirac trabalhava sozinho, recluso. Mas ainda assim não se pode assumir o modelo de "gênio solitário", como o de Einstein, pois apesar da solidão, o trabalho, afinal, tem que estar baseado em teoria, testes e hipóteses de outros. Trabalhar sozinho ou em equipe não é o que define a autoria. Tanto que Heisenberg utilizou-se do trabalho de Dirac, especialmente sobre a absorção da radiação eletromagnética (luz), para chegar à sua conclusão final em 1927, elevando a teoria quântica a um nível maior de entendimento com relação à antiga teoria quântica de Bohr, Einstein e Plank. Ela pode ser compreendida em três termos simples:
1) A matéria pode ser entendida tanto em termos de ondas como de partículas (princípio da complementaridade);
2)Não há como identificar com precisão a posição exata de uma partícula subatômica, nem seu movimento - o momento angular (princípio da incerteza ou da indeterminação);
3)Podemos obter a probabilidade de sua posição e momento, estimando-se justamente a imprecisão da medição (princípio da exclusão e escolha).
Essas medições, para quem não sabe, são realizadas por meio de experiências com difrações de luz em espectros - e tudo isso, segundo Heisenberg, provoca uma "distorção" na imagem do objeto, dado que para o contrário a radiação luminosa teria que ser menor que o próprio objeto - o que não corresponde à realidade. Daí o uso de "experiências de pensamento" (algo que eu sugeriria aos historiadores...), por meio do qual pode-se chegar à solução matemática de um problema, que a experiência talvez não permita...
Confuso? Um pouco. A conclusão a que se chega, a despeito dos empiristas, é que nem tudo pode (ou se deve) ser obtido por meio da experiência física, concreta. É o fim do determinismo, ao menos na Física, por enquanto, e isso já na terceira década do XX...
O princípio da complementaridade chocava-se diretamente contra toda a física clássica, desde Newton, já que, segundo esta última, se duas descrições são mutuamente exclusivas, então ao menos uma delas deve estar errada. Chegaríamos portanto a um paradoxo: ou a física clássica está correta e tudo o mais que se fez é pura ilusão ou a física quântica é que nos fornece a chave para compreensão dos fenômenos, embora incompleta. Teríamos então que conviver com a incerteza e a incompletude.

Oposição de Einstein.
 Einstein se opôs obstinadamente ao modelo, a partir da Conferência de Solvay, em 1927, Bruxelas. Segundo uma frase que lhe é atribuída: "Deus não joga dados", isto é, tudo pode ser mensurável; o modelo probabilístico de Heisenberg não o agradava, de maneira alguma. Concebeu vários modelos, "experiências de pensamento", para refutar a tese, mas Heisenberg  sempre conseguiu uma "saída", demonstrando a "solidez" de seu modelo. A mais famosa dessas "experiências de pensamento" é a caixa de luz de Einstein, sobre a qual não vou entrar em detalhes (sugiro fortemente a compra do livro), mas a que Heisenberg soube dar uma solução elegante, inclusive baseando-se em parte na própria teoria da relatividade.
Einstein não desistiu. Juntamente com Boris Podolsky e Nathan Rosen, desenvolveu um novo desafio, o paradoxo EPR. Mais uma prova de que não existem gênios solitários. O paradoxo EPR é bastante complexo para descrevê-lo aqui, mas resumidamente e grosso modo, podemos descrevê-lo pelo princípio da não localidade - para Einstein é possível medições em sistemas considerados isoladamente; na teoria quântica de Heisenberg isso não é possível, pois não há como separar observador e observado, dado que fazem parte do mesmo sistema. O paradoxo EPR demonstra a incompletude da teoria quântica; ainda há outro paradoxo, desenvolvido por John Bell, mais recente e que diz respeito à localidade: pelo teorema da desigualdade, a natureza é não local. Portanto, mudanças num sistema em A sempre provocam alterações em B, independente de sua localidade e até mesmo da velocidade da luz!
Segundo McEvoy:
"Isso significa que, a despeito das aparências locais dos fenômenos, nosso mundo é na realidade sustentado por uma realidade invisível, que é imediada e que permite uma comunicação mais veloz que a luz, até mesmo instantânea." (p. 170)
Resta saber como se dá essa interação e se a interpretação que lhe damos é verdadeira. Estudos recentes sobre neutrinos estão deixando os físicos com grandes indagações. Cabe esperar mais investigações a respeito. Mas uma coisa é fato: nosso entendimento sobre a natureza não é completo e nem verdadeiro, em seu sentido ontológico. Ele é paradigmático. Que o diga Thomas Khun.

