Postagens mais visitadas

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Estado Policial: como se defender, segundo Cid Benjamin

Livro fundamental para o momento em que vivemos, mas também para todos os momentos da vida de um militante que atua em movimentos sociais.

O livro é uma espécie de manual de militância; no entanto longe de querer ser um guia completo, apresenta-se mais no nível do aconselhamento básico para a ação do militante social, com o fim de evitar a interferência do poder repressivo do estado nos movimentos onde atua. O pequeno "manual" serve-nos mesmo para os momentos da vida política em democracia, pois esta mesma não está completamente garantida.

O livro nos oferece uma perspectiva histórica de como se formaram as milícias e a sua expansão nociva sobre a sociedade civil -- atuando como órgão repressor auxiliar do estado sobre as populações desfavorecidas e sobre a militância dos movimentos sociais e populares. Milícias não são uma novidade -- fazem parte de uma lógica do estado policial onde atuam forças paramilitares, com a cobertura de agentes do poder público.

A obra também ilustra com muitos exemplos tomados à história de como agiu e age ainda a tortura, os serviços de inteligência e a ação policial, muitas vezes acobertada ou com a ajuda do Judiciário e outros órgãos oficiais, que não se dispõem a combater esses crimes de forma séria (planejada e organizadamente).

Aponta também para alguns aspectos da legislação, tal como a ainda vigente Lei de Segurança Nacional 7170 de 1983 -- versão de uma lei antidemocrática surgida nos anos 1930. Além disso, há um capítulo importante todo voltado para os aparatos e técnicas de vigilância repressivos: câmeras, microfones, escutas, telefones, etc. Outro ponto primordial: a evolução do aparelho repressivo: para além da tortura, a espionagem e os métodos de infiltração, visando desbaratar organizações. Pelo que podemos aprender de Cid Benjamin é que os métodos de repressão são basicamente os mesmos, evoluindo muito nas técnicas e aplicação. Até mesmo a tortura não foi totalmente abandonada. Sobre isso o autor é enfático:

 

"...o Brasil tem uma tradição de tortura de presos que vem da escravidão e continuou depois nas delegacias de polícia." (p.123)

 

Capítulo especial sobre o uso de equipamentos modernos ligados à internet.

Benjamin conclui ao final que este livro não deveria, mas é, muito necessário. Não deveria ser necessário ainda mais num momento de suposta normalidade democrática. Ademais, nada impede que caminhemos para uma fase de ditadura, pois os elementos estão todos aí operando, como o demonstra o governo bolsonaro. Manual de sobrevivência para nossos tempos.

 


Comentário.

Contém uma introdução do ator Wagner Moura, onde faz a seguinte pergunta: "como chegamos a este ponto?" A resposta está aqui neste livro, afirma.

Também há uma introdução de João Batista Damasceno, desembargador do TJ-RJ, que aponta para aspectos jurídicos da questão. Destacamos um importante trecho de sua parte, na definição de Estado policial:

 

"Estado policial não é o Estado no qual a polícia tem o poder. É o Estado em que as agências de diversas naturezas, notadamente as do sistema de Justiça, passam a funcionar com a lógica policialesca. A fraternidade que permearia as relações sociais é relegada, todos são tratados como suspeitos, até prova em contrário, e os padrões civilizatórios que orientam os comportamentos sociais são substituídos pela brutalidade." (p.12)

 

Em tempo: a LSN 7170/83 foi discutida no período de redemocratização, sendo considerado um “lixo autoritário”, a ser removido junto com outros, tal como a Polícia Militar, o caduco Código Penal, etc. O momento da discussão passou e o assunto foi praticamente esquecido.

 

Sumário do livro.

1.Atentados ao longo da história

2.Criminalização do movimento popular e de organizações de esquerda

3.A expansão das milícias

4.As milícias e o poder

5.Algumas medidas de proteção

6.Celulares, computadores, notebooks e tablets

7.Câmeras, microfones e outros mecanismos de vigilância

8.Infiltrações policiais. Mais usadas do que se imagina.

