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terça-feira, 18 de julho de 2023

Custo Bras(z)il - Parte III

Nesta terceira parte quero dar continuidade à sequência envolvendo a parte financeira. Portanto, vamos ao item denominado "desequilíbrio fiscal", indicado no Portal da Indústria. Rememorando estes itens, indicados pelo site:

1. Sistema tributário complexo e com carga elevada

2. Custo do capital elevado

3. Legislação trabalhista

4. Educação de baixa qualidade

5. Infraestrutura inadequada (transporte, energia, saneamento, telecomunicações)

6. Insegurança jurídica e burocracia excessiva (em diversas áreas: relações de trabalho, meio ambiente, tributos, regulação econômica, comércio exterior)

7. Ineficiência do Estado

8. Saúde e segurança pública de baixa qualidade

9. Desequilíbrio fiscal


Interessante é a chamada de texto, logo no começo do Portal: 


Do cidadão comum ao setor produtivo, todos sofrem as consequências do Custo Brasil: um sistema tributário complexo, com excesso de burocracia, enormes gargalos logísticos e uma insegurança jurídica que não impulsiona investimentos ao país. [1]


Então vamos lá. Vamos saber mesmo se esse custo que dizem é de fato o que ocorre. Vamos à questão do tal "desequilíbrio fiscal".



As contas públicas

Impostos

É verdade que a carga tributária no Brasil cresceu nos anos 1990, dando um salto de 27% para 34%, [2] ainda assim se mantendo entre a média mundial. O que não se diz é que esse aumento não foi, inicialmente, para atender demandas da população, mas para atender ao pagamento do serviço da dívida -- que de externa evoluiu para pública, isto é, a dívida do Estado foi internalizada, com a criação dos chamados títulos da dívida pública. 


Dívida Pública. 

Vamos começar este assunto com um gráfico. 




Fonte do gráfico: https://auditoriacidada.org.br/conteudo/gasto-com-divida-publica-sem-contrapartida-quase-dobrou-de-2019-a-2021/


Interpretação

Notemos acima, pelo gráfico, que o serviço da dívida toma metade do orçamento federal. Não é difícil de enxergar, evidentemente; o que não se vê muito facilmente (e que a imprensa não colabora para isso) é que este orçamento é realizado com impostos, nossos impostos; mais difícil ainda para se enxergar, raciocinar logicamente, é que estes impostos são incidentes, na sua maior parte, sobre o capital produtivo, o consumo e o trabalho. O imposto é incidente na renda, isto é, sobre salários, lucros de empresas e a circulação, não sobre a riqueza. Portanto, sustentamos o orçamento do governo. Nós, que trabalhamos. Não é algo difícil de comprovar: basta conferir seu holerite ou contracheque é poderá conferir a parte que vai para o governo. Agora, na Nota Fiscal, o imposto que é acrescido ao produto é expresso nela. Pagamos novamente, pois o preço final do produto é por nossa conta. 


Dívida pública e divída externa

De onde vem nossa dívida pública? Até a década de 1980 os estados podiam contrair dívidas para com bancos, nacionais ou estrangeiros, livremente. Isso mudou com os diversos decretos e resoluções do Banco Central nos anos 1990:


A emissão de títulos da dívida pública estadual interna era incipiente na década de 70 e ganha proporções elevadas na década de 80, evoluindo de maneira impressionante nos primeiros anos da década de 90. Cabe mencionar que a Lei nº 7.614/87 incentivou a emissão de títulos da dívida mobiliária, na medida em que autorizou operações de crédito interno “à conta e risco do Tesouro Nacional”, mediante suprimento específco adiantado pelo Banco Central. [3] 


A dívida dos estados foi recompromissada, com aval do governo federal, via Bancos Estaduais e Caixa Econômica Federal. Isso a partir de 1997, tal como Fattorelli o descreve:


    A partir de 1997, as principais características observadas nas Resoluções pesquisadas sobre a Dívida Interna dos Estados revelaram, que a quase totalidade foi referente a: 

- Autorizações para que os estados aderissem ao refnanciamento das dívidas mobiliárias pela União, em base à Lei nº 9.496/97;

- Autorizações para que os estados assumissem a dívida das instituições fnanceiras no âmbito do PROES, também refnanciada pela União. [4]


Até então as inúmeras legislações sobre a dívida dos estados fizeram somente estimular o aumento da dívida, sob contração de novos créditos. A lei que criou o Tesouro Direto, LEI No 10.179, DE 6 DE FEVEREIRO DE 2001, pelo Senado Federal veio a colocar um fim a esses desajustes, sincronizando a dívida como um todo. 