Um gato "zumbi": gato vivo, gato morto.
O famoso experimento de Schrödinger, que na verdade se transformou em metáfora para a teoria quântica, foi elaborada pelo mestre a fim de refutar o modelo quântico, ao afirmar que um gato vivo e morto ao mesmo tempo é impossível, um absurdo. O experimento é bem mais complicado do o que os livros descrevem normalmente. Envolve o decaimento de radiação dentro da caixa onde está o gato. Após um tempo de decaimento, ao abrirmos a caixa o que teríamos? Um gato vivo ou um gato morto? Pela lógica do experimento, um gato morto-vivo, devido ao momento probabilístico do decaimento da radiação no momento em que a caixa é aberta. O que na avaliação de Schrödinger seria um absurdo. Heisenberg era sagaz, além de genial. Tomou o exemplo justamente para exemplificar a teoria, afirmando que o gato morto-vivo representa a mistura dos dois estados - função de onda e de partícula. Pode se tomar o gato como vivo ou como morto, depende do que se queira medir.

Minhas próprias conclusões.
A história desse paradoxo nos ensina uma grande lição: a interpretação do mundo passa por uma grande disputa; mas o significado dessa interpretação, em si mesmo, talvez não esteja em mundo algum. 

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Capitalismo Global


FURTADO, Celso. O Capitalismo Global. São Paulo, Ed. Paz e Terra, 1998
Celso Furtado e o capitalismo global.

Terminei de ler [em julho] o pequeno e ótimo livro do professor Celso Furtado, escrito no final dos anos 90. O conteúdo do texto extrapola em muito o que porventura expressa o título, pois C.F. faz uma verdadeira síntese de toda sua obra, suas influências, seu percurso profissional, sua preocupação com a economia brasileira e o respectivo desenvolvimento econômico. Por isso, recomendo fortemente a todos a sua leitura.
Sua preocupação mais recente, o capitalismo global – as forças e os efeitos da globalização incluídos – liga-se às suas antigas preocupações, isto é, o desenvolvimento econômico brasileiro, de uma forma bastante estreita. Na medida em que as forças da globalização impõem a sua vontade ao mundo — gerando desigualdade e, por conseguinte, pobreza — é preciso contrapor outras forças a elas, a fim de dirimir ou ao menos minorar o prejuízo que causa a globalização à população humana.
Preocupação com o humano. Apesar de economista, C.F. faz questão de destacar o homem dentro do sistema, não o homem em função do sistema. Por isso, diz “nunca pude compreender a existência de um problema estritamente econômico” (destaque na orelha do livro). Toda solução econômica tem que objetivar a liberação da força criadora do homem e o seu bem-estar – mas não de apenas uma parcela da humanidade, mas de toda ela. Por isso mesmo C.F. vai se voltar para o entendimento das necessidades dos mais pobres, das camadas mais desfavorecidas da população. Sua teoria do desenvolvimento econômico é toda orientada para este sentido. De uma forma mais geral, suas teses apontavam para a necessidade de um desenvolvimento industrial autônomo, que garantisse uma crescente homogeneização social. Não se entenda que com isso se quisesse chegar a uma igualdade total – talvez impossível e nem mesmo desejável - mas que pelo menos alcançasse os níveis dos países desenvolvidos, em uma tendência igualitária de consumo e dentro de padrões culturais próprios. Para isso, são requeridas políticas públicas, com a devida ação do Estado.
Era Celso Furtado um nacionalista? De certa forma sim, uma vez que faz uma defesa da preservação de uma identidade cultural nacional. O que seria essa identidade? A originalidade de C.F. reside justamente aí. Não há fórmula para uma identidade, nem ela deve ser imposta de cima para baixo, seja por parte das classes altas, seja por parte do Estado. Deve ela emergir de dentro das próprias forças econômicas autônomas – e portanto, modernas. O que tivemos desde sempre, afirma o professor, é as forças econômicas sempre vieram de fora, impondo-se e modernizando o país. Portanto, sempre fomos um país modernizado, não moderno. Sua teoria do desenvolvimento visava justamente romper com esse mecanismo, principal elemento do atraso e do subdesenvolvimento de nossas plagas. O modo como o país se inseriu no comércio internacional, desde sempre e a partir da colonização, é que imprimiu esse movimento. Sua observação e estudo sobre a Crise de 29 é que o fez pensar que tudo podia ser diferente. Nesse período o país se volta para dentro, desenvolve um mercado interno — essa é uma das chaves para a sustentação de um desenvolvimento industrial próprio e relativamente autônomo. Evidente que nenhum país pode se fechar, tentando ser completamente independente, mas possuir uma relativa autonomia faz com que a inserção no comércio internacional seja mais favorável, dentro do que se convencionou chamar de “vantagens comparativas” das trocas.
O livro se divide em oito capítulos curtos. A seguir um sumário de cada um deles.

