Postagens mais visitadas

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

A Propaganda Negativa sobre a China e a Rússia nos tempos da Segunda Guerra Fria e da Guerra Híbrida. Os vídeos do canal Meteoro.


Este texto foi produzido como resposta crítica a dois vídeos do canal Meteoro.


No geral, os vídeos do Meteoro estão de parabéns. Considero de alta qualidade a produção e conteúdo dos vídeos.


Por outro lado, há uma observação a ser feita — diz respeito às matérias internacionais, que envolvem geopolítica. E isso especialmente quando se relacionam à China e à Rússia. Confesso que fiquei incomodado com dois vídeos, cada um deles envolvendo os dois países.


Vamos ao primeiro: "Um novo império chinês".

É perfeitamente possível concordar que a China esteja se tornando, cada vez mais, um "império". A China, que vinha e ainda vem se pautando pelo "soft power ", quer dizer, uma política internacional baseada na diplomacia e nos acordos econômicos multilaterais. Mas a despeito do esforço da China, até agora, está vigorando um grande esforço de Ocidente apresentar a China de outro modo. Em outras palavras, a propaganda negativa contra a China se acirrou. Ela é promovida por think tanks, como descreve Oliver Stuenkel em seu artigo [1]. E não é difícil entrar nessa, pois a China não possui um governo como nós ocidentais gostaríamos que fosse -- plano liberal. Mas isso é outra história e envolve muito do etnocentrismo ocidental. Nossa compreensão desses regimes é distorcida por avaliações pré-concebidas, sem imparcialidade, sem nenhum equilíbrio. Basta refletir sobre as imagens quando são transmitidos vídeos quando os dois países, EUA e China, são confrontados ou comparados. Imagens da China trazem desfiles militares, pessoas com uniformes, grandes aglomerações organizadas. Do outro lado, um chefe de estado, discursando da tribuna, sob um terno elegante. Essa é a semiótica das imagens, que são reais, mas não verdadeiras, posto que são cuidadosamente escolhidas e editadas, passando determinadas mensagens. No caso da China, mostrar aquelas pessoas com aquelas camisas, quase um uniforme, como se todos vestissem o mesmo hábito, não é verdadeiro mais. O vestuário não difere muito do do Ocidente , mas com peculiaridades, claro [2]. Mas agora vamos ao mais delicado. Trata-se das fronteiras chinesas e os territórios que (sempre) lhe pertenceram de modo legítimo. Isso se considerarmos legítimo o território constituído antes dos confrontos com as nações ocidentais, Holanda e especialmente Inglaterra. No caso de Taiwan é notório observar uma identidade chinesa quando da invasão e ocupação japonesa. O caso da Mongólia é mais complicado, pois há uma identidade e cultura próprias na Mongólia, e que a China teve que reconhecer nos anos 1990 [3].

A questão do Uigures. Essa é problemática. Os uigures são uma das mais de cinquenta etnias reconhecidas pela própria China. Os uigures, de origem muçulmana turcomena, viviam em paz na região a oeste da China, ao menos até os anos de 1990. É evidente que atualmente há repressão, pois os sinais estão evidenciados na imprensa.[4] Agora, afirmar que há uma "limpeza étnica", isso é exagero. Nem tudo é mostrado pela imprensa ocidental, pois o que temos são informações das agências de notícias, notadamente parciais e muito manipuladoras. Grupos rebeldes, armados por fundamentalistas, existem sim.[5] O que explica um povo — que até então se acomodava bem ao território e que possuía até autonomia administrativa — se revoltar dessa forma de uma hora para outra? Ocorre que escapa à equipe do Meteoro que desde a queda do Muro de Berlim e a ruína da antiga URRS, os EUA voltaram-se para os balcãs, para as antigas repúblicas socialistas, subtraindo-as da esfera de influência da Rússia.[6] Essa política territorial, de formar um "anel" de isolamento contra seus adversários faz parte da nova geoestratégia norte-americana, adotada a partir dos anos 1990 e que passou a se denominar "guerra híbrida"[7]. E ela está sendo adotada no mundo inteiro, inclusive contra a China. A propaganda negativa desses países pelo Ocidente faz parte dessa guerra de vários níveis — inclusive a cultural.

A Guerra Híbrida não é uma invenção. Não é uma teoria conspiratória. Mas teorias conspiratórias fazem parte da Guerra Híbrida, bem como fake news, que circulam por aí e não é só por que existe "maldade no mundo". Há uma intencionalidade nelas. As máquinas de fake news vêm, na sua maior parte, de think tanks com muito dinheiro para gastar e financiar grupos políticos radicais no mundo inteiro.

Para resumir: que China esteja se tornando uma potência imperialista é possível fazer esta afirmação, mas não pelos fatos apontados no vídeo, pois ali só há questões internas. E ainda é preciso especificar que métodos imperialistas são estes, pois o imperialismo pode ocorrer por ocupação militar, domínio econômico, ideológico, tecnológico, etc. A realidade é bem mais complexa do que simplesmente apontar para falhas, grandes indiscutivelmente, do modo de governar. Ademais, a China ainda não mudou, a despeito das agressões dos EUA contra ela, seu método soft power de relações internacionais. O Meteoro poderia melhorar muito esse vídeo, fazendo outro a respeito e corrigindo esses exageros, produzindo algo mais equilibrado, de acordo com a própria  linha de sua produção. 

