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sábado, 6 de junho de 2020

Ponto Final. Marcos Nobre - Resenha crítica


NOBRE, Marcos. Ponto Final: A guerra de Bolsonaro contra a Democracia.  São Paulo: Todavia, 2020.

O subtítulo dá a chave de entendimento do autor na análise do momento atual, tendo como presidente Jair Bolsonaro.

O presidente promove uma guerra contra a democracia. Este é o limite do texto: apenas contra a democracia? Bolsonaro é posicionado como um autoritário, que ganhou a presidência com um discurso anti-sistema, aproveitando-se com o descontentamento do povo/população com o próprio sistema. Sistema que girou em torno do que o autor denomina de "peemedebismo", conforme outro trabalho (Imobilismo em Movimento). A cultura política do bolsonarismo seria a da lógica da guerra — tomado o adversário como inimigo, tratando-se, no jogo político, de excluí-lo. Diferentemente da polarização, tal como se deu entre PT e PSDB na luta pela hegemonia política buscando conquistar o centro, a cultura política bolsonarista é antidemocrática; portanto, a convivência social na democracia torna-se assim inviável.
Essa lógica da guerra é camuflada pelo comportamento excêntrico e pela aparente "falta de inteligência" (ao ser chamado de burro). Para Nobre, há um método nessa loucura toda que transparece em suas ações e pensamentos. Na ação contra jornalistas, por exemplo, e no pensamento contra a "ideologia das minorias". "Ponto final", que dá título ao livro, expressa bem Bolsonaro em termos de diálogo:

"Não por acaso, 'Ponto-final' é também o nome que recebeu na Argentina a lei de 1986 que paralisou processos contra agentes da ditadura militar e que pretendeu fazer como Bolsonaro: impor o silêncio. Não funcionou. A lei foi definitivamente declarada inconstitucional em 2005, provocando a retomada dos processos e levando à prisão de  diversos agentes da ditadura, incluindo generais que ocuparam a presidência da república na Argentina." (p.12)

A crise — no caso agora do Covid e sua relação com a saúde — não nos tirou do normal, mas revelou um "normal" pela aceleração dos acontecimentos. Para Marcos Nobre, a crise revelou o arranjo frágil em que se movia nossa democracia: a tal busca da hegemonia (o autor não emprega este termo) a fim de uma melhor governança. Isso se dá pela conquista do "centrão" com a evidente troca de cargos (não só) por apoio político no Congresso. E assim pode se governar. Bolsonaro é ruptura com esse arranjo — em termos, já que levado agora a negociar com o Congresso, atacando pelo centro, é claro. Essa resistência em querer negociar, atacando as instituições, revela o projeto autoritário de Bolsonaro. Esse é o "normal" escancarado pela crise sanitária; normal que foi instalado em 2018 na eleição de Bolsonaro e cujo método é o caos, aparente loucura. Caos que se dá no dia a dia, seja pelo ataque às instituições, aos jornalistas, seja pelas declarações chauvinistas de Bolsonaro ou por suas mentiras, distribuídas metodicamente pelas redes sociais.
Enquanto manteve um apoio de um terço do eleitorado, apostou nessa metodologia sem apoio do centrão; uma vez diminuída sua base para um "núcleo duro" de dez, doze por cento, intenta buscar esse apoio, não sem dificuldades. Daí o autor falar em "partido militar" ou "partido dos militares", que faria esse papel de apoio às políticas de destruição de Bolsonaro. Embora não seja exatamente um partido, mas atue como um.
Seu projeto, portanto — ao confundir "democracia" com "sistema" — é autoritário.
Enfim, a fragilidade de nosso arranjo para governar — que se estabeleceu já no Plano Real, segundo o autor — revelou-se nas manifestações de Junho de 2013.

