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domingo, 30 de dezembro de 2012

Paradigmas: Futebol & Xadrez




Acabei de rever o jogo da final da Copa do Mundo de 58: Brasil 5 x 2 Suécia. Bem disputado, com os times ocupando todo o espaço do campo, alta velocidade. O Brasil se destacou nesta Copa pela sua defesa, pois no ataque quem mandava era a França, com Just Fontaine à frente, fazendo inúmeros e belos gols.

O Brasil já tinha aquele toque de bola maravilhoso, mas que ainda se revelaria mais afinado nas Copas seguintes. No entanto, pode-se dizer que nesta Copa de 58 o Brasil teve seu melhor: organização tática impecável, excelente defesa e meio campo bem entrosado com o ataque, além do alto nível técnico de todos os jogadores.

Quem assistir aos jogos desta Copa, como por exemplo os da França e da Alemanha, perceberá também o alto nível que o futebol apresentava como um todo. E tratava-se já de uma época de muita dificuldade para a prática, com os espaços no campo totalmente preenchidos e alta velocidade, possibilitando incríveis contra-ataques, como hoje.  Vendo estes jogos, com a imagens de época,  podemos ter a ilusão de alguma relativa facilidade para jogar. Ilusão, repito, pois as dimensões do campo não mudaram em nada, bem como as regras que quase não mudaram e a bola, que apenas melhorou em termos qualitativos. Podemos comparar quaisquer destes jogos com os atuais e observaremos que, guardadas as devidas proporções, as dificuldades são as mesmas.
Não estou dizendo que o futebol piorou ou melhorou. Isso depende do momento. Há épocas muito boas tecnicamente e outras sofríveis, sem criatividade, sem nenhuma empolgação no meio jogo, esperando-se apenas que o placar seja favorável no final.

O bom futebol hoje está na Europa. Pelo menos há uma década, alguns clubes reinventaram formas de jogar, abandonando antigos modelos de marcação - retranca, para ser claro. Um destes times é o Barcelona, claro. Resultado de décadas de investimento de jogadores na base, o time é fruto de diversas filosofias futebolísticas, sendo uma delas a holandesa.  Brasil? Sim, mas uma inspiração mais distante, na qual o toque de bola e jogadas  ensaiadas estão presentes. Futebol ofensivo, baseado no 4-3-3, é tônica que põe fim a um longo período de retrancados times vencedores.

Ocorre que futebol, bem como o xadrez, evolui segundo paradigmas. Sendo um pouco grosseiro, podemos simplificar assim: paradigmas baseados em defesa e paradigmas de ataque. No xadrez, após um longo período em que Karpov reinou absoluto, pensava-se que o estilo agressivo, baseado no ataque à moda Bob Fisher, tinha encontrado seu fim. Restava apenas calcular uma boa tática, selecionando pontos onde se acentuavam as defesas. Na verdade os enxadristas estão voltados para este paradigma. Não era o jogo, em si, que havia mostrado todas as suas possibilidades de cálculo, mas os jogadores que assim se empenhavam segundo um paradigma que para todos parecia ser verdade. 
O futebol pós 82, ano da grande derrota da seleção brasileira na Copa, também  ofereceu seu paradigma: mudou-se a mentalidade ofensiva e os times, com raras exceções, tornaram-se cada vez mais especialistas em defesas e retrancas. O gol tornou-se um detalhe, a ser explorado no "cochilo" do adversário. Ganhar com apenas um tento tornou-se a coisa mais banal. O espetáculo futebolístico deixou a desejar, apesar do mundo oferecer grandes atacantes. Uma pena é que estes eram simplesmente uma peça de uma engrenagem que funcionava para travar, não para desenvolver.
O jogo de Karpov não era exatamente um jogo feio, na mesma medida e proporção que alguns clubes de futebol retranqueiros ofereceram sua encenação lúdica. Encontramos no repertório do velho mestre enxadrista muitas partidas interessantes. Mas quando este se deparou com outro enxadrista chamado Kasparov, a coisa mudou. E Kasparov mostrou ao mundo do xadrez que o paradigma agora era outro: o do ataque. Kasparov chegou a ser praticamente imbatível, com lances nunca antes contemplados, quando todos pensavam ter chegado ao conhecimento total do xadrez.  Nos confrontos de mundiais contra Karpov nunca perdeu.

Assim, penso que com o futebol é o mesmo. Os paradigmas se impõem e se sucedem conforme cada período. Sendo um esporte coletivo, o futebol pode se apresentar, sim, como uma arte, uma construção, onde cada jogador procura dar a sua pincelada para a imagem final, que é o gol. No xadrez, embora apenas uma pessoa joga, as peças operam coletivamente para o xeque-mate. E isso também é uma construção que pode ser feita com arte.

Não estou querendo dizer que sou totalmente a favor do jogo ofensivo. Este pode resvalar em monotonia, às vezes. Por outro lado, defender-se pode se constituir numa arte também, mas desde que colabore para o grande espetáculo, sem tomar toda a atenção ou roubar a cena do lúdico. É o que fez aquela grande seleção de 1958 e também por isso acredito que seja a melhor  das seleções campeãs.

