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quinta-feira, 17 de maio de 2012

Jazz. Uma história social e crítica.

HOBSBAWM, Eric.  História Social do Jazz. Trad. Angela Noronha. Prefácio Luís Fernando Veríssimo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990 (1959-61).

Leitura realizada em Maio de 2012, revista em Outubro de 2022

Na minha conceituação, o ofício do historiador é o de interpretar os mitos e desconstruir os clichês, buscando com isso, por meio de  uma exposição narrativa, iluminar parte do passado social dos homens. Cada uma destas coisas – interpretar, desconstruir, narrar – envolve uma metolodogia (como técnica) própria, mas que serão absolutamente definidas após a pesquisa. Que é outro problema. O método, propriamente dito, que é uma relação entre sujeito e objeto, pode (ou deve) parametrizar e conduzir o estudo. No meio de tudo isso, estão os conceitos (como tipo ideal), que ajudam a empurrar para a frente todo este trabalho.

 

Este trabalho de Hobsbawm é digno do ofício que mencionei.

 

Assim como a história da feijojada, a história do Jazz, envolve tantos clichês quanto mitos, que juntos estes podem resultar em pura lenda. É a velha máxima de que cada parte traz uma verdade, mas juntas todas, somadas, não traz nada de realidade. E precisamos de alguma, se quisermos sustentar qualquer ficção.

 

À época anônimo e escrito sob o codinome de Francis Newton, Hobsbawm faz uma síntese excelente sobre a origem social do Jazz e seu desenvolvimento comercial, desde as suas origens até o momento em que foi escrito, em 1959 - com um prefácio de 1989, atualizando algumas informações.

 Em linhas gerais, Hobsbawm entende o Jazz como revolucionário, ou ainda, possuidor de aspectos revolucionários, tais como sua forma, expressão e linguagem. Sempre foi um interesse de minorias, afirma (p. 13); no entanto, alcançou difusão e popularidade internacional, havendo fases de expansão, onde o interesse se renova, como é o caso do final dos anos 1930. Por outro lado o Jazz também sempre se renovou e inovou e é reconhecida a sua resistência aos interesses comerciais e industriais mais massificados, embora essa própria indústria o tenha promovido, cada vez mais.

 

Assim, diz Hobsbawm, foi o bepop - uma revolução no estilo do jazz ocorrido em meados dos anos 1940, cujos músicos buscavam uma forma nova, mas que foi encampada pela indústria musical. É preciso enfatizar que o jazz, como apresentado por Hobsbawm, sempre foi refratário a uma vulgarização maior - por isso se manteve como um interesse entre intelectuais e jovens de esquerda.  Em seu prefácio de 1989 atualizada essa informação: quando adentramos na era do rock - interesse especial dos mais jovens - o jazz passa a ser apreciado por um público mais velho e de certo modo mais exigente com relação ao que chamaríamos de arte, tanto na sua especificidade quanto na realização em termos rítmicos.

 

Ao mesmo tempo o jazz sempre se aproveitou da música pop e esta dele, numa clara simbiose, mas sem imiscuir-se um no outro (v. cap. "Música popular"). Por isso mesmo o jazz também se presta à indústria, sendo fonte de inovação melódica para outras formas, inclusive o pop. Como o livro foi escrito em 1959 e atualizado apenas por um prefácio de 1989, a relação com o rock não foi muito aprofundada. O autor fez questão de marcar as diferenças, especialmente, e não as semelhanças e influências recíprocas, que certamente existiram e existem. De todo modo, o jazz pode ser considerado uma arte popular, de grande difusão, mas que não faz concessões fáceis ao comercialismo. Nisso Hobsbawm parece estar certo.

 

Mas o que é o jazz? A resposta está por todo o livro, basta lê-lo e prestar atenção. É uma forma musical revolucionária, distinta, caracteristicamente de resistência (dos negros, inicialmente), mas sobretudo porque:

 

"(...) o efeito mais poderoso do jazz está na comunicação da emoção humana de forma intensificada. (...) O jazz é, portanto, música de músicos, música expressando diretamente as emoções (...)" [p.151]


O jazz, segundo
Hobsbawm, não busca a excelência crítica, tal como a música clássica, mas seus músicos buscam uma perfeição com relação à execução do instrumento. A não ser pelas mãos de Ellington, o jazz fugiu de forma geral à notação e à escrita - inclinando-se sempre para uma espécie de improvisação, que em grande parte é um mito, pois seus músicos ensaiam muito. A improvisação fica por conta das jam session - momento particular da vida do jazzista, já que neste ele toca para ele mesmo e para seus companheiros, muitas vezes como desafios.

