SARTRE, Jean-Paul. A Náusea. RJ, Nova
Fronteira, 2011 (1938, 1943)
Li este já faz um tempo. Resolvi compartilhar com vocês minhas impressões, livres, além de uma análise sobre a filosofia existencialista à época proposta por Sartre.
Trata-se do primeiro
livro (romance) editado de Sartre. O primeiro livro escrito, "A lenda da verdade" (1928), foi recusado
pelos editores. Então deu início em 1933 ao romance "A Melancolia", que na verdade seria o intitulado
"A Náusea", que foi publicada dois anos antes de "A Imaginação" (1940); portanto, já é
resultado de uma filosofia pronta. Sartre fazia questão de transpor sua
filosofia para a literatura, possivelmente como um forma de obter facticidade e
imprimir verossimilhança às suas teses. "O
Ser e o nada", publicado em 1943, teria sido iniciado em 1939;
portanto, um ano depois de "A Náusea", sendo esta obra muito
representativa dessa primeira fase do existencialismo. Recomendo que todos
leiam, se quiserem ter algum contato com a obra filosófica de Sartre.
Personagens:
Antoine Roquentin é o protagonista; é
historiador e está fazendo a biografia do marquês de Rollebon; trabalha
atualmente numa biblioteca, onde faz suas pesquisas. Pensa em transformar o
trabalho em literatura, ao invés de biografia, já que encontra algumas
dificuldades no sentido de obter certezas a respeito da conduta (como agente
histórico) do marquês, pois não há firmeza, consistência, nos testemunhos.
Logo de início, o
estranhamento: Roquentin esforça-se para "reencontrar
a impressão de anteontem" (p.13). Esse estranhamento já é o objeto
da náusea: sensação de que a própria identidade já não é a mesma. Em outra
palavras: mudaram as coisas ou mudou eu? Busca uma resposta, que depois será
abandonada, a fim de manter a identidade do eu:
"...todas essas mudanças dizem
respeito aos objetos. Pelo menos é disso que gostaria de ter certeza."
(p.14). Ao mesmo tempo, sente extrema solidão.
Anny . Ex-noiva de Roquentin. Não a vê faz seis
anos. Quando a encontra, quase não reconhece. Busca os traços perdidos. Em vão.
Roquentin tem a impressão que ela porta uma máscara. Parece que vai desistindo
dela, mas tem medo da solidão. Tenta algum reatamento, mas Anny tem outros
interesses e outro amante agora. O passado ficou, como uma sombra, e não há
meios de reavivá-lo.
"Ficamos um momento em silêncio. Cai a noite;
mal distingo a mancha pálida de seu rosto. Sua roupa preta se confunde com a
sombra que invade o quarto. Pego maquinalmente minha xícara na qual restou
ainda um pouco de chá e levo-a aos lábios." (p.202).
O Autodidata (Ogier P.). Frequentador da
biblioteca, que eventualmente o ajuda e com quem raramente conversa. Gosta de ler a
enciclopédia, na sequência, e atualmente está na letra "L". Admira e
inveja as viagens que Roquentin faz e pensa um dia em empreendê-las, a fim de
buscar aventuras. Roquentin tenta se lembrar de alguma aventura em suas
viagens, mas não consegue. Tenta identificar um incidente que teve com algo de
aventura, mas é forçoso.
Françoise, a "Patroa"
do Rendez-vous des Cheminots, uma espécie de bar. Roquentin paga as suas
despesas com amor au pair (como troca).
Mas quase não conversa com ela também, só amenidades, assim como com o
Autodidata. Segundo Roquentin, ela serve para "purgar" seus desejos
(e melancolias derivadas deles).
O "Corso". Funcionário da biblioteca
que recebe as aquisições.
A
existência.
A Náusea vai se
apresentando a Roquentin como um estranhamento do ser. A partir de determinado
momento começa a ter certeza de que não foram as coisas que mudaram, mas ele
próprio. Não se reconhece nem mais em seus escritos recentes sobre a biografia
que está redigindo. É a prova de que
mudou. Mas essa constatação só pode ser verificada após uma outra: a da
contingência das coisas, a simples existência, sem precisar de serem
explicadas.
"Agora eu sabia: as coisas são inteiramente o
que parecem - e por
trás delas... não existe nada!"
(p.131)
Eu sugiro que esta
passagem seja essencial para compreender a filosofia existencial de Sartre. O
absurdo dessa constatação vai se apresentando a Roquentin ao longo de seus
passeios e devaneios por Bouville, cidade onde está instalado a fim de proceder
à pesquisa sobre o marquês; isso se dá por uma "infinidade de pequenas
metamorfoses", como o próprio protagonista afirma, mas há um acontecimento
que se impõe como uma epifania e que "ilumina" tudo. Trata-se das
reflexões após a visita a um museu da cidade, feito um dia antes e anotado no
diário (v. p.113-129). Roquentin se dá conta das coisas mortas do museu, que ao
fim não diferem das coisas que o rodeiam e estão presentes:
"Lancei um olhar ansioso ao meu redor: só o
presente, nada além do presente. Móveis leves e sólidos, incrustados em seu
presente, uma mesa, uma cama, um armário de espelho - e eu próprio. Revelava-se
a verdadeira natureza do presente: era o que existe e tudo que não era
presente não existia. O passado não
existia. De modo algum. Nem nas coisas, nem mesmo em meu pensamento. Por certo
fazia muito tempo que eu compreendera que o meu [passado] me escapara."