P.S. Leio um artigo no "O Estado de São Paulo" neste dia 30/12/12, de José Miguel Wisnik, a respeito do futebol brasileiro, que reflete em muito o que escrevi acima. Recomendo que leiam. 

domingo, 23 de setembro de 2012


Casa de Bonecas
IBSEN, Henrik. Trad. Gabor  Aranyi. São Paulo, Ed. Veredas, 2007 (1879).

Trata-se de uma peça de 1879, e as formas do realismo eram então vigentes. E uma das críticas mais incisivas e pertinentes deste movimento é ao moralismo burguês, que tenta acima de tudo manter as aparências.

História e enredo.
Para um estudo mais detalhado da história em que se desenrola a peça, aconselho a consultar a wikipédia, mas resumidamente é o seguinte:
Uma dona de casa, Nora, tenta manter as economias domésticas em estrito controle ao mesmo tempo que tenta proporcionar conforto à família, sem abrir mão do consumo - especialmente o supérfluo. Ocorre que no início do drama nem o espectador nem o marido, dentro da história, sabem disso. Ao marido, Helmer, Nora se apresenta como uma gastadora, que não consegue se conter, comprando presentes e enfeitando a casa - como no Natal, onde a cena se passa no primeiro Ato. Helmer a trata como uma criança, de modo condescendente. Nora é alegre, cheia de encanto e esperança na vida. O que Helmer não sabe é que Nora contraiu um empréstimo, por mãos de um homem inescrupuloso - Krogstad, um advogado. Este, assim que sabe da notícia de que Helmer passará à direção de um Banco, onde também trabalha, tenta chantagear Nora, com o fim de não apenas manter-se no emprego, mas obter uma posição melhor. O que Helmer também não sabe, e o público vem a saber depois também somente por meio de uma conversa com a Sra. Linde (Cristina) - antiga conhecida de Nora - é que o empréstimo contraído tinha por finalidade uma viagem, empreendida por ambos, marido e mulher, anteriormente, a fim de que Helmer se restabelecesse de uma doença que o consumia. Enfim, a mulher salva o marido, não menciona a fonte do dinheiro, aliás, menciona falsamente: diz que a quantia veio do pai. Na realidade este não tinha o dinheiro e estava à beira da morte. O pai de Nora teria servido como aval do empréstimo contraído com o advogado, mas morre antes de assinar a promissória. Nora falsifica a assinatura e obtém o empréstimo, mas Krogstad sabe disso. Não diz nada a Nora, até aquele momento, chantageando-a de modo oportuno. Nora mantém-se confiante de que o marido irá compreender tudo - é a espera do "maior dos milagres". A Sra. Linde tenta interferir, pois é conhecida de Krogstad, com o qual poderia ter tido um relacionamento no passado. Krogstad gostou dela antes, mas não chegaram a ficar juntos. Agora tem a oportunidade. Linde convence-o a não revelar nada a Helmer, o que teria feito por uma carta escrita, dirigida ao marido. O advogado aceita, mas Linde muda de ideia na última hora e decide que Helmer deveria saber de toda a história, para o bem de Nora. De fato, por meio de um desenrolar cheio de tensão aos espectadores, Helmer fica sabendo de tudo, pois lê a carta que lhe era dirigida. Aqui é que começa a chave para se entender o enredo da história. Nora espera um "milagre": que o marido entenda tudo e fique agradecido, acima de tudo, ao relacionar o empréstimo com a viagem, a saúde restabelecida e a retomada da vida normal. Mas Helmer, também ele um advogado, só se concentra no deslize de Nora, a assinatura falsificada, entendendo isso como uma grande falha moral e não atentando para o outro lado, o gesto nobre de salvar a saúde do próprio marido. Pior ainda é a proposta de manter as aparências, o casamento ao olhar dos outros. Toma essa decisão após conhecer o conteúdo de uma segunda carta de Krogstad, informando que desistiu da chantagem e devolvendo a promissória. Até então Nora se mantém impassível e fria, ouvindo tudo. Após isso e toda a censura que teve que ouvir, acrescida à proposta do marido de manter as aparências, decide sair daquela casa de bonecas. Era assim que sentia tratada.
Nora toma uma decisão corajosa: não aceita a proposta do marido de continuar assim e apenas manter as aparências, visto que não entende nada acerca dos sentimentos que a envolve e que justificaram aqueles atos. Helmer atenta apenas para o lado moral da desobediência à lei - falsificar uma assinatura é crime, não importa se há justificativa ou motivo nobre. Nora só olha para o ato legítimo, para a relação entre as pessoas, não para a fria letra da lei.
A peça de Ibsen é um verdadeiro libelo contra esse moralismo jurídico que já tomava conta das relações sociais nas sociedades modernas. Não por acaso gerou muita polêmica onde foi encenada. O desfecho, em termos de enredo de acordo com o drama, não poderia ser outro senão a ausência de qualquer conciliação, haja vista a firmeza com que ambos os personagens defendem seus pontos de vista, embora ao final Helmer se sinta confuso e interrogativo. Talvez haja uma ponta de esperança no "maior dos milagres".
O único "regenerado" é Krogstad, que parece abandonar sua índole egoísta ao reencontrar seu antigo amor - a Sra. Linde. Esta também encontra um motivo para viver - "cuidar" de Krogstad, posto que morreram seu marido e sua mãe, não tendo mais ninguém a quem se ligar.