Não há que se falar mais no sintagma "dívida externa", pois pode ser enganosa expressão. Até antes da emissão de títulos pelo tesouro, como a partir de 2001, era possível contrair dívida com bancos oficiais e particulares, em operações que nem sempre eram muito favoráveis. A emissão de títulos pelo governo federal torna a moeda nacional muito mais independente -- verdadeiramente fiduciária, já que controla a emissão ou enxugamento de dinheiro no estado nacional, constituindo seu próprio lastro, ou melhor: moeda fiduciária não possui outro lastro senão a autoridade do órgão emissor, como Bancos Centrais, por exemplo. Nos anos que se seguiram ao Plano Cruzado, com a estabilidade econômica e o melhor desempenho da economia nas primeiras décadas do século XXI, foi possível amortizar a dívida externa com todos credores e a dívida pública manteve-se apenas com a emissão de títulos. Foi possível até acumular reservas em dólares. Antes disso, a dívida, bem como os juros, eram pagos com as divisas do país. E todo país que não possui tal sistema de emissão de dívida em forma de títulos sofre com tal problema, pois se a dívida se acumula muito a balança de pagamentos no comércio internacional pode ser extremamente deficitária e especiamente se realizada em moeda estrangeira. A emissão de títulos para controle da dívida, aberta tanto ao capital nacional quanto estrangeiro, é uma forma de controlar a quantidade de dinheiro em sua própria moeda, bem como controle inflacionário, já que não exposto diretamente à variação cambial.

Juros.

A parte "sensível" do problema e talvez a parte principal. Trata-se de uma discussão de longa data e os que defendem os juros altos geralmente apresentam a questão da inflação: juros mais altos contém a inflação. Simples. Portanto, um mal necessário. Mas será que essa relação é realmente necessária? Primeiramente, quem ganha com os juros altos determinados pelo Banco Central, por meio da taxa SELIC? Segundo o grande economista Ladislau Dowbor, através de muitos e muitos de seus artigos [5], há uma "apropriação indébita" todos os anos de nosso dinheiro por tratar-se valores do orçamento, cuja composição é oriunda dos impostos e tributos que pagamos. Dinheiro de nosso trabalho, de todos, diga-se. E principal e especialmente do trabalho, já que o imposto no Brasil é muito regressivo — os mais pobres pagam proporcionalmente muito mais que os mais ricos. Sem falar nos juros comerciais, isto é, empréstimos pessoais e cartão de crédito — cujos juros são estratosféricos e tornam o emprestador um verdadeiro escravo do credor, leia-se banco [6].

 

É necessário retirar assim dinheiro da economia? Vai refletir como no mercado? Esse dinheiro "emprestado" ao governo via títulos do Tesouro vai ser útil? O Tesouro fará bom uso dele? São questões importantes que deveriam ser respondidas com maior transparência. A Dívida Pública, via Tesouro Nacional, é transparente, mas o que Tesouro faz com a venda de títulos é que é a interrogação. A conta do Tesouro Nacional é importante, sim, pois é uma parte deste dinheiro que vai, por exemplo, para o BNDES e outras transações importantes e complexas com os Bancos comerciais privados e públicos. Então temos dois grandes problemas: qual o custo desse dinheiro e o que se faz dele. 

 

Existe um negócio chamado "taxa real de juros". Difícil de ser aferida, dado que as justificativas do BC em torno dos juros podem ser as mais diversas, "justas" e relativamente comprováveis. Recentemente o economista André Lara Resende criticou a alta taxa de juro real em nossa economia: "a mais alta do mundo" [7], sustentando que isso atende às expectativas apenas do mercado financeiro. Em recente livro, o economista explica o porque de suas críticas, em especial à TQM (Teoria Quantitativa Monetária). Veja uma resenha do livro, indicada em nota [8]. Resumindo grosseiramente, trata-se de uma crítica à teoria que entende que os preços têm relação direta com a quantidade de moeda e o excesso desta seria a causa (única, para os ortodoxos) da inflação.