9.Numa ditadura aberta.

10.A evolução da repressão: indo além da tortura.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Magistrados: "Servidores" ou "Funcionários Públicos"? Parte II

Cícero denuncia Catilina - Afresco que representa o senado romano reunido na Cúria- Hostília-Palazzo Madama,Roma


A questão principal que envolve todas as confusões sobre servidores públicos é a seguinte: quem são os servidores? Juiz é servidor ou funcionário público? Ou nada disso... Então o que é?

 

Esta é uma questão que é mais que um detalhe meramente técnico. É devido a essa confusão que muito servidores são diariamente ofendidos, chamados de mentirosos, enxovalhados pela população e principalmente pela mídia. Professores, enfermeiros e auxiliares de enfermagem, técnicos judiciários e outros −̶  todos que estão na linha de frente prestando serviços diretos ou indiretos à comunidade são “vítimas” dessa guerra de contrainformação, obrigados a ouvir disparates os mais diversos, não só em seus postos de serviço, mas até na família. Outra parte da população imagina que “funcionário público” diz respeito aos políticos e às altas esferas governamentais. Impera uma confusão que não é casual.

 

E por quê? Vejamos.

 

Férias de sessenta dias, auxílio moradia, gordas aposentadorias, jornada de trabalho semanal de três dias, entre outras "regalias" são atribuídas aos servidores, ou melhor, no entendimento do senso comum aos "funcionários públicos".  Mas o que se entende por funcionário público no imaginário popular? Essa é mais uma questão.

 

Tentei demonstrar em meu artigo anterior que esse termo "funcionário público" é vazio, destituído de significado na lei, a não ser na seção criminal; enfim, um termo equivocado e anacrônico, mas que serve para a mídia e os inimigos dos serviços públicos colocarem num mesmo conjunto todos os que trabalham para e recebem do governo. Em outras palavras, entram "todos no mesmo saco": juízes, promotores, agentes de trânsito, professores... Essa desorientação toda faz parte de um jogo de linguagem onde o que se quer na prática como resultado é legitimar o discurso da redução (senão o fim) dos serviços públicos.

 

 

Recordando: não existe o termo "funcionário público" na Lei 8.112/90, a lei que disciplina todos os servidores públicos. Juiz e promotor estão contemplados nesta lei? Não. Os magistrados (juízes e desembargadores) bem como promotores e procuradores estão considerados nas chamadas Leis Orgânicas. As Leis orgânicas tratam estas figuras como "membros". Portanto, juízes são membros do Poder Judiciário e promotores são membros do Ministério Público.

 

Primeira pergunta respondida: juiz não é servidor, nem funcionário público. Juiz, bem como promotor e assemelhados são “membros”, assim como os ministros do STF são membros −̶   são o próprio corpo da instituição.

 

O termo “membro” não é fortuito: membro, de fato, é uma parte do corpo. Está se tratando aqui de alguém que não é funcionário do Poder, mas o próprio poder. Consequentemente muito menos é servidor.

 

É intuitivo imaginar que estes membros exerçam poder de autoridade [1]. Mas de que tipo? Não há legislação específica, a não ser dada pela processual penal e pelas várias jurisprudências, sobre o conceito de autoridade [2]. E não há que se considerar simplesmente como o poder atribuído a alguém para o exercício de uma função, pois qualquer servidor exerce uma. A Constituição menciona inúmeras vezes o termo, sem defini-lo. Façamos então um exercício de sociologia jurídica e digamos então que a autoridade política é exercida por ocupantes de cargo de poder político e autoridade policial é exercida por delegados e agentes policiais [3].

 

Mas para ser bem simples, claro e didático: autoridade é a que manda; e obedece quem tem juízo, isto é, o servidor comum.

 

Os membros, portanto sendo membros de poderes, possuem poder o suficiente para garantir suas "prerrogativas", todas previstas em lei. Nada é feito contra legem (contrário à lei). Está tudo na lei. Não se trata de desvios, mas de uma aberração que é decorrência do poder que é atribuído e exercido por estas pessoas. Do ponto de vista jurídico não são “regalias”: são prerrogativas!

