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quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

As cidades invisíveis. Italo Calvino.

 

CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo, Companhia das Letras, 1990 (1972). == RESENHA CRÍTICA ==












I

Marco Polo, por meio de missões diplomáticas, oferece suas descrições das cidades do Império Mongol para o grande Kublay Khan, que quer ter uma ideia da grandeza e extensão da obra imperial. As cidades, uma vez conquistadas, são mantidas no plano ideal e administrativo do império. Por isso são "invisíveis", isto é, atualizadas por sua descrição narrativa. O segredo de Marco Polo para manter sua audiência imperial atenta é justamente a composição narrativa das cidades, ou seja, o modo de contar especial do narrador. E é pela descrição narrativa que este livro também consegue manter atento (e muito) o leitor. Qualquer leitor, acredito.

Todas as cidades podem ter algo em comum, mas certamente todas elas possuem algo que lhe é específico, peculiar, podendo dessa maneira organizar as vidas de seus moradores e dirigir sua evolução. É o que alguns arquitetos e filósofos diriam da "vida própria" de uma cidade, soma de todas as interações de sua população. Ao que me parece, é justamente aquilo que Marco Polo descreve ao grande Khan, mas de uma forma bem incomum. 

Walter Benjamin afirma em um de seus textos que a arte de narrar estava em vias de extinção. Ao menos no tempo em que escreveu O Narrador. Era o tempo do pós Primeira Guerra, a Grande Guerra, como se costumava dizer. Assim, "...os combatentes voltavam mudos do campo de batalha..." [1], isto é, pobres em narrativa devido ao drama, ao sofrimento, à dor que não queriam reviver, não queriam contar. Uma experiência dessa exige distanciamento para ser narrada, seja no tempo e no espaço. Mas uma vez contada, não será heroica, será trágica, pois:

"...nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência ética dos governantes." [2]

Então trata-se de uma interrupção da arte de narrar que passa de pessoa a pessoa, de geração a geração.

O que Italo Calvino nos apresenta é o contrário disso. É arte de narrar, de contar uma história, no seu mais absoluto estado. 


II

A obra é riquíssima em linguagem simbólica. Presta-se a muitas áreas, mas em especial pode ser a da arquitetura. Abaixo um link para uma resenha muito interessante extraída de uma revista on line. E possui um gráfico muito interessante das cidades:

https://vitruvius.com.br/index.php/revistas/read/resenhasonline/08.085/3050


III

Mais uma de arquitetura:

https://revistacult.uol.com.br/home/peruana-quer-ilustrar-cidades-invisiveis-de-calvino/




[1] BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I. Trad. Sérgio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p.197

[2] idem, p.198.



segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Cidade de São Paulo. Sem muito o que comemorar em 2021.

 

Escher - Côncavo e convexo - 1955 – Litografia - Escher Collection, Gemeentemuseum Den Haag, The Hague, the Netherlands © The M. C. Escher Company, the Netherlands. All rights reserved.


"São Paulo, aberta 24 horas." Não mais. Ao menos não para todo mundo, pois lugares seguros depois das vinte horas são caros e o transporte por sua vez já faz algum tempo que não funciona mais após a meia-noite. Os shoppings fecham às vinte duas. É interessante como ainda sobra festa na cidade, em lugares fechados, "baladas". É essa a cidade cosmopolita, que engoliu o espaço público?

 

"São Paulo, onde você encontra de tudo para comer e onde há cozinha do mundo inteiro." Não mais. Pelos mesmos motivos acima. Além disso, a maior parte das refeições agora é via fast food ou algum restaurante desse tipo disfarçado, como alguns mexicanos ou indianos por aí. Existe um turismo gastronômico em São Paulo para todo tipo de bolso. Achar que vai comer uma comida típica é outra coisa. No mesmo raciocínio podemos incluir as comidas regionais. Nestas ainda é possível, devido à permanência de pequenas tradições, encontrar algo de original. Mas está cada vez mais difícil. Os chefs de cuisine já dominaram o pedaço com suas cozinhas gourmets.

E o que encontrar em São Paulo, facilmente? Prédios de apartamentos. Modelo de cidade que foi se construindo ao prazer (e regalo) de empreiteiros e agentes ligados ao capital imobiliário, não seria para menos. Políticos incluídos, claro. O resultado...? Vejamos.

 

-Rios de São Paulo. Todos cobertos ou canalizados. Nenhuma novidade. Já nos acostumamos às enchentes, que já diminuíram sim, com... mais obras! (leia-se: enormes buracos de concreto para escoamento das águas);

-Trânsito. Cada vez mais infernal. Todos reclamam. Ninguém quer deixar o carro em casa, com razão, pois o transporte público... bem, sabemos. E é caro, pois é preciso subsidiar a "eficiência" da iniciativa privada;

-Árvores. Cada vez menos árvores. E cada vez mais espanadores de pó (palmeiras). É um dos fatores que torna o clima de São Paulo insuportável no verão e cruel no inverno;

-Barulho. Muito barulho. E existe até competição de quem faz mais barulho −̶   seja com música desambiente ou com som de carro. Nem estou me referindo aos "pancadões", alvo preferido das reclamações em jornais; buzinas, alarmes, TVs de 12 milhões de pessoas, tudo isso junto formam um enorme ruído de fundo altamente contrastável com o silêncio de quando vamos para o interior, por exemplo;

-Poluição. A eterna poluição. Qual será a cor de nossos pulmões neste momento?;

-Sujeira. São Paulo está se especializando nisso, a despeito das empresas de limpeza terceirizadas, muito eficientes; a sujeira dos pombos está cada vez mais difícil de limpar, até mesmo no Metrô. Ou São Paulo acaba com os pombos ou os pombos acabam com São Paulo;

-Muros. Grades. Portões de ferro. Deixam a cidade maravilhosamente embelezada, não? Mas há um escape: o grafite. Isso quando não chega algum prefeito e manda pintar tudo de cinza; há quem goste da arquitetura paulistana, que deita o passado ao chão todos os dias;

-Segurança. Não sei de quem tenho mais medo.

