NOBRE, Marcos. Ponto Final: A guerra de Bolsonaro
contra a Democracia. São Paulo: Todavia,
2020.
O subtítulo dá a
chave de entendimento do autor na análise do momento atual, tendo como
presidente Jair Bolsonaro.
O presidente promove
uma guerra contra a democracia. Este é o limite do texto: apenas contra a
democracia? Bolsonaro é posicionado como um autoritário, que ganhou a
presidência com um discurso anti-sistema, aproveitando-se com o
descontentamento do povo/população com o próprio sistema. Sistema que girou em
torno do que o autor denomina de "peemedebismo",
conforme outro trabalho (Imobilismo em
Movimento). A cultura política do bolsonarismo seria a da lógica da
guerra — tomado o adversário como inimigo, tratando-se, no jogo político, de
excluí-lo. Diferentemente da polarização, tal como se deu entre PT e PSDB na
luta pela hegemonia política buscando conquistar o centro, a cultura política
bolsonarista é antidemocrática; portanto, a convivência social na democracia
torna-se assim inviável.
Essa lógica da
guerra é camuflada pelo comportamento excêntrico e pela aparente "falta de
inteligência" (ao ser chamado de burro). Para Nobre, há um método nessa
loucura toda que transparece em suas ações e pensamentos. Na ação contra
jornalistas, por exemplo, e no pensamento contra a "ideologia das
minorias". "Ponto final", que dá título ao livro, expressa bem
Bolsonaro em termos de diálogo:
"Não por acaso, 'Ponto-final' é também o nome
que recebeu na Argentina a lei de 1986 que paralisou processos contra agentes
da ditadura militar e que pretendeu fazer como Bolsonaro: impor o silêncio. Não
funcionou. A lei foi definitivamente declarada inconstitucional em 2005,
provocando a retomada dos processos e levando à prisão de diversos agentes da ditadura, incluindo
generais que ocuparam a presidência da república na Argentina."
(p.12)
A crise — no caso
agora do Covid e sua relação com a saúde — não nos tirou do normal, mas revelou
um "normal" pela aceleração dos acontecimentos. Para Marcos Nobre, a
crise revelou o arranjo frágil em que se movia nossa democracia: a tal busca da
hegemonia (o autor não emprega este termo) a fim de uma melhor governança. Isso
se dá pela conquista do "centrão" com a evidente troca de cargos (não
só) por apoio político no Congresso. E assim pode se governar. Bolsonaro é
ruptura com esse arranjo — em termos, já que levado agora a negociar com o
Congresso, atacando pelo centro, é claro. Essa resistência em querer negociar,
atacando as instituições, revela o projeto autoritário de Bolsonaro. Esse é o
"normal" escancarado pela crise sanitária; normal que foi instalado
em 2018 na eleição de Bolsonaro e cujo método é o caos, aparente loucura. Caos
que se dá no dia a dia, seja pelo ataque às instituições, aos jornalistas, seja
pelas declarações chauvinistas de Bolsonaro ou por suas mentiras, distribuídas
metodicamente pelas redes sociais.
Enquanto manteve um
apoio de um terço do eleitorado, apostou nessa metodologia sem apoio do
centrão; uma vez diminuída sua base para um "núcleo duro" de dez,
doze por cento, intenta buscar esse apoio, não sem dificuldades. Daí o autor
falar em "partido militar" ou "partido dos militares", que
faria esse papel de apoio às políticas de destruição de Bolsonaro. Embora não
seja exatamente um partido, mas atue como um.
Seu projeto,
portanto — ao confundir "democracia" com "sistema" — é
autoritário.
Enfim, a fragilidade
de nosso arranjo para governar — que se estabeleceu já no Plano Real, segundo o
autor — revelou-se nas manifestações de Junho de 2013.