 

No entanto, as tais "regalias", tão propaladas pela imprensa e que são atribuídas a todos os servidores não existem. Ou melhor, elas existem para os membros. E como dissemos, todas previstas na legislação. Mas a grande imprensa, bem como a mídia em geral, quer sempre confundir uma coisa com a outra. Por quê?

 

Ora, resumindamente antecipo o porque:

-Fica mais fácil atacar os serviços públicos e dizer que "tudo é uma enorme gastança”;

-A exigência sobre os serviços públicos aumenta em contraste com “gastança” dos “funcionários públicos”, que são confundidos com “gente do governo”;

-O servidor público que está de verdade na linha de frente face ao público vira um alvo fácil de ressentimentos e propaganda negativa, de desprestígio;

 

Segunda questão respondida. Servidores são desprestigiados diariamente pela imprensa “tradicional” porque são identificados com a figura construída do “funcionário público” ineficiente, gastador, indolente, “marajá”.  

 

Na vida real, em termos práticos, é o servidor público (não os membros) que se constitui verdadeiramente como "funcionário público", funcionário de verdade, que trabalha por salário — seus recebimentos fazem parte do gasto direto com pessoal, gastos com a “administração”. Os membros, como são membros de poderes, são parte da estrutura do Estado −̶   por isso eles recebem “proventos” e não salário (ou remuneração, nos termos linguagem própria). A estrutura do Estado é a sua constituição — não são os imóveis, nem os móveis  — mas sua organização política −̶   organização na qual se constitui com e entre os membros de poderes. Última questão respondida.

 

Reforma Administrativa

Vamos ver os ataques diretos, materiais, aos direitos dos servidores. Vamos analisar “Reforma Administrativa” que se pretende aprovada pelo Parlamento.

 

A PEC 32/2020, num de seus dispositivos, exclui os membros de poderes da tal Reforma. Isso quer dizer que juízes, promotores e assemelhados não serão contemplados na mudança da lei. Em outras palavras, escapam da Reforma e continuarão com os mesmos "privilégios" de sempre — incluindo seus altos salários, diárias e demais benefícios, que verdadeiramente pesam no orçamento do Estado. Este é o preço de se manter a estrutura estatal funcionando. Não tem a ver com serviços, embora se considerem −̶   do ponto de vista desses agentes −̶   como fornecedores de um "elevado e relevante serviço à sociedade". Mas repito: é ao Estado que prestam esse serviço — que é mais um compromisso político com a organização estatal que um serviço público, necessariamente. Não se trata de um serviço público prestado diretamente à população, em seu benefício. No exercício do poder estatal, pelo contrário, agem contra a população −̶  o Direito brasileiro em sua efetiva positividade é patrimonialista, negador de direitos.  Como estes poderes integram a organização constitucional não poderiam estar incluídos na Reforma, pois isso exigiria uma emenda constitucional muito mais difícil de ser aprovada −̶  já com relação aos servidores, a mudança fica mais fácil, dada a desmobilização neste setor.

 

A CF de 1988 prevê autonomia administrativa e financeira dos órgãos judiciários e Ministério Público (Art. 99), sendo que seu orçamento, de acordo com essa previsão, deve ser elaborado pelos próprios tribunais — a ser aprovado no âmbito da lei de diretrizes orçamentárias. O que devemos atentar é para o detalhe de que este orçamento é para despesas primárias, isto é, obrigatórias. Despesas com pessoal são obrigatórias. Nelas também são incluídas as diárias dos membros, uma espécie de remuneração para quando acumulam funções, para quando se deslocam de sua sede ou para plantões; essa remuneração é que permite dobrar os proventos, atingindo o teto constitucional. Até 2019 era possível haver repasses do orçamento aos tribunais para "cobrir o rombo" com as despesas. Este ano temos o "teto de gastos", que não sabemos como irá impactar essas despesas, mas até o momento os pedidos de aporte extra estão ainda previstos.