A narrativa.
Trata-se de uma descrição que vai se adensando; o ar leve e os diálogos suaves vão sendo substituídos por uma atmosfera mais pesada à medida que os personagens vão revelando seus atos e seus motivos. Uma parte do desenvolvimento, com relação à carta, envolve também grande tensão para o público.
Não posso dizer nada a respeito da encenação da peça, pois nunca assisti a uma representação. Mas se bem encenada, acredito que ela possa causar uma forte impressão interior. 

quarta-feira, 19 de setembro de 2012


Teoria Quântica. Um guia ilustrado. 
McEvoy, J.P. & Oscar Zarate
São Paulo, Leya, 2012.


Amigos, recomendo a leitura deste não tanto pelo didatismo, pois a exposição não é feita de modo muito simples. O autor preferiu uma abordagem sem concessões, colocada numa linha histórica,  fazendo com que o leitor consiga apreender a dificuldade de se elaborar uma teoria completa a respeito de qualquer assunto. É divertido. As ilustrações são bem inspiradas e auxiliam na visualização dos problemas. Segue um resumo, para quem quer entender melhor e/ou inspirar-se a adquirir o livro. Ou não.


Teoria quântica e a física clássica.
A teoria quântica, em seu acabamento final, continua a desafiar o nosso senso comum e nossas noções de física, que ainda permanecem no plano do século XVII, ao menos para a maioria dos mortais - mesmo para aqueles que nunca aprenderam física, pois estas noções estão impregnadas no discurso cotidiano. E não só nisso: para a construção de prédios, pontes e estruturas relativamente simples, basta a física clássica.

Quanta e energia.
Quando vamos à estrutura do universo ou à do átomo, tudo muda. É preciso apelar para outras noções, mais complexas, tal como a da física dos quanta. A origem deste nome se relaciona a uma "saída matemática", a fim de obter uma equação que desse conta dos números obtidos com instrumentos de teste (caixa de corpo negro com uma pequena saída para a radiação), por meio do qual eram observadas as radiações. A ideia de Max Plank foi justamente "fracionar" matematicamente os pacotes de energia a fim de poder ajustar o cálculo teórico aos números obtidos nas observações. Estaríamos aqui um pouco antes do início do XX e nada se sabia a respeito do átomo, para o qual Rutherford e Bohr iriam lhe fornecer um modelo.  Por conseguinte, quanta diz respeito a uma fração de energia; números quânticos estão relacionados à posição das partículas dentro do átomo; Einstein provou a existência do átomo por meio de um de seus famosos artigos de 1905. Em outro artigo, estudando a cinética dos elétrons, estabelece um modelo e uma equação para o efeito fotoelétrico - daí veio a tese dos fótons. Einstein não admitiu totalmente a quantização da energia de Plank e queria uma regra muito mais geral - chegaria assim mais tarde à teoria da relatividade geral. É de se observar que Einstein escreveu seus artigos sem nenhum contato direto com laboratórios, os quais já havia abandonada há algum tempo, dado que trabalhava num departamento de patentes na Alemanha.

O livro.
Este livro aborda, assim portanto, de maneira não muito simples - diga-se de passagem, a construção da teoria quântica desde os seus primeiros passos. Equações, princípios e fórmulas são ilustradas e nos fornecem as informações sobre os caminhos que tomaram os teóricos até chegarem a formulações mais precisas, tal como a de Heisenberg. Uma coisa é certa, certíssima: não existem gênios solitários, que  fizeram "descobertas" maravilhosas. Existem homens geniais, muitos, que contribuíram com uma pequena ou boa parte para a construção dos paradigmas que temos hoje. Acredito que se isso é válido para a física, é válido para todo o resto do conhecimento humano que dependa de investigação. Inclusive, acredito, nas ciências sociais.

Os nomes.
Os três nomes mais diretamente relacionados à teoria quântica - Heisenberg, Schrödinger e Dirac - não teriam chegado à metade do caminho não fossem contribuições de outros tantos, tal como o próprio Bohr, Pauli, De Broglie, Plank, Balmer (um simples professor) e, inclusive, Einstein, entre outros tantos. Não esquecendo mesmo dos físicos clássicos do século XIX e início do XX

Experiência do Mundo.
Interessante é concluir, pelo texto apresentado, que todas as experiências nos fornecem um modelo indireto da Natureza. Seja lá o que isso possa representar ou não. Os dados das experiências são levados a gráficos e representações, fornecendo (quando possível) explicações. Esse é o maior mérito do livro, pois o que geralmente se pensa a respeito de experiências, no senso comum, é que o cientista está "observando" diretamente os fenômenos da natureza e extraindo daí suas lições - leis e princípios. Nada mais enganoso. E muitas vezes não há nem um modelo, nem uma representação, tal como acontece com a teoria de Heisenberg  - totalmente matemática, chamada de mecânica matricial. Não há uma representação visual, como o modelo de átomo de Bohr - mestre de Heisenberg - que aprendemos pelos livros didáticos.