"Levantes conservadores não apontam para uma passivei construção de regras compartilhadas de justiça e seu estabelecimento sob a forma de regras democráticas institucionalizadas. Destacam a lacuna entre a 'vontade popular' e os mecanismos estabelecidos de representação política mas não acreditam possível muito menos pretendem, superar essa lacuna. Ao contrário, endeusam chefes - Bolsonaro é chamado de 'mito' por seus apoiadores - que seriam a verdadeira encarnação do povo e de sua vontade. É nesse sentido que "resolvem" o bordão do não me representa". (p.28)

Essa lacuna, representada também por evangélicos, militares e lavajatistas, principalmente, não pode ser preenchida pela simples representação política, pois a percepção de que o "sistema" é falho, não funciona, leva à busca de soluções autoritárias, como a de Bolsonaro, eleito por uma coalizão de conveniência, portanto. Logo, não é adequado explicar o que aconteceu em 2018 em termos de "PT" e "anti-PT", pois segundo o autor, isso leva a pensar o PT como organizador do sistema. [Na minha opinião não; não acho que não seja uma boa via de explicação; e não acho que leva a pensar numa centralidade organizadora do PT — longe disso]
Enfim, qual a razão desse "mecanismo" existir? Segundo Nobre:

"Destruir as instituições democráticas pela via eleitoral tornou-se possível no Brasil porque elas foram identificadas ao "sistema". No "sistema" que vigorou de 1994 - data de lançamento do Plano Real - até pelo menos as revoltas de Junho de 2013, a maioria dos partidos formou uma massa relativamente indistinta de máquinas políticas que se encastelam no Estado para se reproduzir. Foi assim que o "sistema" passou a ser identificado, especialmente após o chamado mensalão, em 2005, como inerentemente corrupto, como só beneficiando a si próprio, como causa do sofrimento da maioria da população." (p.39)

O que está em questão é a disputa pelos fundos públicos, dispostos no orçamento. Cargos nos ministérios, do primeiro ao último escalão, são "negociados" junto ao centrão, no Congresso. Em troca, o executivo consegue apoio para aprovar seu projetos e assim se procede a governabilidade. [não sem razão fala-se em "presidencialismo de coalizão", que na verdade, não há coalizão nenhuma, mas arranjo de interesses]


Para Bolsonaro, como deixou claro, a melhor democracia é a democracia tutelada, tal como se deu ou se tentou viabilizar (em termos) no regime pós-64.

"Apesar de toda a encenação antissistema, a manobra radical de autopreservação do sistema político continuou  funcionando muito bem, obrigado, no governo Bolsonaro. Conseguiu alcançar seu objetivo mais imediato e mais importante, que era manter investigados e réus fora da cadeia e politicamente atuantes. E ao mesmo tempo conseguiu minar o poder de mobilização da Lava Jato. Nisso, o governo Bolsonaro foi muito mais eficiente do que o governo Temer, aliás. Desapareceram as inúmeras fases da Operação Lava Jato." (p.45)

O final deste cenário é o colapso institucional que herdaremos em 2022, dado o progresso da destruição que é reproduzida.

Comentário. [trabalhar melhor estas questões]
De um ponto de vista da ciência política, o arrazoado de Marcos Nobre é verossímil, mas talvez não totalmente verdadeiro.
1. O arranjo peemedebista, em torno do centrão, não é uma prática que vem de 1988, consolidada no Plano Real de 1994. É um fato de longa duração, cuja origem já estava nos arranjos conciliadores do Império, a partir do II Reinado. Na República tal prática se consolidou, especialmente a partir dos governos dos estados, sendo reproduzida a nível federal quando o executivo não era ditatorial e exceto na República Velha, também, já que aí havia um mecanismo próprio de constituição de maiorias.
2. Nossa democracia é frágil, mas não desde 1988; é de bem antes. A CF de 88 foi uma oportunidade para estabelecer uma democracia sólida nos anos posteriores, mas não vingou por vários motivos, alguns poucos por causa da CF mesma, outros tantos a despeito dela. O arranjo do pacto federativo pode ser debitado na conta da Carta; a CF considerou o município como um ente federado, fortalecendo assim os poderes locais. Há outros fatores da Carta a considerar, tal como a divisão e redistribuição dos impostos.
3. O funcionamento do Congresso, a aprovação de projetos de lei — embora a engenharia de organização das casas tenha sido bem desenhada, houve brechas que terminaram por deixar o grosso da apreciação/aprovação das leis aos parlamentares, deixando o executivo muito dependente de uma base de legisladores que pudessem ser favoráveis ao governo.
4. A CF poderia ter avançado mais, na legislação comum, se fossem varridos os lixos do "entulho autoritário" (legado da legislação do regime de 64) e ainda não fossem removidas as partes democráticas (especialmente direitos sociais) da mesma CF. Em outras palavras, não apenas os dispositivos democráticos não foram ampliados, mas também foram mantidos os mecanismos autoritários, como a PM, por exemplo — por si só um problemão, já que serviram de força de contenção dos movimentos sociais, da mesma forma que faziam ainda durante o regime militar.
Sobre a "lacuna" de representação de que fala o autor: não foram apenas aqueles personagens sociais — militares, evangélicos, lavajatistas — que estavam sub-representados ou fora do sistema. Há uma massa enorme de pessoas, sub-cidadãos, não-cidadãos, que estão completamente fora de tudo da política e justamente estes é não foram às manifestações e nem empunharam a bandeira do "não me representa". A questão que fica é a que Nobre não responde: como essa minoria que se diz não representada pode ser tão decisiva; como esse contingente conseguiu impor tal narrativa, de uma vez que, sim, de alguma forma eles são contemplados tanto no sistema político quanto econômico.

