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quinta-feira, 6 de julho de 2023

Mercenários

 

Patt Nicolle - Tropas saqueando durante a Guerra dos Cem Anos, derivado de um manuscrito do século 14 no Museu Britânico. [https://www.lookandlearn.com/history-images/A000033-01/Troops-looting-during-the-Hundred-Years-War]


Interessante como não há referência a esse conceito nos dicionários de Ciências Sociais, História ou Filosofia, embora esse tema seja tratado nos três campos. E há pouca bibliografia sobre o assunto, embora eles estejam presentes em toda nossa História conhecida. 

A palavra é maldita, pois sempre invoca um adjetivo pejorativo. Pela definição do Aulete Digital:


mercenário

(mer.ce.ná.ri:o)

a.

1. Que trabalha por um preço ou salário ajustado (diz-se esp. de soldado).

2. Que trabalha somente por dinheiro; INTERESSEIRO

sm.

3. Indivíduo mercenário .

[F.: Do lat. mercenarius, a, um.]


Do Latim [1] mercenarius ou mercearius é assalariado, alugado; pode indicar tanto um substantivo quanto um adjetivo. 


Fazendo um estudo de vários casos ao seu tempo e na história, quem cravou finalmente a má fama dos soldados mercenários — qualquer que seja a posição no exército — foi Maquiavel, em especial nos capítulos XII e XIII de O Príncipe: 


"Se alguém tiver o seu Estado apoiado em tal classe de força não estará nunca seguro; não são unidas aos príncipes, são ambiciosas, indisciplinadas, infiéis, insolentes para com os amigos, mas covardes perante os inimigos(...).A razão disso é que não têm outro amor nem outra força que as mantenha em campo, senão uma pequena paga, o que não basta para fazer com que queiram morrer por ti." [2]

As armas mercenárias só causam danos, segundo o ilustre copista, professor e chanceler Maquiavel, pois se se obtêm sucesso, cobram caro e tornam o príncipe rendido a essa sorte; se fracassam, tornam-se um estorvo, dinheiro mal empregado. De todo modo, o príncipe deve se fiar sempre nas suas próprias forças.

No entanto, a arte da guerra deve muito a estes, pois: 

"Compreendemos que são homens que procuram principalmente o seu próprio lucro, pouco importados com a sustentabilidade dos estados que os contratam. Tornam-se inconstantes nas suas ações consoante o cumprimento dos contratos, ou a perspectiva de um lucro acrescido. Estão deslocados da ética cavaleiresca que se cultivava. Atuavam de forma ignóbil, traiçoeira, hostil para com as comunidades por onde passavam. Então porque é que eram estes grupos tão imprescindíveis para os monarcas medievais? Em primeiro lugar, eram conhecedores de todo o tipo de artimanhas, de invasão de fortificações ou castelos. Eram capazes de matar de forma traiçoeira os seus adversários nobres." [3]

Ainda mais que, como afirma Pereira, os exércitos profissionais nos tempos medievais (e não só neste tempo, como também na primeira modernidade) eram uma "miragem".  Os capitães desses exércitos eram na maioria nobres e/ou cavaleiros, que podiam arregimentar forças fiéis, oferecendo soldo e promessas de saque lucrativo. Os exércitos são uma herança de compromissos de suserania e vassalagem, até sofrerem grandes transformações no século XIX.


Comentário.

Existiram e ainda existem os mercenários do mar — chamados de piratas — que parece ter dado certo ao menos para a Inglaterra. Mercenários do mar aparentam oferecer menos perigo ao Estado que mercenários da terra.  Mas isso é outra história. De todo modo, em razão dos últimos acontecimentos com tais forças na Rússia, devemos atentar para as lições de O Príncipe, ainda que os mercenários modernos sejam verdadeiras empresas, tais como a extinta Black Water. Existe até uma legislação internacional, bastante ambígua, que cobre o funcionamento dessas empresas, especialmente no que diz respeito aos funcionários — que são considerados "civis" (!) [4] Pela definição desse código os combatentes de empresas privadas não são considerados mercenários. Pasmem. Esse termo é de emprego semiótico, dado que se reveste pejorativamente. Para o Ocidente e a imprensa ocidental "mercenários" são sempre os inimigos. Os "amigos" combatentes são "rebeldes", que lutam para derrubar ditadores e estabelecer a democracia. Isso se tornou a Cruzada Moderna, legado de longa duração medieval. 

Enfim, esses exércitos-empresa funcionam sob contrato. Não é normal nos tempos de hoje —  contrariamente ao tempo de Maquiavel — que haja reviravoltas contra o contratante. Os problemas não são de ordem ideológica — como querem vender a imprensa no Ocidente com relação ao Grupo Wagner. Fiquemos atentos. No futuro saberemos algo mais consistente. 


Fontes:

[1] Dicionário de Latim-Português: termos e expressões. Supervisão editorial Jair Lot Vieira — São Paulo: Edipro, 2016. p. 253

[2]MACHIAVELLI, Niccoló. O Príncipe. Tradução prefácio e notas de Lívio Xavier. São Paulo: Atena Editora, 1957 (1513). p.73-74

[3] PEREIRA, Joel Avelino Ribeiro. Os Mercenários nas Guerras Fernandinas e nas Guerras da Independência (1367-1411). Dissertação de Mestrado em História. Universidade do Minho, Janeiro de 2020. p.17

[4] https://www.icrc.org/pt/doc/resources/documents/faq/pmsc-faq-150908.htm



Sobre os acontecimentos recentes relacionados ao Grupo Wagner:

https://www.anti-spiegel.ru/2023/wie-es-zu-dem-putschversuch-kam-und-wie-die-aktuelle-lage-ist/



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