1 – A LONGA MARCHA DA UTOPIA
C.F. descreve sua trajetória profissional, especialmente na CEPAL, onde conhece Raul Prebish. Naquele tempo, logo após a guerra, predominava a idéia de que os países periféricos deveriam se integrar à economia mundial por meio das “vantagens comparativas”; cada um com a sua a oferecer. Ora, num país de economia agrária o que se tem a oferecer é um produto primário. Assim, a inserção no mercado internacional pode ser inicialmente vantajosa, mas com o tempo, com a degradação dos meios de troca, esse modelo revela-se precário e desvantajoso.
Com o incentivo e a influência do pensamento de Raul Prebish, C.F. começa a pregar a ação do Estado no sentido de desenvolver a industrialização por meio da expansão do mercado interno. Política que foi eficaz dos anos 1930 aos anos 1970.
A ideia subjacente na tese de C.F. é que o capitalismo não se desenvolveu e não se expandiu antes que a massa salarial fosse valorizada e se expandisse também. Uma valorização crescente do capital leva à crise e ao colapso se o poder de compra não pode acompanhar a oferta.
Portanto, os problemas a serem enfrentados no Brasil foram - e são - de ordem política, pois a industrialização e a formação do mercado interno deram-se por meio de uma política econômica que se refletia no enfrentamento das elites agrárias, cujas políticas econômicas tendiam a valorizar o câmbio em detrimento de outras, tendendo a excluir também políticas de ordem marcadamente sociais.

2 – O NOVO CAPITALISMO
Aqui C.F. descreve o novo capitalismo (global), mais internacionalizado e mais independente dos controles diretos estatais, mas ao mesmo tempo com uma interdependência crescente entre os sistemas econômicos.
 “Quanto mais as empresas se globalizam, quanto mais escapam da ação reguladora do Estado, mais tendem a se apoiar nos mercados externos para crescer.” (p.29)
Tudo isso requer uma nova prática política: a imaginação criativa dos homens de governo, para fazer frente à complexa arquitetura econômica a que chegamos.
Comentário. De fato, C.F. tinha razão: o deslocamento de unidades inteiras de produção de um país para outro faz com os esforços sejam concentrados naquele país que recebe o “encargo” da produção. No entanto, cria-se uma dinâmica que não se dá mais em termos unilaterais, mas recíprocos.