 

O segundo vídeo: "Vacina russa". 

É verdade que a Rússia, bem como outros países do Ocidente, apressaram-se na busca de uma vacina contra o Covid-19. Ocorre o seguinte: porque a desconfiança tão grande com relação à Rússia? Em parte o Meteoro explica, com certa razão: a questão das publicações. Este segundo vídeo considero bem mais equilibrado que o primeiro já citado, sobre a China. No entanto, a desconfiança ficou só de um lado. Quer dizer, faltou esclarecer melhor o apressamento dos dados por parte de todos (já que o Meteoro se dirige ao grande público, com todo mérito): o registro da patente. A sobreposição de fases de testes, conforme as que foram realizadas em Oxford na Inglaterra, poderia muito bem ser alvo de críticas, numa situação normal. Mas como há pressa no mundo todo, então justifica-se. Igualmente, nessa corrida pelo registro das patentes e pela melhor solução, a não publicação de dados poderia até ser justificável por parte do estado russo. Justificável em termos geoestratégicos e econômicos, claro. Mas com toda certeza, de modo algum, pela ética científica, que requer plena transparência das experiências e testes. Faz parte não só da ética, mas do próprio método [8]. Na minha opinião a desconfiança para com a Rússia é exagerada e nesse caso da vacina apenas veio à tona uma desconfiança anterior que tem por fundamento essa disputa recente dos EUA com China e Rússia. Não haveria a desconfiança em tal nível se a Rússia não estivesse no jogo geopolítico e pari passo na corrida armamentista. A Rússia está no tema dos discursos na disputa eleitoral. Trump, por seu turno, não fica uma semana sem afirmações negativas contra a China. Inventou até o "vírus chinês". Bom, mas enfim, pode se perguntar: e a imprensa internacional, fora dos EUA, cai nessa? Segundo o insuspeito Chomski, as agências internacionais de notícias, que fornecem releases ao mundo inteiro, não escapam de empregar manipulação midiática.[9] Mas retornando ao assunto: não podemos ficar presos ao fato recente, considerando-o apenas isoladamente. Temos que olhar para a história também. A nova Rússia, surgida do desmonte ao tempo da URRS, não derrubou tudo ao chão. Havia laboratórios de pesquisa que permaneceram, o complexo tecnológico não foi totalmente destruído, especialmente o da guerra.[10] Então, talvez se a Rússia não fosse atualmente "inimiga" essa falta de transparência seria considerada secundária, todos olhariam para seu background tecnológico e assim por diante. A publicação dos dados, que depende de acordo, do selo de confiança da OMS, estaria caminhando em outros termos.

 

Enfim, as fontes. Não quero criticar as fontes que vocês usam, mas faz parte da metodologia do historiador fazer a crítica das fontes. Percebo que vocês empregam muito  o The New York Times. Nada muito contra, mas em termos geopolíticos este veículo de comunicação é "chapa branca". Não veremos artigos equilibrados quando China e Rússia estiverem na parada. E há alternativas: Le Monde, Agência Sputnik, etc. Quer dizer, não é preciso descartar nenhuma fonte, mas é preciso empregar todas, diversificá-las, cruzá-las e fazer a crítica delas.

 

É recorrente a desqualificação dos outros países, por parte do Ocidente, apontando apenas para a questão da democracia. Claro, não é um detalhe menor. Ocorre que ao apontar as falhas os países "democrático liberais" incidem suas críticas sempre na questão das eleições, mesmo quando há eleições. Para os EUA, por exemplo, as eleições que ocorrem nos países que eles consideram seus inimigos nunca são válidas. Em compensação quando há golpes, como por exemplo o ocorrido recentemente na Bolívia de Evo Morales, é porque o "povo se insurgiu" e é legítimo. Se um governante está no poder há mais de dez anos, para os países inimigos é ditadura, mesmo que ele tenha sido eleito. Se é aliado, nem se fala no assunto. Angela Merkel está no poder desde 2005 sem jamais ser contestada. Grande estadista, tem meu apreço. Mas pode se objetar que se trata do sistema de governo na Alemanha. Bem, então todos podem ter o seu próprio, não?

 

 

 

[1]https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2019/06/16/Como-funciona-o-soft-power-chin%C3%AAs-segundo-este-autor,

[2]https://chinanaminhavida.com/2015/05/02/consideracoes-sobre-a-moda-chinesa/

[3]https://pt.wikipedia.org/wiki/Mong%C3%B3lia; para a questão com Taiwan e o Mar do sul da China veja: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-85292012000200005

[4]https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2009/07/090707_entenda_uigures_tp

[5]https://diplomatique.org.br/uigures-entre-a-modernidade-e-a-repressao/

[6]Para esta e outras questões relacionadas, consultar o excelente livro de Luiz Antonio Moniz Bandeira, "A Segunda Guerra Fria", em especial caps. I a V; para a questão da China com os uigures, cap. VI

[7]Koribko, Andrew. "Guerras Híbridas. Das revoluções coloridas aos golpes."  São Paulo: Expressão Popular, 2018. Aqui temos um capítulo especial dedicado às estratégias contra a Rússia, pp. 142 e segs.