 

O jazz deriva de uma música ritual, religiosa (música de gospel) e também das canções de trabalho, especialmente no Sul do EUA. É uma música de origem rítmica negra, mas que se encontra com as tradições musicais espanhola, francesa e anglo-saxã. É nítida sua origem folclórica [embora eu não goste deste termo, Hobsbawm o emprega]. Além disso, o jazz também deriva de uma forma de entretenimento musical popular que é a música de rua. O primeiro estilo identificável foi o ragtime e o segundo o blues, cada um com características próprias. Além, é claro, do estilo New Orleans, que se tornou mítico. O entretenimento popular teve grande difusão nas cidades e especialmente as portuárias, como New Orleans, espalhando-se depois para outras cidades, especialmente para o norte, quando a migração de negros após a Guerra Civil foi maciça. Nos anos 1920 o jazz tornou-se uma linguagem nacional. Houve um recuo após o final desta década, renascendo após 1935 e revolucionando-se em meados da década de 1940.

 

Hobsbawm valoriza por demais o "fenômeno jazz", chegando mesmo a exagerar um pouco a autonomia do movimento:

 

"Na verdade, o jazz fez seu caminho às sua próprias custas. E só depois de tê-lo feito foi reconhecido pelo governo americano como agente de propaganda do american way of life (...) e enviando músicos de projeção ao exterior como 'embaixadores culturais'" (p. 82).

 

Não sem alguma dificuldade, Hobsbawm consegue explicar como o jazz foi sempre refratário ao comercialismo. Quando isso se torna evidente sua justificativa para o fato desvia para a conduta do músico: sempre quiseram ser profissionais, então tinham que ceder à produção industrial. Não que este aspecto não seja verdadeiro, mas é que Hobsbawm, como dissemos, sobrevaloriza o fenômeno. E é perfeitamente compreensível, já que ele mesmo assume ser fã de jazz, embora tenha escrito o livro, à época, sob o pseudônimo de Francis Newton.

 

Por outro lado, o prefácio de 1989 relativiza tudo o que talvez tenha exagerado corpo do livro. E exagerou um pouco mesmo no capítulo sobre o público de jazz (Parte 4 - "Gente", cap. "O público"), onde aborda e descreve os vários perfis de ouvintes e fãs do ritmo.

 

Talvez a melhor parte, em termos de análise sociológica e ao mesmo tempo histórica, seja a Parte 3 - "Negócios". Os dois capítulos que a compõem, "Música popular" e "A indústria do jazz", são excepcionais. Trata-se de uma verdadeira aula sobre a lógica industrial e sua relação com formas pré-industriais da cultura popular, como esta é apropriada por aquela e as mudanças e evoluções que isso implica, não necessariamente ruins.

 

O capítulo final, "Jazz como protesto", contido na Parte 4 - "Gente", também merece destaque. E aqui talvez o leitor compreenda melhor as colocações anteriores do autor, que nos mostra como a música serviu inicialmente como resistência e posteriormente como estandarte de luta da figura do negro pobre, oprimido mas consciente - numa clara oposição à postura de "Pai Tomás", isto é, a do negro que cede e se acomoda às formas sociais e culturais dominadoras do branco. Mas também o capítulo possui uma passagem de pequeno exagero; é quando Hobsbawm afirma que, devido ao caráter de protesto da música, é possível aproximá-la de formas políticas revolucionárias, em tempos de fermentação política (p.283). Só não identifica claramente esse momento e nem seus sujeitos. Embora ele mesmo afirme que não é fácil encontrar e nem implique necessariamente militância. Mas expressa sobretudo um desejo de participar, interagir.

 

Ademais, o livro é excelente não só como estudo histórico daquela tradição musical, mas também como uma grande introdução ao assunto. Possui um capítulo especial para discografia, leitura complementar e ainda um vocabulário, além de um precioso índice onomástico, ponto fraco em muitos outros bons livros. Na minha opinião Hobsbawm empregou pouco espaço para análise de Ellington, embora tenha lhe dedicado algumas preciosas páginas e ressaltado muito sua importância. O grande músico, pela sua obra como um todo, talvez merecesse um capítulo especial. Alguns outros músicos talvez merecessem também uma minibiografia - como Charlie Parker, por exemplo - mesmo dentro do espaço reduzido. Mas aí seria um compêndio grande e talvez fugisse à proposta do autor.

 

Não se avalia um livro pela capa, como sabemos, mas a desta edição é muito simpática, valorizando seu conteúdo. O estilo do autor deve ser conhecido já por alguns. Escreve de forma clara e bem inteligível, embora seja preciso ficar atento a tudo quanto afirma, pois não consegue escapar a alguns paradoxos, como aqueles que expus acima. Recomendo a todos.

 

Euclides Roberto.

 

P.S. em 22/05/12

Este pós-escrito me ocorreu porque fiquei refletindo sobre outras obras de Hobsbawm em que algumas ideias se repetem.