 

Enfim, por quê é importante ressaltar todas estas diferenças? Primeiro porque o gasto com os membros (agentes políticos) é realmente muito alto. O pagamento com diárias, deslocamentos, automóveis, cerimoniais, verbas de representação, além de outros gastos administrativos que poderiam ser racionalizados, é alto. Por exemplo, dificilmente um desembargador ou procurador de justiça abre mão do "veículo de representação"; os gastos com a segurança dos membros evidenciam também serem elevados. Todo esse gasto geral impacta o orçamento, de fato. Mas a pressão para diminuir as despesas recai sobre quem e sobre o que? Justamente sobre aqueles que não têm poder, os que trabalham diretamente com a população, os que não recebem auxílio-moradia e muitas vezes nem o auxílio-creche: os servidores públicos de verdade e sobre os respectivos serviços públicos prestados diretamente à população. Então o cenário que temos é o uma pressão enorme, sempre, para reduzir o número de servidores, seus salários e benefícios. Por outro lado, pelo lado dos agentes políticos, a pressão torna-se apenas simbólica: são imaginados pela população como sendo servidores ou “funcionários públicos” — mas não são, pelo que demonstramos. A redução de despesa termina sempre incidindo sobre a quantidade e qualidade dos serviços públicos prestados e não sobre estrutura político-estatal. Isso leva a um círculo vicioso onde os serviços públicos são cada vez mais precarizados em nome do ajuste fiscal e da moralidade, provocando descontentamento popular e gerando uma percepção cada vez mais negativa da oferta deles.

 

Se não houver esclarecimento e educação sobre o funcionamento da administração pública e o da estrutura político-estatal, esse debate sobre a moralidade do "gasto público" jamais terá fim — a confusão reinará sempre contra a população −̶  a mais carente, obviamente, que depende do serviço público como parte integrante de seus rendimentos.

 

NOTAS

[1] O termo “autoridade” vem do latim auctoritas, que na Roma antiga designava o poder que transcende (o próprio poder terreno, subjugando-o); o poder de auctoritas era arrogado por quem direito previsto na lei; na era imperial é transferido vitaliciamente para a figura do Imperador, que agora legalmente detém todos os poderes −̶   imperium. Se levarmos a sério a origem e a permanência do significado, podemos deduzir que a autoridade política detém um certo poder de imperium, que transcende de algum modo as funções públicas que exerce. Segundo o filósofo Giorgio Agambem, o poder de auctoritas, resumidamente falando, era detido no Senado e invocado para suspender o Direito. Auctor é aquele que aumenta, aperfeiçoa, acresce ao ato e era exercido pelo pater −̶   aquele que autoriza. Quer dizer, o poder de auctoritas está para além da magistratura.

Fontes:

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004 (2003). Coleção Estado de sítio.

ALLAND, Denis; RIALS, Stéphane. Dicionário de Cultura Jurídica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. p.127

 

[2]https://jus.com.br/artigos/47144/o-conceito-de-autoridade-policial-na-legislacao-brasileira#:~:text=Na%20legisla%C3%A7%C3%A3o%20processual%20comum%2C%20ali%C3%A1s,%C3%A9%20o%20Juiz%20de%20Direito

 

[3]Mais uma vez citamos aqui o ilustre jurista Hely Lopes Meirelles, acerca da distinção entre poderes administrativos e poderes políticos:

“Para bem atender ao interesse público, a Administração é dotada de poderes administrativos −̶   distintos dos poderes políticos −̶   consentâneos e proporcionais aos encargos que lhe são atribuídos. Tais poderes são verdadeiros instrumentos de trabalho, adequados à realização de tarefas administrativas. Daí o serem considerados poderes instrumentais, diversamente dos poderes políticos, que são estruturais e orgânicos, porque compõem a estrutura do Estado e integram a organização constitucional.” (MEIRELLES, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2002, p.112)