[8]https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-96222016000200427; um om artigo sobre Popper nesse assunto: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732015000200163

[9]CHOMSKY, Noam. "Mídia: propaganda política e manipulação." São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013 (2002).

[10]https://epocanegocios.globo.com/Mundo/noticia/2019/03/como-russia-vem-se-tornando-um-polo-destacado-de-inovacao.html


Os vídeos do Meteoro:

Vacina russa:

https://www.youtube.com/watch?v=teC1X4s0LfE&t=612s


Um novo império chinês:

https://www.youtube.com/watch?v=uHcxQTdQlOI&t=3s

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

DESIGUALDADE & CAMINHOS PARA UMA SOCIEDADE MAIS JUSTA - EDUARDO MOREIRA

 


MOREIRA, Eduardo. Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.  == RESENHA ==

Este não é um livro de economia ao qual estamos acostumados normalmente a ler.

Podemos dizer que o engenheiro-economista Eduardo Moreira conseguiu  uma proeza que não vi em outro autor nacional. A economia aqui nos é descrita tal qual aquele mecânico de carro que nos mostra, levantando o capô de um automóvel, o funcionamento do motor. E mais: como esse motor faz movimentar as rodas, a relação com o mecanismo de marchas, de freios, e assim por diante.

Mesmo para quem já é iniciado em economia, vale a pena ler. Moreira demonstra, por meio de um cenário hipotético, como a riqueza é construída e por quais meios ela é apropriada, bem como demonstra também as vantagens (e necessidade) de uma justa distribuição de riqueza. Mas Eduardo Moreira não é simplesmente um economista que advoga um distributivismo simples e gratuito. Mostra também porque é importante todos produzirem riqueza, não apenas acumular riqueza; produção esta que ele denomina de "verdadeira economia".

Para estas lições, afirma, valeu muito a experiência porque passou no MST. Não fez apenas uma visita. Passou lá um tempo, em vários assentamentos, morando, dormindo e até trabalhando nas mesmas condições materiais dos assentados. Lá realizou as verdadeiras lições de economia, na prática.

No mais, Moreira fala do sistema bancário, da dívida pública, do PIB, dos impostos, do futuro do capitalismo — tudo isso em pouco mais de cem páginas.

O capítulo sobre o mecanismo que gera a desigualdade no capitalismo —  além da exploração do trabalho — que é o sistema de endividamento público, é simplesmente imperdível. Em poucas páginas o autor esclarece, como ninguém, numa linguagem a mais comum possível, como a dívida pública funciona como uma máquina de transferir riqueza do trabalho para o capital, dos trabalhadores para os capitalistas, dos pobres para os ricos.

E enfim o autor aponta para soluções — todas elas envolvendo uma maior liberdade democrática sobre as decisões na produção de riqueza; além também de indicar mecanismos para distribuição de riqueza via cobrança (justa) de impostos — que é um meio de manter os buracos de areia de um parque menos fundos e os montes menos volumosos, quer dizer, manter a equidade  de riqueza. Riqueza, não dinheiro apenas.

Quer saber a diferença entre dinheiro e riqueza? O autor nos indica:

"...tranque uma pessoa dentro de um cofre com 10 milhões de dólares por uma semana e veja se ela vai se achar rica (ou sairá viva)" (p.22)

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

A especialidade do mal.

 

BUGALHO, Henry. "Minha especialidade é matar". Ebook Kindle.

Excelente síntese do primeiro ano do governo Bolsonaro, com artigos escritos para a Carta Capital.

Aqui, pela exposição do autor, podemos antever o que viria deste paradigma político que é o bolsonarismo. Por isso o subtítulo é esclarecedor: "como o bolsonarismo tomou conta do Brasil." Sim, pois este governo vai para além de Bolsonaro. Representa uma mentalidade.

A frase, registrada pela própria voz do ex-capitão, soa forte e causa perturbações.

Essa radiografia do bolsonarismo é necessária. Neste ponto, Bugalho atenta para a questão das fake news, por exemplo, que se revela como um modo de governar e obter consensos "fabricados".

Ao longo dos artigos Bugalho demonstra como esse modo de governar — que inclui a manipulação da pauta política pela exposição midiática — vai se "naturalizando", tornando-se parte do cotidiano. Num momento Bolsonaro esbraveja, ameaça e solta bravatas contra as instituições (leia-se Congresso e STF); noutro momento abaixa o tom e parece recuar.

Não por acaso, sob a batuta dessa dança macabra, o projeto político e econômico autoritário vai avançando.

Este livro, se fosse possível, deveria ter sido lançado antes mesmo de Bolsonaro tomar posse.