Postagens mais visitadas

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Lições de um ignorante. Millôr.

MILLÔR. Lições de um ignorante, São Paulo, Círculo do Livro, s/d (1963).


Um livro "socrático": recomendo a todos. Além de divertido -- mesmo considerando as piadinhas como de época -- é bastante reflexivo. Pensa um Brasil que ainda está aí.

 

Millôr inicia este livro com a seguinte crônica: "Notas de um ignorante". A pergunta básica, ou melhor o questionamento fundamental, que inclusive permeia todo o texto, é "que fiz eu de minha vida?" Há um toque bastante irônico do autor nesta espécie de miniautobiografia. Parece que todos foram melhores em alguma coisa com relação ao humorista:

"Quem está a meu lado sempre leu mais livros do que eu, conhece mais política do que eu, já teve mais casos sentimentais do que eu, estudou mais do que eu, praticou e pratica mais esportes." (p.11)

Ou será que todos quiseram, de alguma forma, fazer-se prevalecer, contar vantagem, aparentar o que não é e que sabe alguma coisa? O humorista foi apenas ele, sem mais nem menos; daí a posição privilegiada para fazer humor: não é melhor que ninguém, não sabe tudo e não faz qualquer coisa melhor que ninguém - mas ao menos ele sabe disso.

Há um "sabor" socrático nesse questionamento. Será mesmo que todos são assim tão melhores em tudo que o nosso autor? De qualquer forma, essa crônica parece ser mesmo uma "introdução socrática", do tipo "sei que nada sei", para ficar numa definição de senso comum. Assim, uma introdução para o mais do livro, que questiona praticamente tudo de nossa vida nacional. Ninguém escapa: de jornalistas a advogados, da cultura à ciência.

Crônicas em destaque:
"O banheiro". Demonstra que esse é último refúgio da vida privada (!) de um homem.
"Genealogia e Biografia do Rico". Faz humor com a ideia de que os ricos se consideram os melhores, descendentes das melhores linhagens e de "gente boa", distintos, "os mais iguais", os fundadores, os criadores, etc., etc.. Fica a pergunta: não passa tudo isso de um mito? Um mito originário, que se faz repetir nas eternas recitações dos ricos.
"Do dinheiro". Destaco um trecho: "O dinheiro é um mito de tal forma acreditado que se transformou numa super-realidade, uma senha para o respeito alheio..." (p.49).
"Notas sobre a arte de entrevistar". Texto meta-jornalístico, onde seria melhor colocado o título: como não fazer uma entrevista, mas que todo jornalista assim o faz. Ou: como ser um cínico jornalista.
"Brasil, país comunista". Em dez lições. Uma brincadeira linguística de Millôr, numa época em o comunismo era "demonizado" pela cultura geral.
"A máquina da justiça e suas peças principais." O juiz, o júri, o promotor, o advogado, a vítima, e outros, estão descritos e definidos aqui por Millôr.
"O Brasil (Descrição física e política)". Talvez a melhor crônica do livro. Uma visão bastante irônica numa época que caminhava para o ufanismo nacionalista, expresso na frase "país do futuro".
"Desculpe, mas Picasso...-Não tem de quê, porém Steinberg...". Um exemplo, para o autor, de uma boa entrevista.

Enfim, "Lições de um ignorante" dá lições de como não aparentar conhecer, mas apenas reconhecer que não sabe, num período que todo mundo achava que sabia tudo. Será que isso mudou? Quem pode realmente afirmar com segurança que sabe alguma coisa sobre algum assunto? Muitas vezes não queremos aparentar que sabemos algo sobre alguma coisa - mas que no fundo não o sabemos? Não teríamos muito que aprender mesmo sobre aquilo que pensamos saber bem?


Reprodução da Crônica:

"O Brasil (Descrição física e política)" (p. 99)

O Brasil é um país maior do que os menores e menor do que os maiores. É um país grande porque, medida sua extensão, verifica-se que não é pequeno. Divide-se em três zonas climáticas absolutamente distintas: a primeira, a segunda e a terceira, sendo que a segunda fica entre a primeira e a terceira. As montanhas são consideravelmente mais altas que as planícies, estando sempre acima do nível do mar. Há muitas diferenças entre as várias regiões geográficas do país, mas a mais importante é a principal. Na agricultura faz-se exclusivamente o cultivo de produtos vegetais, enquanto a pecuária especializou-se na criação de gado. A população é toda baseada no elemento humano, sendo que as pessoas não nascidas no país são, sem exceção, estrangeiras. Na indústria fabricam-se produtos industriais, sobretudo iguais e semelhantes, sem deixar-se de lado os diferentes. No campo da exploração dos minérios, o país tem uma posição só inferior aos que lhe estão acima, sendo, porém, muito maior produtor do que todos os países que não atingiram o seu nível. Pode-se dizer que, excetuando seus concorrentes, é o único produtor de minérios no mundo inteiro. Tão privilegiada é hoje a situação do país, que os cientistas procuram apenas descobrir o que não está descoberto, deixando para a indústria tudo que já foi aprovado como industrializável, e para o comércio tudo o que é vendável. Na arte também não há ciência, reservando-se esta atividade exclusivamente para os artistas. Quanto aos escritores, são recrutados geralmente entre os intelectuais. É, enfim, o país do futuro, sendo que este se aproxima a cada dia que passa.


Nenhum comentário: