Postagens mais visitadas

sexta-feira, 14 de maio de 2021

O porquê de assistir à série "Grande Guerreiro Otomano" (Ressurrection, Ertugrul).

...a poesia é mais filosófica e mais elevada do que a história, pois a poesia se ocupa mais do universal, ao passo que a história se restringe ao particular... (Aristóteles, Poética, 1451b5)


Série turca que foi apresentada em forma de novela, tais como as nossas − quando nos bons tempos, em que se empregavam escritores novelistas de alto nível, como Dias Gomes.

 

Um bom argumento a favor da questão, que apresento já de pronto, é o de poder entrar em contato com uma dramaturgia e uma cultura bem diferente da nossa. E por dramaturgia entendo aqui no sentido amplo: a arte de representar − aquilo que Aristóteles denominava imitação da ação (Poética - 1448). Em outras palavras: o modo de representar dos atores, a expressão de seus rostos, a linguagem corporal e a simbologia dos gestos; a direção da ação; o roteiro da ação; a gravidade do drama, se realista, se romântico, se outra coisa.

 

Ressurrection é romântico, assim como a maior parte da dramaturgia contemporânea ocidental. Ao menos para aquelas produções mais comerciais, encenadas no formato de  narrativa mais clássico e onde a figura do heroi se destaca. 

 

Esta série (Dirilis Ertugrul, no original turco) não foge muito às regras comerciais, mas é possível perceber algumas (boas) diferenças − e para isso é preciso paciência para assistir aos primeiros capítulos e avançar nas cinco temporadas, de mais ou menos cem capítulos cada. Como eu já disse, trata-se de uma novela feita para a TV. Há cenas de muito choro, muito sofrimento, muito drama mesmo; um alívio: não chega nem perto dos dramalhões mexicanos. E há momentos de muita ação, lutas bem coreografadas, tensão e suspense bem ao gosto Hollywood. Mas com toques de uma outra dramaturgia, bem menos canastrona que as norte-americanas. 


Também como as séries ocidentais, há aqui um forte conteúdo ideológico. E é menos pelo motivo religioso que o político: uma certa ênfase nacionalista com  afirmação de valores culturais, sociais e religiosos.  

 

Os turcos aqui lutam por espaço, condicionados em uma geografia marcada por migrações constantes, seja pela busca de novos pastos, seja pelo crescimento demográfico. Nessa dinâmica, há o enfrentamento dos Cruzados (especialmente os Templários) de um lado e dos mongóis de outro, um a leste outro a oeste. 


Ressurrection é uma produção que se encaixa bem no projeto político de Erdogan, de edificação nacional, com apelo religioso[1].

 

Mas há nuances. A religião, embora uma constante, é apresentada de modo moderado, desfazendo visivelmente alguns estereótipos criados e imaginados por nós, não muçulmanos. Presente também a ciência, mais desenvolvida aqui neste mundo islâmico que no Ocidente Medieval Cristão. Um bom momento dos episódios são as aparições de Ibn Arabi, sábio filósofo da Andaluzia, cuja obra ainda não está totalmente estudada e elucidada, segundo a Wikipédia [2]. A conferir. 

 

A série, enfim, é uma ficção, uma bela suposição dos fatos que poderiam ter acontecido naqueles tempos (ao menos onde nossas fontes alcançam). No final da bela abertura de apresentação da série há esta advertência: "histórias e personagens desta obra foram inspirados em nossa história". Quem é historiador ou domina o mínimo de história sabe ou precisa saber que as fontes, escritas ou arqueólogicas, sobre esses séculos XII e XIII são mínimas. E as existentes são, muitas vezes, duvidosas, com acréscimos ou supressões. Não há como saber ao certo seus detalhes. 

 

Mesmo as aparições de ibn Arabi na história são uma incógnita. O que é certo para nós é que os turcos viviam em tribos, eram nômades e disputavam o espaço entre si; realizavam um comércio com o mundo muçulmano tanto quanto com o cristão e estabeleceram muitos entrepostos comerciais, garantidos por associações de tribos; combateram os Cruzados, a oeste, quanto os Mongóis, a leste;  combatendo estas frentes, unificaram-se sob Osman, filho de Ertugrul ("Arturo" é o som que parece ouvirmos), garantiram a ocupação de seus territórios e avançaram, durante séculos, rumo ao Império Bizantino, fazendo-o cair sob Mohamed, o então sultão no século XV. Se Osman é mais importante que Ertugrul, não se pode duvidar que este preparou o terreno para a unidade dos turcos, sendo assim um grande líder guerreiro.


A vantagem de uma série assim tão longa é a de perceber a complexidade do processo. Toda construção de uma identidade é uma elaboração lenta, admite um toque artificioso, e necessita de um discurso preciso e eficiente em torno da legitimidade da união. A montagem da série em forma de novela permite-nos a imagem desse quadro.


Mas vale a advertência deste humilde historiador: a história é mais modesta que sua crônica, mas muito mais complexa que seu resumo. 


Por tudo isso vale a pena assistir à série.  Até o fim. E capítulo por capítulo. 



Notas. 

[1] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-44599658

[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Ibn_Arabi


Site confiáveis sobre história islâmica e islamismo:

https://historiaislamica.com/pt/quem%20foi%20ertugrul/

https://iqaraislam.com/o-califado-fatimida

https://iqaraislam.com/licoes-ertugrul


sexta-feira, 7 de maio de 2021

O valor do trabalho em BigMac

 O valor do trabalho no Brasil é algo muito baixo. Todos nós sabemos. Observemos a tabela abaixo, que qualquer um pode compreender facilmente.






Quer dizer: se você ganha um salário mínimo são necessárias quase quatro horas para comer o "big lanche", sem contar com a bebida e as batatinhas. Mas é possível comprar na "oferta", um "combo", como se diz. Esse valor refere-se a Janeiro de 2021 referido no índice BigMac do Dicionário Financeiro [1]. Nos Estados Unidos, esse mesmo lanche custa US$ 5,66, segundo esse índice, que nos serve a estas comparações. Neste país o salário mínimo está em US$ 7,25 -- por hora. Para uma semana de 40 horas de trabalho temos US$ 290. No mês, considerando-o como quatro semanas, temos US$ 1.160. É bom lembrar que a semana de trabalho nos Estados Unidos da América é de 40 horas semanais, não 44 horas como aqui no Brasil. Então temos resumidamente a tabela abaixo (valores em dólares):






Pelo que podemos depreender da comparação entre as duas tabelas, nem mesmo nos Estados Unidos o trabalhador que percebe um salário mínimo está em boas condições de poder de compra. Mas temos nuances nessa palheta de cores. Vamos lá. 

A média salarial no Brasil em 2019 estava em R$ 2.308,00 [2]. A considerar a extrema desigualdade na distribuição de renda no país, é preciso imaginar que a maioria dos brasileiros vivem com menos que isso. E é preciso considerar que essa média salarial é dos que percebem algum salário; se vamos à média dos rendimentos por família, isto é, a renda domiciliar per capita, chegamos a incríveis R$ 1,406,00, em 2019, segundo dados do IBGE, relatório de 2020 [3]. Ainda segundo este relatório, mais de 13 milhões de brasileiros vivem na pobreza extrema, quer dizer, ganhando até US$ 1,90 por dia -- US$ 57 por mês ou pouco mais de R$ 90,00 no valor do dólar de 2011 (PPC de 2011 a 1,66 o dólar). Para estes, um BigMac corresponderia a  1/4 de seu rendimento total -- uma semana inteira de trabalho, vamos dizer. 

Essa "equação BigMac" é um dado abstrato. Mas dados abstratos, bem interpretados e compreendidos em sua própria dimensão, servem muito bem para refletir sobre os fatos concretos. Assim, a história do preço de um lanche pode muito bem exemplificar a medida do nível de pobreza -- ou do valor do trabalho -- de uma nação. Realmente, que "Deus tenha misericórdia" de uma nação assim tão pobre. 










[1]https://www.dicionariofinanceiro.com/big-mac-index/#:~:text=Como%20%C3%A9%20calculado%20o%20%C3%8Dndice%20Big%20Mac&text=Por%20exemplo%2C%20analisando%20em%20janeiro,Brasil%20R%24%2021%2C90.
[2]https://educa.ibge.gov.br/criancas/brasil/nosso-povo/19626-trabalho-e-rendimento.html
[3]Síntese dos Indicadores Sociais, IBGE, 2020, p.58