3 – GLOBALIZAÇÃO E IDENTIDADE NACIONAL
O avanço da globalização impôs um dinâmico sistema internacional, ainda dominado pelas grandes empresas, mas agora sem o efetivo controle e regulação dos Estados. Voltamos à uma época anterior do capital em que sua difusão pelo mundo não contava com grandes regulações, apesar do apoio estatal.
O Brasil, ao aumentar seu esforço de integração a essa nova economia (ajuste externo) talvez tenha perdido o seu dinamismo de desenvolvimento, que até então se calcava na expansão do mercado interno, ao menos até meados dos anos 1990.
Para C.F. o grande desafio brasileiro é aumentar sua capacidade de autofinanciamento; cabe então recuperar a eficácia dos instrumentos de comando macroeconômico, pela ação política do Estado.  

4 – A SUPERAÇÃO DO SUBDESENVOLVIMENTO
Faz aqui uma exposição das várias formas possíveis (e empreendidas pelos países) de superação do desenvolvimento:
a)coletivização dos meios de produção; b)prioridade à satisfação das necessidades básicas da população; c)ganho de autonomia externa.
Em qualquer dessas formas é preciso haver vontade política para sua implementação. O objetivo tático tem sido sempre ganhar autonomia na ordenação dos objetivos econômicos, a fim de reduzir as desigualdades e promover o desenvolvimento. Aqui, a desigualdade é o principal obstáculo ao pleno desenvolvimento industrial. Por outro lado, esse desenvolvimento tem que se traduzir num enriquecimento da cultura e suas múltiplas formas. Isso exige “...forte vontade política, apoiada em amplo consenso social.” (p.54).

5 – REVISITANDO MEUS PRIMEIROS ENSAIOS TEÓRICOS
C.F. analisa a sua trajetória de suas idéias, especialmente a teoria do subdesenvolvimento. Suas reflexões levaram à conclusão que o subdesenvolvimento se deve a fatores culturais – o elevado padrão de consumo das classes dominantes, superior a nossas forças produtivas e manutenção da desigualdade justificada pela falta de interesse em produzir aqui esses produtos; além disso, essa classe, por conta do alto consumo, não acumula: só gasta [acrescente-se o fato de que muitos preferem investir parte do seu dinheiro em bens imóveis, imobilizando o capital].
A observação da ocorrência da Crise de 29 permitiu, segundo C.F., chegar a essas conclusões. De fato, uma vez que o país parou de importar tais produtos (devido à crise de produção e do sistema de comércio internacional) e passou gradativamente a produzir alguns deles aqui, o país obteve alto crescimento econômico. O que reflete um viés cultural: não havia interesse de produzir aqui o que era facilmente importado pelas elites e classes dominantes. Portanto, é preciso mudar o padrão de consumo geral por meio de políticas sociais – políticas públicas que procurem incluir a população excluída do grande consumo.
“...faz-se necessário modificar os padrões de consumo no quadro de uma ampla política social, e ao mesmo tempo elevar substancialmente a poupança,  comprimindo o consumo dos grupos de elevadas rendas.” (p.60)

6 – OS NOVOS DESAFIOS
Em termos gerais, nos países “mais avançados” a produção e o consumo se casam bem, isto é, “...o progresso técnico penetra sem tardança nas formas de produção, ao mesmo tempo que os padrões de consumo se modernizam...” (p.62); nos países “menos avançados” o consumo não encontra correspondência na produção, isto é, “...em regiões marginalizadas essa penetração se circunscreve inicialmente aos padrões de consumo, limitando seus efeitos à modernização do estilo de vida de segmentos da população.” (idem).
Podemos depreender assim que Celso Furtado entende que nos países modernos o progresso técnico é um fator de inovação e provocação de consumo, enquanto que nos países modernizados a rota se inverte: apenas com a adoção de um estilo de consumo – o consumo de determinados bens - é que a produção sofrerá modificação, apropriando-se de técnicas e inovações. Por isso é que C.F.  insiste no incentivo à criatividade ao nosso modo, sem insistir tanto nos estilos de vida puramente importados.
“O principal objetivo da ação social deixaria de ser a reprodução dos padrões de consumo das minorias abastadas para ser a satisfação das necessidades fundamentais do conjunto da população e a educação como desenvolvimento das potencialidades humanas nos planos ético, estético e da ação solidária.” (p. 65)