 

Se a crítica de Lara Resende estiver correta, então de fato alguém está arrancando muito dinheiro do Estado por meio dos juros da taxa SELIC. E os bancos, por sua vez, além de faturarem com isso, dado que são os principais intermediários da venda de títulos, ganham também com os empréstimos aos particulares. O crédito resulta em um artigo caro e é dos principais — senão o principal — entraves à economia produtiva. E o mercado financeiro agradece que seja assim.

 

Para Ladislau Dowbor esse mecanismo seria a principal causa da falta de recursos em áreas sociais e produtivas. Podemos concordar em grande parte, uma vez que estamos, efetivamente, transferindo dinheiro do trabalho para a área financeira, deixando os muito ricos muito mais ricos. Em compensação tudo fica muito caro se não há investimento, pois produtos e serviços dependem disso, de investimentos.  É aqui que encontramos a principal razão, e não outra, do que alguns denominam, equivocadamente para a nossa economia, de "Custo Brasil". 


Portanto, não temos exatamente um "desequilíbrio fiscal", como afirmado por alguns agentes econômicos. Temos um desequilíbrio no orçamento devido ao pagamento de juros da dívida. Juros que são altos e acabam pesando no orçamento muito mais que os investimentos em saúde ou previdência, por exemplo. E diga-se por sua vez que os juros são altos devido a interesses que não são exatamente os a bem da economia, mas a bem de um setor do mercado que vive muito bem nesse paraíso: os chamados rentistas. Aqui está o verdadeiro Custo Brazil. 



Notas:

[1] https://www.portaldaindustria.com.br/industria-de-a-z/o-que-e-custo-brasil/#:~:text=Custo%20Brasil%20%C3%A9%20a%20express%C3%A3o,de%20log%C3%ADstica%2C%20comprometem%20investimentos%20e

[2] DOWBOR, Ladislau. A Era do Capital Improdutivo. São Paulo: Autonomia Literaria, 2017. p.187

[3] FATTORELLI, Maria Lúcia. Auditoria Cidadã da Dívida dos Estados. Brasília: Inove Editora, 2013, p.111

[4] idem, p. 115

[5] https://dowbor.org/2012/10/descaminhos-do-dinheiro-apropriacao-via-divida-publica-parte-ii-outubro-20123p.html ver também: https://dowbor.org/2014/04/a-taxa-selic-e-o-veneno-da-economia-entrevista-especial-com-amir-khair-abril-2014-2p.html

[6] https://dowbor.org/2012/10/os-descaminhos-do-dinheiro-juros-comerciais-parte-iii-outubro-2012-6p.html 

[7] https://www.cartacapital.com.br/economia/andre-lara-resende-endossa-criticas-a-taxa-selic-em-1375-a-mais-alta-do-mundo/

[8] https://www.scielo.br/j/ecos/a/DFQJJxqnthB7rYSLzTmv8Gf/?lang=pt


quinta-feira, 6 de julho de 2023

Mercenários

 

Patt Nicolle - Tropas saqueando durante a Guerra dos Cem Anos, derivado de um manuscrito do século 14 no Museu Britânico. [https://www.lookandlearn.com/history-images/A000033-01/Troops-looting-during-the-Hundred-Years-War]


Interessante como não há referência a esse conceito nos dicionários de Ciências Sociais, História ou Filosofia, embora esse tema seja tratado nos três campos. E há pouca bibliografia sobre o assunto, embora eles estejam presentes em toda nossa História conhecida. 

A palavra é maldita, pois sempre invoca um adjetivo pejorativo. Pela definição do Aulete Digital:


mercenário

(mer.ce.ná.ri:o)

a.

1. Que trabalha por um preço ou salário ajustado (diz-se esp. de soldado).

2. Que trabalha somente por dinheiro; INTERESSEIRO

sm.

3. Indivíduo mercenário .

[F.: Do lat. mercenarius, a, um.]


Do Latim [1] mercenarius ou mercearius é assalariado, alugado; pode indicar tanto um substantivo quanto um adjetivo. 