Modelos.
O modelo de Bohr é o do átomo com elétrons que perfazem uma órbita em torno do "centro sólido", tal como no sistema solar.  Os elétrons, uma vez excitados, pulam de uma órbita para outra, desprendendo energia em forma de fótons (luz). Esta é uma tradução bastante simplificada de seu modelo. Seu discípulo, Heisenberg, a fim de resolver intrincados problemas relacionados aos campos elétrico e magnético, desenvolveu um modelo matemático - baseado em matrizes - para resolver tais problemas. O próprio termo, "mecânica matricial", não era bem quisto por Heisenberg, mas trata-se certamente de um formalismo puramente matemático, rejeitando qualquer modelo de visualização.
Enquanto isso, Schrödinger, na década de 1920, realizava suas experiências adotando um modelo de ondas para o átomo, chegando assim a equações muito precisas, que davam conta dos mesmos problemas matemáticos antes colocados. Max Born forneceu a interpretação probabilística a este modelo.

A verdade.
Quem está com a verdade? Ambos estão. E o próprio Heisenberg chegou a essa conclusão, após os resultados das investigações de Dirac, especificamente. Dirac trabalhava sozinho, recluso. Mas ainda assim não se pode assumir o modelo de "gênio solitário", como o de Einstein, pois apesar da solidão, o trabalho, afinal, tem que estar baseado em teoria, testes e hipóteses de outros. Trabalhar sozinho ou em equipe não é o que define a autoria. Tanto que Heisenberg utilizou-se do trabalho de Dirac, especialmente sobre a absorção da radiação eletromagnética (luz), para chegar à sua conclusão final em 1927, elevando a teoria quântica a um nível maior de entendimento com relação à antiga teoria quântica de Bohr, Einstein e Plank. Ela pode ser compreendida em três termos simples:
1) A matéria pode ser entendida tanto em termos de ondas como de partículas (princípio da complementaridade);
2)Não há como identificar com precisão a posição exata de uma partícula subatômica, nem seu movimento - o momento angular (princípio da incerteza ou da indeterminação);
3)Podemos obter a probabilidade de sua posição e momento, estimando-se justamente a imprecisão da medição (princípio da exclusão e escolha).
Essas medições, para quem não sabe, são realizadas por meio de experiências com difrações de luz em espectros - e tudo isso, segundo Heisenberg, provoca uma "distorção" na imagem do objeto, dado que para o contrário a radiação luminosa teria que ser menor que o próprio objeto - o que não corresponde à realidade. Daí o uso de "experiências de pensamento" (algo que eu sugeriria aos historiadores...), por meio do qual pode-se chegar à solução matemática de um problema, que a experiência talvez não permita...
Confuso? Um pouco. A conclusão a que se chega, a despeito dos empiristas, é que nem tudo pode (ou se deve) ser obtido por meio da experiência física, concreta. É o fim do determinismo, ao menos na Física, por enquanto, e isso já na terceira década do XX...
O princípio da complementaridade chocava-se diretamente contra toda a física clássica, desde Newton, já que, segundo esta última, se duas descrições são mutuamente exclusivas, então ao menos uma delas deve estar errada. Chegaríamos portanto a um paradoxo: ou a física clássica está correta e tudo o mais que se fez é pura ilusão ou a física quântica é que nos fornece a chave para compreensão dos fenômenos, embora incompleta. Teríamos então que conviver com a incerteza e a incompletude.

Oposição de Einstein.
 Einstein se opôs obstinadamente ao modelo, a partir da Conferência de Solvay, em 1927, Bruxelas. Segundo uma frase que lhe é atribuída: "Deus não joga dados", isto é, tudo pode ser mensurável; o modelo probabilístico de Heisenberg não o agradava, de maneira alguma. Concebeu vários modelos, "experiências de pensamento", para refutar a tese, mas Heisenberg  sempre conseguiu uma "saída", demonstrando a "solidez" de seu modelo. A mais famosa dessas "experiências de pensamento" é a caixa de luz de Einstein, sobre a qual não vou entrar em detalhes (sugiro fortemente a compra do livro), mas a que Heisenberg soube dar uma solução elegante, inclusive baseando-se em parte na própria teoria da relatividade.
Einstein não desistiu. Juntamente com Boris Podolsky e Nathan Rosen, desenvolveu um novo desafio, o paradoxo EPR. Mais uma prova de que não existem gênios solitários. O paradoxo EPR é bastante complexo para descrevê-lo aqui, mas resumidamente e grosso modo, podemos descrevê-lo pelo princípio da não localidade - para Einstein é possível medições em sistemas considerados isoladamente; na teoria quântica de Heisenberg isso não é possível, pois não há como separar observador e observado, dado que fazem parte do mesmo sistema. O paradoxo EPR demonstra a incompletude da teoria quântica; ainda há outro paradoxo, desenvolvido por John Bell, mais recente e que diz respeito à localidade: pelo teorema da desigualdade, a natureza é não local. Portanto, mudanças num sistema em A sempre provocam alterações em B, independente de sua localidade e até mesmo da velocidade da luz!
Segundo McEvoy:
"Isso significa que, a despeito das aparências locais dos fenômenos, nosso mundo é na realidade sustentado por uma realidade invisível, que é imediada e que permite uma comunicação mais veloz que a luz, até mesmo instantânea." (p. 170)
Resta saber como se dá essa interação e se a interpretação que lhe damos é verdadeira. Estudos recentes sobre neutrinos estão deixando os físicos com grandes indagações. Cabe esperar mais investigações a respeito. Mas uma coisa é fato: nosso entendimento sobre a natureza não é completo e nem verdadeiro, em seu sentido ontológico. Ele é paradigmático. Que o diga Thomas Khun.