Metodologia.
A análise de Nobre é, de alguma forma, coerente com a crítica imanente, da Teoria Crítica ("Escola de Frankfurt"). Podemos entender que sua crítica à política envereda a partir da própria política, fazendo emergir as aporias e contradições do sistema. Ocorre que, entendo, a crítica da política não deve mesmo transcender a ela, mas transcender dela. Em outras palavras, deve transbordar dela e buscar o que está sobredeterminado. Isso, ao meu ver, considerando a crítica imanente, que não é o único meio ou método de fazer uma análise política. Da mesma forma, tal análise poderia ainda levar em conta as classes sociais e suas transversalidades — o que não é realizado por Nobre.
Se feita a ressalva ainda pudermos obter alguma coisa, no que diz respeito ao fenômeno do centrão, ainda é necessário, como eu disse acima, considerar o momento histórico (o específico) e o fator de longa duração (o genérico), isto é, o que permanece — e como permanece — na nossa tradição política e como isso se relaciona à democrática.

Com relação ao texto, em si a narrativa, há algumas passagens que,  considero assim, o autor mostra-se um tanto arrogante. Como por exemplo: "Não há erro político mais fatal neste momento para quem pretende preservar a democracia do que ignorar todas essas distinções e sutilezas..." (p.70) E mais outras passagens onde o autor parece querer demonstrar que somente ele está iluminado a respeito de determinado detalhe. Uma outra passagem ele censura aqueles que chamam de Bolsonaro de "burro", pois o projeto do presidente, coerente com suas ações, indicam o contrário. Bem, depende do que se denomina de inteligência. Obviamente que há um projeto que aparentemente demonstra insanidade e há um método nele. Isso não exclui a consideração de que o presidente possui não apenas um QI muito baixo, mas uma completa falta de cultura em todos os aspectos, inclusive política e democrática. Que ele seja considerado "esperto", vá lá, dado que ele tem uma vasta experiência nos mecanismos congressuais. Falta de inteligência não exclui ninguém do poder. O que é preciso considerar, a sério, é o quanto essa estultice, essa falta total de refinamento obscurece o jogo político.  E aí pode se falar até em outras habilidades de inteligência do presidente, especialmente a de conseguir manter seu roteiro, sua narrativa semiótica, sua retórica da maldade.

Por fim, destaco a seguinte passagem:

"A raiva desmesurada que desperta o escárnio presidencial pela vida precisa encontrar a sua devida canalização institucional democrática, não pode transbordar no desejo de morte que seria, no fundo, uma confirmação da cultura bolsonarista." (p.70)

Acertada conclusão do autor. O único problema é realmente encontrar esse canal, que não deve ser único e nem necessariamente institucional. E talvez nem seja possível controlar assim tão racionalmente o desejo de morte. Tudo isso também deveria ser levado em consideração.