(p.131)
Também há uma
constatação de que ele mesmo está vivo, mais vivo que as pessoas com quem tem
contato e que não diferem muito do marquês de Rollebon, que é uma promessa de
existência em biografia. Promessa de existência, pois este - com a desistência
de Roquentin escrever a biografia - retorna ao seu nada. Agora "...já não era senão uma imagem em mim, uma
ficção." (p.133).
Como não se
confundir com a existência de pedra das coisas e das pessoas? Sartre, ou
melhor, Roquentin remete a Descartes, mas aqui o cogito
sofre um leve deslocamento: não se trata simplesmente de penso, logo existo, mas de: existo, logo penso, e se penso não
posso duvidar que existo. É a condição de estar vivo, sentir e pensar sobre a
existência própria, que muda, se transforma, se transfigura.
"Estava com Náusea? Não, não era isso, o quarto
estava com sua aparência protetora de todos os dias..." (p.131);
"O sr. de Rollebon era meu sócio: precisava de
mim para ser, e eu precisava dele para não sentir meu ser."
(p.133);
"A coisa, que estava à espera, alertou-se,
precipitou-se sobre mim, penetra em mim, estou pleno dela - Não é nada, a Coisa
sou eu. A existência, liberada, desprendida, reflui sobre mim. Existo."
(p.134).
"Sou, existo, penso, logo sou: sou porque penso,
por que penso? (...)" (p.137)
Morre o marquês de
Rollebon para reavivar Roquentin.
O
absurdo e o absoluto. O contingente.
O absurdo se mostra
na falta de explicação da existência - que provém não exatamente de uma recusa
de uma explicação, mas de uma inexplicabilidade da razão de existir. E daí,
sim, a recusa a uma explicação das coisas pela simples causalidade. Esse é o principal
ponto de crítica de Sartre à metafísica e podemos depreendê-la pela conversa
final, no restaurante, com o Autodidata, que acredita na necessidade de
causalidade. Para este, se não houver causalidade não há finalidade de existir
(p.151-2).
"- É porque estou pensando - digo rindo - que
aqui estamos, todos nós, comendo e bebendo, para conservar nossa preciosa
existência, e que não há nada, nada, nenhuma razão para existir."
(Roquentin, p. 151)
"Há uma finalidade, senhor, há uma
finalidade...há os homens." (o Autodidata, p. 152).
O Autodidata possui
um humanismo voluntário, ingênuo e bárbaro, na acepção de Roquentin. Seu
humanismo ajuda a escapar do dilema da solidão, a cuja resposta será dada por
Roquentin com a liberdade. A opção pela liberdade, de ser livre, de fazer sua
própria escolha. Por isso, mais tarde, desiste de tudo e parte para Paris.
A Náusea é fruto da
ofuscante evidência da existência - de si e do mundo (p.164). A Náusea,
portanto, é sensação da própria existência penetrando por todos os poros.
Observe-se a inversão, sutil e metafórica, que isso faz com o termo grego aporia - por onde a verdade teria que
extravasar - pela contradição - sair pelo poros; em Sartre a verdade entra por
eles. Não há contradição, há a Náusea, a sensação de estar no mundo. A aporia
(no sentido filosófico) em Sartre se resolve pela aceitação, pela epifania do
contingente, por tudo aquilo que está à nossa volta.
"...em geral a existência se esconde. Está aqui,
à nossa volta, em nós, ela somos nós, não podemos
dizer duas palavras sem mencioná-la, e afinal não a tocamos (...) Se me
tivessem perguntado o que era a existência, teria respondido de boa-fé que não
era nada, apenas uma forma vazia que vinha se juntar às coisas exteriormente,
sem modificar em nada sua natureza. E
depois foi isto: de repente, ali estava, claro como o dia: a existência
subitamente se revelara. Perdera seu aspecto inofensivo de categoria abstrata:
era a própria massa das coisas..." (p.170).
O
"Absurdo", o inexplicável, é a chave da Existência. Pois no fim das
contas, não há absurdo - o absurdo é deontológico - existe apenas com relação à
situação em que se encontra.
"Um círculo não é um absurdo, é perfeitamente
explicável pela rotação de um segmento de reta em torno de uma de suas
extremidades. Mas também um círculo não existe. A raiz [da árvore que Roquentin
observava], ao contrário, existia na medida em que eu não podia
explicá-la." (p.173).