Um gato "zumbi": gato vivo, gato morto.
O famoso experimento de Schrödinger, que na verdade se transformou em metáfora para a teoria quântica, foi elaborada pelo mestre a fim de refutar o modelo quântico, ao afirmar que um gato vivo e morto ao mesmo tempo é impossível, um absurdo. O experimento é bem mais complicado do o que os livros descrevem normalmente. Envolve o decaimento de radiação dentro da caixa onde está o gato. Após um tempo de decaimento, ao abrirmos a caixa o que teríamos? Um gato vivo ou um gato morto? Pela lógica do experimento, um gato morto-vivo, devido ao momento probabilístico do decaimento da radiação no momento em que a caixa é aberta. O que na avaliação de Schrödinger seria um absurdo. Heisenberg era sagaz, além de genial. Tomou o exemplo justamente para exemplificar a teoria, afirmando que o gato morto-vivo representa a mistura dos dois estados - função de onda e de partícula. Pode se tomar o gato como vivo ou como morto, depende do que se queira medir.

Minhas próprias conclusões.
A história desse paradoxo nos ensina uma grande lição: a interpretação do mundo passa por uma grande disputa; mas o significado dessa interpretação, em si mesmo, talvez não esteja em mundo algum. 

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Capitalismo Global


FURTADO, Celso. O Capitalismo Global. São Paulo, Ed. Paz e Terra, 1998
Celso Furtado e o capitalismo global.

Terminei de ler [em julho] o pequeno e ótimo livro do professor Celso Furtado, escrito no final dos anos 90. O conteúdo do texto extrapola em muito o que porventura expressa o título, pois C.F. faz uma verdadeira síntese de toda sua obra, suas influências, seu percurso profissional, sua preocupação com a economia brasileira e o respectivo desenvolvimento econômico. Por isso, recomendo fortemente a todos a sua leitura.
Sua preocupação mais recente, o capitalismo global – as forças e os efeitos da globalização incluídos – liga-se às suas antigas preocupações, isto é, o desenvolvimento econômico brasileiro, de uma forma bastante estreita. Na medida em que as forças da globalização impõem a sua vontade ao mundo — gerando desigualdade e, por conseguinte, pobreza — é preciso contrapor outras forças a elas, a fim de dirimir ou ao menos minorar o prejuízo que causa a globalização à população humana.
Preocupação com o humano. Apesar de economista, C.F. faz questão de destacar o homem dentro do sistema, não o homem em função do sistema. Por isso, diz “nunca pude compreender a existência de um problema estritamente econômico” (destaque na orelha do livro). Toda solução econômica tem que objetivar a liberação da força criadora do homem e o seu bem-estar – mas não de apenas uma parcela da humanidade, mas de toda ela. Por isso mesmo C.F. vai se voltar para o entendimento das necessidades dos mais pobres, das camadas mais desfavorecidas da população. Sua teoria do desenvolvimento econômico é toda orientada para este sentido. De uma forma mais geral, suas teses apontavam para a necessidade de um desenvolvimento industrial autônomo, que garantisse uma crescente homogeneização social. Não se entenda que com isso se quisesse chegar a uma igualdade total – talvez impossível e nem mesmo desejável - mas que pelo menos alcançasse os níveis dos países desenvolvidos, em uma tendência igualitária de consumo e dentro de padrões culturais próprios. Para isso, são requeridas políticas públicas, com a devida ação do Estado.
Era Celso Furtado um nacionalista? De certa forma sim, uma vez que faz uma defesa da preservação de uma identidade cultural nacional. O que seria essa identidade? A originalidade de C.F. reside justamente aí. Não há fórmula para uma identidade, nem ela deve ser imposta de cima para baixo, seja por parte das classes altas, seja por parte do Estado. Deve ela emergir de dentro das próprias forças econômicas autônomas – e portanto, modernas. O que tivemos desde sempre, afirma o professor, é as forças econômicas sempre vieram de fora, impondo-se e modernizando o país. Portanto, sempre fomos um país modernizado, não moderno. Sua teoria do desenvolvimento visava justamente romper com esse mecanismo, principal elemento do atraso e do subdesenvolvimento de nossas plagas. O modo como o país se inseriu no comércio internacional, desde sempre e a partir da colonização, é que imprimiu esse movimento. Sua observação e estudo sobre a Crise de 29 é que o fez pensar que tudo podia ser diferente. Nesse período o país se volta para dentro, desenvolve um mercado interno — essa é uma das chaves para a sustentação de um desenvolvimento industrial próprio e relativamente autônomo. Evidente que nenhum país pode se fechar, tentando ser completamente independente, mas possuir uma relativa autonomia faz com que a inserção no comércio internacional seja mais favorável, dentro do que se convencionou chamar de “vantagens comparativas” das trocas.
O livro se divide em oito capítulos curtos. A seguir um sumário de cada um deles.