Fazendo um estudo de vários casos ao seu tempo e na história, quem cravou finalmente a má fama dos soldados mercenários — qualquer que seja a posição no exército — foi Maquiavel, em especial nos capítulos XII e XIII de O Príncipe: 


"Se alguém tiver o seu Estado apoiado em tal classe de força não estará nunca seguro; não são unidas aos príncipes, são ambiciosas, indisciplinadas, infiéis, insolentes para com os amigos, mas covardes perante os inimigos(...).A razão disso é que não têm outro amor nem outra força que as mantenha em campo, senão uma pequena paga, o que não basta para fazer com que queiram morrer por ti." [2]

As armas mercenárias só causam danos, segundo o ilustre copista, professor e chanceler Maquiavel, pois se se obtêm sucesso, cobram caro e tornam o príncipe rendido a essa sorte; se fracassam, tornam-se um estorvo, dinheiro mal empregado. De todo modo, o príncipe deve se fiar sempre nas suas próprias forças.

No entanto, a arte da guerra deve muito a estes, pois: 

"Compreendemos que são homens que procuram principalmente o seu próprio lucro, pouco importados com a sustentabilidade dos estados que os contratam. Tornam-se inconstantes nas suas ações consoante o cumprimento dos contratos, ou a perspectiva de um lucro acrescido. Estão deslocados da ética cavaleiresca que se cultivava. Atuavam de forma ignóbil, traiçoeira, hostil para com as comunidades por onde passavam. Então porque é que eram estes grupos tão imprescindíveis para os monarcas medievais? Em primeiro lugar, eram conhecedores de todo o tipo de artimanhas, de invasão de fortificações ou castelos. Eram capazes de matar de forma traiçoeira os seus adversários nobres." [3]

Ainda mais que, como afirma Pereira, os exércitos profissionais nos tempos medievais (e não só neste tempo, como também na primeira modernidade) eram uma "miragem".  Os capitães desses exércitos eram na maioria nobres e/ou cavaleiros, que podiam arregimentar forças fiéis, oferecendo soldo e promessas de saque lucrativo. Os exércitos são uma herança de compromissos de suserania e vassalagem, até sofrerem grandes transformações no século XIX.


Comentário.

Existiram e ainda existem os mercenários do mar — chamados de piratas — que parece ter dado certo ao menos para a Inglaterra. Mercenários do mar aparentam oferecer menos perigo ao Estado que mercenários da terra.  Mas isso é outra história. De todo modo, em razão dos últimos acontecimentos com tais forças na Rússia, devemos atentar para as lições de O Príncipe, ainda que os mercenários modernos sejam verdadeiras empresas, tais como a extinta Black Water. Existe até uma legislação internacional, bastante ambígua, que cobre o funcionamento dessas empresas, especialmente no que diz respeito aos funcionários — que são considerados "civis" (!) [4] Pela definição desse código os combatentes de empresas privadas não são considerados mercenários. Pasmem. Esse termo é de emprego semiótico, dado que se reveste pejorativamente. Para o Ocidente e a imprensa ocidental "mercenários" são sempre os inimigos. Os "amigos" combatentes são "rebeldes", que lutam para derrubar ditadores e estabelecer a democracia. Isso se tornou a Cruzada Moderna, legado de longa duração medieval. 

Enfim, esses exércitos-empresa funcionam sob contrato. Não é normal nos tempos de hoje —  contrariamente ao tempo de Maquiavel — que haja reviravoltas contra o contratante. Os problemas não são de ordem ideológica — como querem vender a imprensa no Ocidente com relação ao Grupo Wagner. Fiquemos atentos. No futuro saberemos algo mais consistente. 


Fontes:

[1] Dicionário de Latim-Português: termos e expressões. Supervisão editorial Jair Lot Vieira — São Paulo: Edipro, 2016. p. 253

[2]MACHIAVELLI, Niccoló. O Príncipe. Tradução prefácio e notas de Lívio Xavier. São Paulo: Atena Editora, 1957 (1513). p.73-74

[3] PEREIRA, Joel Avelino Ribeiro. Os Mercenários nas Guerras Fernandinas e nas Guerras da Independência (1367-1411). Dissertação de Mestrado em História. Universidade do Minho, Janeiro de 2020. p.17

[4] https://www.icrc.org/pt/doc/resources/documents/faq/pmsc-faq-150908.htm



Sobre os acontecimentos recentes relacionados ao Grupo Wagner:

https://www.anti-spiegel.ru/2023/wie-es-zu-dem-putschversuch-kam-und-wie-die-aktuelle-lage-ist/