Além disso, é preciso rever, no plano mais geral e mundial, algumas  das orientações e objetivos humanos, impondo-nos novos desafios:
“A criatividade humana, hoje orientada de forma obsessiva para a inovação técnica a serviço da acumulação econômica e do poder militar, seria reorientada para a busca do bem estar coletivo...” (p.65)

7 – dimensão cultural do Desenvolvimento
C.f. propõe-nos combater a “lógica dos instrumentos”, por meio da qual a dimensão tecnológica se sobrepõe à cultural. Trata-se de uma revisão de fins e meios, onde a dimensão cultural da política social deve prevalecer sobre as demais.
É um entendimento muito particular e interessante do que seria a cultura, para C.F. (partes negritadas minhas):
“A cultura deve ser observada, simultaneamente, como um processo acumulativo e como um sistema, vale dizer, algo que tem uma coerência e cuja totalidade não se explica cabalmente pelo significado das partes, graças a efeitos de sinergia.” (p.71)
A orientação que imprimimos à nossa economia pode submeter-nos a pressões destruidoras; é o que se observa quando a acumulação de bens culturais é comandada do exterior – como exemplo, “certas formas de urbanização podem conduzir à destruição de um importante patrimônio cultural.” (p. 71)
Essa força externa pode provocar rupturas que não são as rupturas criativas, revolucionárias; por isso, é preciso manter uma continuidade criativa, que não quebrem nossos sistemas de valores pela prevalência única da lógica da acumulação.

8 – RISCO DE INGOVERNABILIDADE
Neste último capítulo C.F. destaca que as forças sociais são importantes contrapontos às forças econômicas. Tal como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, que questionam a divisão patrimonial das terras.
Destaca também o papel integrador do Estado brasileiro, que conseguiu unidade territorial e lingüística, mas também soube se colocar frente ao desafio da industrialização. Cabe agora modificar a fundo o perfil da distribuição da renda – difícil nestes tempos de globalização, mas que se coloca agora como outro desafio. Ao mesmo tempo, promover uma política fiscal que assegure a taxa de poupança. Estrategicamente coloca-se como objetivo o crescimento do mercado interno – o que significa privilegiar os interesses da população, como um todo. Não se trata de um fechamento da economia, diz C.F., mas de uma inserção no mercado internacional em outras bases. Trata-se também de entender o crescimento econômico de outro modo:
“...um índice que pretenda medir o bem estar médio da população terá que ser utilizado com muita precaução.” (p.81)
O crescimento econômico tem que ser traduzido em termos de crescimento pessoal e humano para toda a população. É preciso estar atento aos números impostos pelos grupos de dominação que sustentam a atual estratégia globalizante – por serem inadequados à nossa realidade, promovem seu ocultamento.  

Em resumo, com este livro Celso Furtado identifica como agem as forças da globalização;  embora não seja muito descritivo, aponta para as linhas gerais de uma nova dominação – força modernizadora, reforçada por meio dos novos instrumentos e técnicas da comunicação mundial. Propõe um novo desafio: orientar a nossa industrialização visando a uma verdadeira estrutura moderna – autônoma, privilegiando o mercado interno e de modo que não cause rupturas destruidoras à nossa cultura, entendida num sentido amplo – como processo e como sistema; na qual os valores a que faz referência são próprios, não adotados de fora. Para isso deve contribuir um processo criativo também endógeno, num ritmo de continuidade inovadora, mas coerente com nossa identidade. Esse é um meio de nos contrapormos às forças geradoras de desigualdade da globalização.