1 – A LONGA MARCHA DA UTOPIA
C.F. descreve sua trajetória profissional, especialmente na CEPAL, onde conhece Raul Prebish. Naquele tempo, logo após a guerra, predominava a idéia de que os países periféricos deveriam se integrar à economia mundial por meio das “vantagens comparativas”; cada um com a sua a oferecer. Ora, num país de economia agrária o que se tem a oferecer é um produto primário. Assim, a inserção no mercado internacional pode ser inicialmente vantajosa, mas com o tempo, com a degradação dos meios de troca, esse modelo revela-se precário e desvantajoso.
Com o incentivo e a influência do pensamento de Raul Prebish, C.F. começa a pregar a ação do Estado no sentido de desenvolver a industrialização por meio da expansão do mercado interno. Política que foi eficaz dos anos 1930 aos anos 1970.
A ideia subjacente na tese de C.F. é que o capitalismo não se desenvolveu e não se expandiu antes que a massa salarial fosse valorizada e se expandisse também. Uma valorização crescente do capital leva à crise e ao colapso se o poder de compra não pode acompanhar a oferta.
Portanto, os problemas a serem enfrentados no Brasil foram - e são - de ordem política, pois a industrialização e a formação do mercado interno deram-se por meio de uma política econômica que se refletia no enfrentamento das elites agrárias, cujas políticas econômicas tendiam a valorizar o câmbio em detrimento de outras, tendendo a excluir também políticas de ordem marcadamente sociais.

2 – O NOVO CAPITALISMO
Aqui C.F. descreve o novo capitalismo (global), mais internacionalizado e mais independente dos controles diretos estatais, mas ao mesmo tempo com uma interdependência crescente entre os sistemas econômicos.
 “Quanto mais as empresas se globalizam, quanto mais escapam da ação reguladora do Estado, mais tendem a se apoiar nos mercados externos para crescer.” (p.29)
Tudo isso requer uma nova prática política: a imaginação criativa dos homens de governo, para fazer frente à complexa arquitetura econômica a que chegamos.
Comentário. De fato, C.F. tinha razão: o deslocamento de unidades inteiras de produção de um país para outro faz com os esforços sejam concentrados naquele país que recebe o “encargo” da produção. No entanto, cria-se uma dinâmica que não se dá mais em termos unilaterais, mas recíprocos.

3 – GLOBALIZAÇÃO E IDENTIDADE NACIONAL
O avanço da globalização impôs um dinâmico sistema internacional, ainda dominado pelas grandes empresas, mas agora sem o efetivo controle e regulação dos Estados. Voltamos à uma época anterior do capital em que sua difusão pelo mundo não contava com grandes regulações, apesar do apoio estatal.
O Brasil, ao aumentar seu esforço de integração a essa nova economia (ajuste externo) talvez tenha perdido o seu dinamismo de desenvolvimento, que até então se calcava na expansão do mercado interno, ao menos até meados dos anos 1990.
Para C.F. o grande desafio brasileiro é aumentar sua capacidade de autofinanciamento; cabe então recuperar a eficácia dos instrumentos de comando macroeconômico, pela ação política do Estado.  

4 – A SUPERAÇÃO DO SUBDESENVOLVIMENTO
Faz aqui uma exposição das várias formas possíveis (e empreendidas pelos países) de superação do desenvolvimento:
a)coletivização dos meios de produção; b)prioridade à satisfação das necessidades básicas da população; c)ganho de autonomia externa.
Em qualquer dessas formas é preciso haver vontade política para sua implementação. O objetivo tático tem sido sempre ganhar autonomia na ordenação dos objetivos econômicos, a fim de reduzir as desigualdades e promover o desenvolvimento. Aqui, a desigualdade é o principal obstáculo ao pleno desenvolvimento industrial. Por outro lado, esse desenvolvimento tem que se traduzir num enriquecimento da cultura e suas múltiplas formas. Isso exige “...forte vontade política, apoiada em amplo consenso social.” (p.54).

5 – REVISITANDO MEUS PRIMEIROS ENSAIOS TEÓRICOS
C.F. analisa a sua trajetória de suas idéias, especialmente a teoria do subdesenvolvimento. Suas reflexões levaram à conclusão que o subdesenvolvimento se deve a fatores culturais – o elevado padrão de consumo das classes dominantes, superior a nossas forças produtivas e manutenção da desigualdade justificada pela falta de interesse em produzir aqui esses produtos; além disso, essa classe, por conta do alto consumo, não acumula: só gasta [acrescente-se o fato de que muitos preferem investir parte do seu dinheiro em bens imóveis, imobilizando o capital].
A observação da ocorrência da Crise de 29 permitiu, segundo C.F., chegar a essas conclusões. De fato, uma vez que o país parou de importar tais produtos (devido à crise de produção e do sistema de comércio internacional) e passou gradativamente a produzir alguns deles aqui, o país obteve alto crescimento econômico. O que reflete um viés cultural: não havia interesse de produzir aqui o que era facilmente importado pelas elites e classes dominantes. Portanto, é preciso mudar o padrão de consumo geral por meio de políticas sociais – políticas públicas que procurem incluir a população excluída do grande consumo.
“...faz-se necessário modificar os padrões de consumo no quadro de uma ampla política social, e ao mesmo tempo elevar substancialmente a poupança,  comprimindo o consumo dos grupos de elevadas rendas.” (p.60)