 

Esse é o conjunto de coisas que nos incitam à intolerância e à falta de civilidade entre nós, pois não há como existir qualquer coisa assim num ambiente tão hostil e inóspito. Mas há quem ponha a culpa no caráter do brasileiro, que, segundo esse tipo de avaliação, "não se adapta à vida da sociedade democrática" ou qualquer outra bobagem liberal do gênero.

 

Alguma coisa de boa? Lógico que a oportunidade de emprego e de moradia são elementos fundamentais numa cidade. Isso São Paulo já fez melhor −̶   mas ainda é a esperança de milhares de famílias. Estas merecem a verdadeira homenagem, pois são elas que mantêm a cidade ainda viva, fazendo circular algum sangue no corpo degradado de concreto vertical.

Parabéns povo de São Paulo. Aquele que trabalha mesmo. E só.

 

 

 

"De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas."

Italo Calvino, Cidades Invisíveis, III

domingo, 17 de janeiro de 2021

Machismo e misoginia no Xadrez. O lugar da mulher.

LEYDEN, Lucas van - The Game of Chess, c. 1508
Oil on oak, 27 x 35 cm - Staatliche Museen, Berlin
Retirado de: <https://www.wga.hu/cgi-bin/search.cgi?author=van+Leyden&time=any&school=any&form=any&type=any&title=&comment=&location=&from=40&max=20&format=1> 


Sim, existem jogadoras de xadrez mulheres... Talvez isso não se constitua uma novidade aos apreciadores do jogo, mas certamente é uma aos não iniciados. Se bem que com a série Netflix Gambito da Rainha o negócio tenha mudado. Mas para a maior parte do público que não acompanha o esporte (sim, xadrez é um esporte) essa é uma notícia como outra qualquer.

Judit Polgár, húngara de origem, iniciou-se desde muito cedo na atividade, estimulada por seu pai, que acreditava que entre homens e mulheres não havia diferença intelectual e de habilidades que justificassem superioridade de um sobre o outro. De fato, nada a impediu de tornar-se GM (Grande Mestre) no xadrez −̶   aos 15 anos de idade [1].

A interessante série da Netflix apresenta, em alguns momentos (senão quase todos), o preconceito masculino no meio enxadrístico. Mas a série é otimista, ao final, ao apresentar os adversários como pessoas resignadas ao gênio feminino.

Na vida real nem sempre ocorre assim. É o caso que agora se tornou clássico de preconceito machista para com a jogadora Anna Rudolf, também húngara, ocorrido em 2008. Vencia uma série de jogos num torneio da França naquele ano, inclusive contra um GM francês, Christian Bauer, quando a certa altura foi acusada por outros competidores de jogar com a ajuda de um ENGINE (máquina −̶   um computador, um software, resumindo...). Como? Segundo seus adversários, todos letões (o francês mesmo não a acusou) ela fazia uso do software por meio de um lipstick (batom) que permanecia em sua mesa enquanto jogava [2]. Isso mesmo, segundo os jogadores da gloriosa Letônia, Anna Rudolf teria recebido sinais de seu lipstick, que indicava a melhor jogada a seguir. Como ela teria interpretado esses sinais é que seria um grande mistério, se tudo isso não passasse de uma grande bobagem de homens ressentidos de suas próprias deficiências. Certo é que Anna não está entre os jogadores(as) de maior rating, mas as partidas não dependem apenas do rating do jogador. Depende de muitas variáveis, não só preparo. Jogadores de xadrez são conhecidos e reconhecidos pelo espírito desportivo que demonstram nas competições. No entanto, nesta em especial muitos não quiseram cumprimentar a adversária −̶   como vimos sempre na série, após o final das partidas, estendendo a mão ao cumprimento. A propósito, a série em tela parece até ter se inspirado em Anna Rudolf. Confiram. 

Nada foi provado contra Anna Rudolf, mas permaneceu um pouco o trauma. A jogadora é conhecida pela sua vaidade feminina. Quando um poder desse invade uma seara masculina os egos ficam ofendidos. Arranja-se sempre uma desculpa ou um modo de desqualificar o outro lado. Para mim o que fica é um exemplo vergonhoso da condição do macho, tão vergonhoso quanto frágil e ridícula foi a acusação contra Anna Rudolf, inteligente, charmosamente vaidosa e... mulher.

 

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Judit_Polg%C3%A1r - acesso em 17/01/2021

[2] https://www.nytimes.com/2008/01/13/crosswords/chess/13chess.html acesso em 17/01/2021. Mais detalhes sobre o fato numa entrevista dela com Judit Polgár, em: https://www.theatlantic.com/family/archive/2019/09/female-chess-masters-talk-sexism-and-friendship/598003/

Para os aficcionados a partida contra Bauer pode ser vista em: https://www.youtube.com/watch?v=eye_RvGGW-Y