Diz respeito tanto ao texto original quanto ao prefácio de 1989.

Primeiro: ele diz que o Jazz é música de minorias, ao menos em sua origem. Negros e trabalhadores, muito bem (v. os primeiros capítulos sobre a origem). Depois afirma que é um fenômeno de massas, apropriado pela indústria cultural (v. os caps. sobre a indústria do jazz). Também podemos concordar. Porém ele afirma por diversas vezes que o jazz é ouvido por poucas pessoas, especialmente jovens e intelectuais e atendem a um gosto de minoria (v. cap. "O público", p.246). E é aqui que chegamos a um paradoxo ou pelo menos uma forma de Hobsbawm acomodar o fenômeno jazz às suas teses marxistas. Em várias passagens, também neste capítulo de certa forma, Hobsbawm afirma que o jazz é revolucionário, anticomercial. No último capítulo, "Jazz como protesto", Hobsbawm reitera este caráter revolucionário dizendo que o jazz é sobretudo uma forma de protesto, desde sua origem. Era uma música dos povos e classes oprimidas (p.275). Ora, como um fenômeno de massas, reconhecido internacionalmente, pode ainda manter seu caráter de protesto, revolucionário? "O jazz é contra a opressão, contra a pobreza..." (p.283). Hobsbawm se esforça em apresentar uma música de vanguarda e que serve à vanguarda (jovens intelectuais). Se ela é tão vanguardista assim, porque tanta aceitação, não somente em nossa época, mas várias épocas, como nos anos 20 por exemplo? Hobsbawm tenta acomodar essas contradições, paradoxos, eu diria, apresentando-nos o jazz como  um fenômeno de vanguarda, revolucionário, e de certa forma organizado ("razoavelmente claro em teoria" - p.284), apesar de espontâneo, individual e de forma privada. Enfim, temos aqui a reprodução, por "linhas tortas", da imagem do partido de vanguarda e da classe operária organizada e revolucionária, pronta para orientar as massas (!). Sobra ainda para os anarquistas, que Hobsbawm nunca cansa de atacá-los:

 

"O Jazz é contra a opressão, contra a pobreza, contra a desigualdade e a falta de liberdade, contra a infelicidade. Ele é - de uma forma vaga e anárquica que foi mal compreendida pelos intelectuais anarquistas que o levaram a peito - contra a polícia e os juízes, contra as prisões, os exércitos e a guerra. (...) O ódio a essas coisas não implicam militância." (p. 283)

 

No entanto, o jazz não resistiu ao rock, como o próprio Hobsbawm conclui em seu prefácio de 1989. [Será?] Há uma nova acomodação de suas teses aqui, reforçando ainda o que disse a respeito do jazz no texto original: o jazz sempre foi interesse de minoria (p.13) e o rock nunca foi uma música de minoria (p.15). O autor pode até estar ligeiramente correto nessa asserção; não nega que o rock é fenômeno de massas, especialmente de jovens, que procuram uma expressão de suas vidas. No entanto, falha ao tentar obscurecer ou negar aspectos de fenômeno de massas para o jazz. E falha também no inverso, ao querer negar o de origem de minorias ao rock.

Ora, se fizermos uma comparação, jazz e rock possuem história de nascimento e evolução similares: humilde nas suas origens, apropriado pela indústria, massificado - apesar de seus representantes serem avessos ao sucesso - ao menos durante um período dessa evolução e possuem algo de protesto em sua letra e música. No rock isso é muito mais patente, diga-se de passagem, e o modo de se expressar é muito mais revolucionário (não apenas na apresentação, mas também no uso dos instrumentos, por exemplo). E, por outro lado, como negar ao rock o apelo a uma música de vanguarda? Não foi por meio dele as maiores inovações na música?

Ademais, que garantia temos hoje em dia que determinado músico ou artista não quer fazer sucesso, levar sua música e arte a todos? O jazz é sim fenômeno de massas, assim como o rock. E é bem possível que este último tenha sido uma música de minoria nos seus inícios, mas que foi apropriada rapidamente pela indústria cultural de massas. A diferença estaria no tempo em que uma e outra forma foi apropriada, pois a própria indústria cultural aprendeu a ser rápida e observar melhor os movimentos culturais espontâneos e originais, absorvendo-os e adaptando-os às massas. O elemento de resistência ao comercialismo, identificado no jazz, pode ser igualmente encontrado também no rock. Mas Hobsbawm é amante incondicional do jazz. Entende que esta é uma música genuinamente de minorias e caracteristicamente de vanguarda, portanto, oportuna e apropriadamente revolucionária. Precisamos apenas compreender isso para entender as afirmações do autor, muito embora paradoxais.

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