6 – OS NOVOS DESAFIOS
Em termos gerais, nos países “mais avançados” a produção e o consumo se casam bem, isto é, “...o progresso técnico penetra sem tardança nas formas de produção, ao mesmo tempo que os padrões de consumo se modernizam...” (p.62); nos países “menos avançados” o consumo não encontra correspondência na produção, isto é, “...em regiões marginalizadas essa penetração se circunscreve inicialmente aos padrões de consumo, limitando seus efeitos à modernização do estilo de vida de segmentos da população.” (idem).
Podemos depreender assim que Celso Furtado entende que nos países modernos o progresso técnico é um fator de inovação e provocação de consumo, enquanto que nos países modernizados a rota se inverte: apenas com a adoção de um estilo de consumo – o consumo de determinados bens - é que a produção sofrerá modificação, apropriando-se de técnicas e inovações. Por isso é que C.F.  insiste no incentivo à criatividade ao nosso modo, sem insistir tanto nos estilos de vida puramente importados.
“O principal objetivo da ação social deixaria de ser a reprodução dos padrões de consumo das minorias abastadas para ser a satisfação das necessidades fundamentais do conjunto da população e a educação como desenvolvimento das potencialidades humanas nos planos ético, estético e da ação solidária.” (p. 65)

Além disso, é preciso rever, no plano mais geral e mundial, algumas  das orientações e objetivos humanos, impondo-nos novos desafios:
“A criatividade humana, hoje orientada de forma obsessiva para a inovação técnica a serviço da acumulação econômica e do poder militar, seria reorientada para a busca do bem estar coletivo...” (p.65)

7 – dimensão cultural do Desenvolvimento
C.f. propõe-nos combater a “lógica dos instrumentos”, por meio da qual a dimensão tecnológica se sobrepõe à cultural. Trata-se de uma revisão de fins e meios, onde a dimensão cultural da política social deve prevalecer sobre as demais.
É um entendimento muito particular e interessante do que seria a cultura, para C.F. (partes negritadas minhas):
“A cultura deve ser observada, simultaneamente, como um processo acumulativo e como um sistema, vale dizer, algo que tem uma coerência e cuja totalidade não se explica cabalmente pelo significado das partes, graças a efeitos de sinergia.” (p.71)
A orientação que imprimimos à nossa economia pode submeter-nos a pressões destruidoras; é o que se observa quando a acumulação de bens culturais é comandada do exterior – como exemplo, “certas formas de urbanização podem conduzir à destruição de um importante patrimônio cultural.” (p. 71)
Essa força externa pode provocar rupturas que não são as rupturas criativas, revolucionárias; por isso, é preciso manter uma continuidade criativa, que não quebrem nossos sistemas de valores pela prevalência única da lógica da acumulação.

8 – RISCO DE INGOVERNABILIDADE
Neste último capítulo C.F. destaca que as forças sociais são importantes contrapontos às forças econômicas. Tal como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, que questionam a divisão patrimonial das terras.
Destaca também o papel integrador do Estado brasileiro, que conseguiu unidade territorial e lingüística, mas também soube se colocar frente ao desafio da industrialização. Cabe agora modificar a fundo o perfil da distribuição da renda – difícil nestes tempos de globalização, mas que se coloca agora como outro desafio. Ao mesmo tempo, promover uma política fiscal que assegure a taxa de poupança. Estrategicamente coloca-se como objetivo o crescimento do mercado interno – o que significa privilegiar os interesses da população, como um todo. Não se trata de um fechamento da economia, diz C.F., mas de uma inserção no mercado internacional em outras bases. Trata-se também de entender o crescimento econômico de outro modo:
“...um índice que pretenda medir o bem estar médio da população terá que ser utilizado com muita precaução.” (p.81)
O crescimento econômico tem que ser traduzido em termos de crescimento pessoal e humano para toda a população. É preciso estar atento aos números impostos pelos grupos de dominação que sustentam a atual estratégia globalizante – por serem inadequados à nossa realidade, promovem seu ocultamento.  

Em resumo, com este livro Celso Furtado identifica como agem as forças da globalização;  embora não seja muito descritivo, aponta para as linhas gerais de uma nova dominação – força modernizadora, reforçada por meio dos novos instrumentos e técnicas da comunicação mundial. Propõe um novo desafio: orientar a nossa industrialização visando a uma verdadeira estrutura moderna – autônoma, privilegiando o mercado interno e de modo que não cause rupturas destruidoras à nossa cultura, entendida num sentido amplo – como processo e como sistema; na qual os valores a que faz referência são próprios, não adotados de fora. Para isso deve contribuir um processo criativo também endógeno, num ritmo de continuidade inovadora, mas coerente com nossa identidade. Esse é um meio de nos contrapormos às forças geradoras de desigualdade da globalização.