Enfim, a existência
dispensa explicação. Esse seria o absurdo, mas não o é. É o absoluto. O próprio
Roquentin nos explica:
"Esse momento foi extraordinário. Eu estava ali,
imóvel e gelado, mergulhado num êxtase horrível. Mas, no próprio âmago desse
êxtase, algo de novo acabava de surgir; eu compreendia a Náusea, possuía-a. A
bem dizer, não me formulava minhas descobertas. Mas creio que agora me seria
fácil colocá-las em palavras. O essencial é a contingência. O que quero dizer é
que, por definição, a existência não é a necessidade. Existir é simplesmente estar aqui; os entes aparecem, deixem que os encontremos, mas
nunca poderíamos deduzi-los. (...) nenhum ser necessário pode explicar a
existência: a contingência não é uma ilusão, uma aparência que se pode
dissipar; é o absoluto, por conseguinte a gratuidade perfeita. Tudo é gratuito:
esse jardim, essa cidade e eu próprio. Quando ocorre que nos apercebamos disso,
sentimos o estômago embrulhado...é isso a Náusea" (p.175).
"A existência não é algo que se deixe conceber
de longe: tem que nos invadir bruscamente, tem que se deter sobre nós, pesar
intensamente sobre nosso coração como um grande animal imóvel - do contrário
não há absolutamente nada mais. " (p.176).
Sartre prossegue,
dizendo que tudo é coisa. Inclusive o movimento, que é uma ilusão. Nas suas
próprias palavras:
"Dizia a mim mesmo, acompanhando o balanço dos galhos:
os movimentos nunca existem inteiramente, são passagens, intermediações entre
duas existências, tempos fracos.
(...)
Essa ideia de passagem era também uma invenção dos
homens. Uma ideia muito clara. Todas aquelas pequenas agitações se isolavam, se
afirmavam por si mesmas. Excediam por todos os lados os galhos e ramos. (...) É
claro que um movimento era algo diferente de uma árvore. Mas ainda assim era um
absoluto. Uma coisa. (...) A existência não tem memória." (p.177)
Mas não termina aí.
Ainda vem o golpe final, e as palavras de Roquentin são muito claras:
"Todo ente nasce sem razão, se prolonga por
fraqueza e morre por acaso. Inclinei-me para trás e fechei as pálpebras. Mas as
imagens, imediatamente alertadas, de um salto vieram encher de existências meus
olhos fechados: a existência é uma plenitude que o homem não pode
abandonar." (p. 178).
No entanto, em meio
a esse nada, algo pode ser afirmado. Roquentin decide partir para Paris e
escrever um livro. Esse é o momento de iluminação do ser. Foi feita uma
escolha, escreveria um livro, um romance, e talvez por meio dele pudesse evocar
sua vida sem repugnância (última página).
Comentário.
Se formos um pouco
severos com Sartre, talvez possamos sentir Náusea quanto à sua filosofia.
Observe-se:
- Tudo é coisa;
- Tudo é
contingência - não há causalidade;
- Não há razão para
a existência;
-Não há movimento,
apenas a aparência de movimento que ao fim é existência;
- Presentismo - a
existência não tem memória.
As próprias pessoas,
no romance, assemelham-se a coisas, pois não se dão conta de sua própria
existência - existências que poderiam ter vida própria e não em razão ou função
de algo ou alguma coisa.
Estamos beirando o
solipsismo, senão já dentro dele. Eu existo e o resto é coisa e contingência.
Ora, há muita gente que vive assim por puro egoísmo e não por reflexão oriunda
de uma filosofia. Evidentemente que Sartre não está pregando o modo egoísta de
ser, mas trata-se sim de um tremendo ataque a qualquer pensamento metafísico.
Se pensarmos assim, fica um pouco esclarecido o assunto. E a questão do
movimento? Sartre nega o movimento como um todo? Soa até como um sofisma quando afirma que o movimento nada mais é que várias
existências até a decadência. Se pensarmos em termos de pura matéria talvez
seja admissível. E para o homem? Para o homem há a escolha, a deliberação, a
decisão. Isso, apenas isso rompe com a simples existência. A iluminação, para
Sartre, está um pouco nesse resgate do cogito
- mas um cogito que primeiro constata e
depois afirma a existência para consubstanciá-la no ser. Consubstanciação e não
transubstanciação. Transcendência para Sartre é sair do lugar, sair do mesmo,
sair da condição, dirigir-se para a sua liberdade.
Sartre foi acusado
de anti-humanista com este romance. Não é para menos, pois a discussão de
Roquentin com o Autodidata deixa isso no ar. Sua resposta veio como o ensaio
"O Existencialismo é um humanismo", que em resumo afirma que o ato
individual engaja toda a humanidade.
É possível fazer um
entendimento amplo da filosofia dessa sua primeira fase (pois sofreria uma
modificação) no seguinte: é possível que tudo seja contingente mesmo, inclusive
com relação às pessoas, mas circunstancialmente. O mundo, muitas vezes, apresenta-se desse
modo. Quantas vezes você não se sentiu assim quando, por exemplo, um direito
lhe foi negado por simples detalhe burocrático? Para Sartre há uma saída:
reconhecimento de sua angustiante condição no mundo e iniciativa para sair
dela. Desse ponto de vista ninguém pode negar o aspecto de movimento na sua
filosofia.
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