"Levantes conservadores não apontam para uma
passivei construção de regras compartilhadas de justiça e seu estabelecimento
sob a forma de regras democráticas institucionalizadas. Destacam a lacuna entre
a 'vontade popular' e os mecanismos estabelecidos de representação política mas
não acreditam possível muito menos pretendem, superar essa lacuna. Ao
contrário, endeusam chefes - Bolsonaro é chamado de 'mito' por seus apoiadores
- que seriam a verdadeira encarnação do povo e de sua vontade. É nesse sentido
que "resolvem" o bordão do não me representa". (p.28)
Essa lacuna,
representada também por evangélicos, militares e lavajatistas, principalmente,
não pode ser preenchida pela simples representação política, pois a percepção
de que o "sistema" é falho, não funciona, leva à busca de soluções
autoritárias, como a de Bolsonaro, eleito por uma coalizão de conveniência,
portanto. Logo, não é adequado explicar o que aconteceu em 2018 em termos de
"PT" e "anti-PT", pois segundo o autor, isso leva a pensar
o PT como organizador do sistema. [Na minha opinião não; não acho que não seja
uma boa via de explicação; e não acho que leva a pensar numa centralidade
organizadora do PT — longe disso]
Enfim, qual a razão
desse "mecanismo" existir? Segundo Nobre:
"Destruir as instituições democráticas pela via
eleitoral tornou-se possível no Brasil porque elas foram identificadas ao
"sistema". No "sistema" que vigorou de 1994 - data de
lançamento do Plano Real - até pelo menos as revoltas de Junho de 2013, a
maioria dos partidos formou uma massa relativamente indistinta de máquinas
políticas que se encastelam no Estado para se reproduzir. Foi assim que o
"sistema" passou a ser identificado, especialmente após o chamado
mensalão, em 2005, como inerentemente corrupto, como só beneficiando a si
próprio, como causa do sofrimento da maioria da população." (p.39)
O que está em
questão é a disputa pelos fundos públicos, dispostos no orçamento. Cargos nos
ministérios, do primeiro ao último escalão, são "negociados" junto ao
centrão, no Congresso. Em troca, o executivo consegue apoio para aprovar seu
projetos e assim se procede a governabilidade. [não sem razão fala-se em
"presidencialismo de coalizão", que na verdade, não há coalizão
nenhuma, mas arranjo de interesses]
Para Bolsonaro, como
deixou claro, a melhor democracia é a democracia tutelada, tal como se deu ou
se tentou viabilizar (em termos) no regime pós-64.
"Apesar de toda a encenação antissistema, a
manobra radical de autopreservação do sistema político continuou funcionando muito bem, obrigado, no governo
Bolsonaro. Conseguiu alcançar seu objetivo mais imediato e mais importante, que
era manter investigados e réus fora da cadeia e politicamente atuantes. E ao
mesmo tempo conseguiu minar o poder de mobilização da Lava Jato. Nisso, o
governo Bolsonaro foi muito mais eficiente do que o governo Temer, aliás.
Desapareceram as inúmeras fases da Operação Lava Jato." (p.45)
O final deste
cenário é o colapso institucional que herdaremos em 2022, dado o progresso da
destruição que é reproduzida.
Comentário.
[trabalhar melhor estas questões]
De um ponto de vista
da ciência política, o arrazoado de Marcos Nobre é verossímil, mas talvez não
totalmente verdadeiro.
1. O arranjo
peemedebista, em torno do centrão, não é uma prática que vem de 1988,
consolidada no Plano Real de 1994. É um fato de longa duração, cuja origem já
estava nos arranjos conciliadores do Império, a partir do II Reinado. Na
República tal prática se consolidou, especialmente a partir dos governos dos
estados, sendo reproduzida a nível federal quando o executivo não era
ditatorial e exceto na República Velha, também, já que aí havia um mecanismo
próprio de constituição de maiorias.
2. Nossa democracia
é frágil, mas não desde 1988; é de bem antes. A CF de 88 foi uma oportunidade
para estabelecer uma democracia sólida nos anos posteriores, mas não vingou por
vários motivos, alguns poucos por causa da CF mesma, outros tantos a despeito
dela. O arranjo do pacto federativo pode ser debitado na conta da Carta; a CF
considerou o município como um ente federado, fortalecendo assim os poderes
locais. Há outros fatores da Carta a considerar, tal como a divisão e
redistribuição dos impostos.
3. O funcionamento
do Congresso, a aprovação de projetos de lei — embora a engenharia de
organização das casas tenha sido bem desenhada, houve brechas que terminaram
por deixar o grosso da apreciação/aprovação das leis aos parlamentares,
deixando o executivo muito dependente de uma base de legisladores que pudessem
ser favoráveis ao governo.
4. A CF poderia ter
avançado mais, na legislação comum, se fossem varridos os lixos do
"entulho autoritário" (legado da legislação do regime de 64) e ainda
não fossem removidas as partes democráticas (especialmente direitos sociais) da
mesma CF. Em outras palavras, não apenas os dispositivos democráticos não foram
ampliados, mas também foram mantidos os mecanismos autoritários, como a PM, por
exemplo — por si só um problemão, já que serviram de força de contenção dos
movimentos sociais, da mesma forma que faziam ainda durante o regime militar.
Sobre a
"lacuna" de representação de que fala o autor: não foram apenas
aqueles personagens sociais — militares, evangélicos, lavajatistas — que
estavam sub-representados ou fora do sistema. Há uma massa enorme de pessoas,
sub-cidadãos, não-cidadãos, que estão completamente fora de tudo da política e
justamente estes é não foram às manifestações e nem empunharam a bandeira do
"não me representa". A questão que fica é a que Nobre não responde:
como essa minoria que se diz não representada pode ser tão decisiva; como esse
contingente conseguiu impor tal narrativa, de uma vez que, sim, de alguma forma
eles são contemplados tanto no sistema político quanto econômico.
Metodologia.
A análise de Nobre
é, de alguma forma, coerente com a crítica imanente, da Teoria Crítica
("Escola de Frankfurt"). Podemos entender que sua crítica à política
envereda a partir da própria política, fazendo emergir as aporias e
contradições do sistema. Ocorre que, entendo, a crítica da política não deve
mesmo transcender a ela, mas transcender dela. Em outras palavras, deve
transbordar dela e buscar o que está sobredeterminado. Isso, ao meu ver,
considerando a crítica imanente, que não é o único meio ou método de fazer uma
análise política. Da mesma forma, tal análise poderia ainda levar em conta as
classes sociais e suas transversalidades — o que não é realizado por Nobre.
Se feita a ressalva
ainda pudermos obter alguma coisa, no que diz respeito ao fenômeno do centrão,
ainda é necessário, como eu disse acima, considerar o momento histórico (o
específico) e o fator de longa duração (o genérico), isto é, o que permanece —
e como permanece — na nossa tradição política e como isso se relaciona à
democrática.
Com relação ao
texto, em si a narrativa, há algumas passagens que, considero assim, o autor mostra-se um tanto
arrogante. Como por exemplo: "Não há erro político mais fatal neste
momento para quem pretende preservar a democracia do que ignorar todas essas
distinções e sutilezas..." (p.70) E mais outras passagens onde o autor
parece querer demonstrar que somente ele está iluminado a respeito de
determinado detalhe. Uma outra passagem ele censura aqueles que chamam de
Bolsonaro de "burro", pois o projeto do presidente, coerente com suas
ações, indicam o contrário. Bem, depende do que se denomina de inteligência.
Obviamente que há um projeto que aparentemente demonstra insanidade e há um
método nele. Isso não exclui a consideração de que o presidente possui não
apenas um QI muito baixo, mas uma completa falta de cultura em todos os
aspectos, inclusive política e democrática. Que ele seja considerado
"esperto", vá lá, dado que ele tem uma vasta experiência nos
mecanismos congressuais. Falta de inteligência não exclui ninguém do poder. O
que é preciso considerar, a sério, é o quanto essa estultice, essa falta total
de refinamento obscurece o jogo político.
E aí pode se falar até em outras habilidades de inteligência do
presidente, especialmente a de conseguir manter seu roteiro, sua narrativa
semiótica, sua retórica da maldade.
Por fim, destaco a
seguinte passagem:
"A raiva desmesurada que desperta o escárnio
presidencial pela vida precisa encontrar a sua devida canalização institucional
democrática, não pode transbordar no desejo de morte que seria, no fundo, uma
confirmação da cultura bolsonarista." (p.70)
Acertada conclusão
do autor. O único problema é realmente encontrar esse canal, que não deve ser
único e nem necessariamente institucional. E talvez nem seja possível controlar
assim tão racionalmente o desejo de morte. Tudo isso também deveria ser levado em consideração.
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