quinta-feira, 19 de julho de 2012



Judas, o Obscuro. São Paulo, Ed. Abril, 1971 (1895)
HARDY, Thomas

"A esperança..: um sonho feito de despertares."
(Aristóteles, citado por Diógenes Laércio, Vida dos Filósofos)

A história descreve a trajetória de Judas Fawley, menino órfão que tem pretensões de grandes estudos e erudição. No entanto, uma série de obstáculos vão se opor a esse objetivo, já fixado desde pequeno por Judas. O casamento será um grande obstáculo, além do trabalho duro com a pedra, pois fará com que Judas desista de seu propósito, ao conhecer e se casar com uma moça, Arabella. Mais tarde conhecerá Sue, sua prima, com quem mantém uma relação de maior afinidade, mas as infelicidades serão maiores do que poderiam suportar.  Sue, bem como o professor Phillotson, também alimentam esses sonhos de grandeza intelectual, de estudos, mas como Judas também falham em seus projetos e não conseguem ir adiante.

O livro de Thomas Hardy trata dos indivíduos que são "arrastados" pelas convenções sociais e pelo hábito (no sentido de Pierre Bourdieu) à pobreza e à uma vida de trabalho sem compensações - nem materiais, nem intelectuais. Toda aspiração à uma vida contemplativa ou intelectual é cerceada ou reprimida pelas circunstâncias do nascimento e por uma disposição a repetir erros e se enganar; mas não só isso, pois uma série de adversidades se impõem, além das do casamento. O próprio professor Phillotson, que queria ser um erudito e seguir a carreira acadêmica, também não conseguiu assim empreendê-la. Ficou constrangido a dar aulas no primário. Não havia tempo nem oportunidade para nenhum deles.

O fato de ter de casar-se, atendendo às pressões sociais, foi crucial para Judas neste processo de confrangimento intelectual. Sobretudo porque casou-se com Arabella, uma mulher vulgar e materialista, sem nenhum ideal mais elevado. Isso desviou Judas de suas intenções e estudos iniciais - quando se casou, as leituras foram praticamente abandonadas. O casamento com Arabella não durou muito; ela mesma o abandonou. Posteriormente Judas conheceu e teve filhos com Sue (Susanna), sua prima, mulher inteligente e com grandes ambições intelectuais também. Dona de um pensamento laico, ao contrário de Judas, que é religioso, Sue possui uma grande sensibilidade, mas geralmente é indecisa e de vontade oscilante. Antes de relacionar-se com Judas, Sue casou-se com o professor Phillotson, em cuja escola foi admitida como auxiliar, com o próprio incentivo de Judas, que não esqueceu o contato que manteve de pequeno com o professor.

A ligação de Judas com Sue não foi menos nociva, embora mais por força da situação que viveram que pelo caráter da mulher. Ambos vão ser recusados pelas instituições de ensino onde pretendem formar-se: Judas é rejeitado por todos os colégios e Sue é expulsa de um. O casamento de Sue com o professor Phillotson é um fracasso. Ela percebe que se casou por compaixão e não por amor. Procura Judas e permanecem juntos. Tiveram dois filhos, mais o "adotivo" - na verdade filho legítimo de Judas com Arabella, que escondeu esse tempo todo a existência do menino, que se chamará pequeno Judas pelo casal Sue e Judas. Tinha um apelido esse menino: "Pequeno Pai Tempo". Talvez esse menino é que seja realmente o Judas obscuro, pois é esquisito, triste, de ideias inusuais, obscuras mesmo. O menino achava que não devia ter nascido. Numa circunstância estranha e horrível, durante uma noite de grandes dificuldades para arrumar um quarto para a família - já que estavam vivendo uma vida nômade devido aos mexericos por não terem se casado na Igreja nem no Civil - o menino suicidou-se, juntamente com seus dois irmãos. O casal sofreu por demais com isso, acrescentando-se ao fato de que a condenação social era muito forte. Sobrevieram desgraças e doenças. Sue nunca mais foi a mesma, tornando-se aos poucos religiosa; uma forma de autocondenação pela sua distração no dia da tragédia. Alimenta a ideia (fixa) de voltar para o casamento com Phillotson e é isso que acaba fazendo. Sozinho, Judas torna-se uma presa fácil para Arabella, que então viúva, vai querer o antigo marido de volta. Desnecessário dizer que ninguém foi feliz até o final, cujo desfecho não contarei aqui, para não "estragar a surpresa" daqueles que querem ler o romance.

Trata-se de um romance tão forte para mim quanto o foi a leitura de "O Castelo", de Kafka. Romance que quero comentar aqui futuramente, quando houver tempo de reestudá-lo para fazer uma resenha, pois já faz algum tempo que o li.

Como já disse acima, as conclusões a que nos levam o romance antecipam em muito a teoria do habitus de Bordieu (desenvolvido nos anos 1960). Em linhas gerais, para quem não conhece, o habitus é uma incorporação/interiorização do indivíduo do comportamento e das regras sociais que dominam uma determinada classe, mesmo sem a consciência dela. Assim, o habitus é  “o produto de uma relação dialética entre a situação e o habitus, entendido como um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona em cada momento como uma matriz de percepções, apreciações e ações e torna possível cumprir tarefas infinitamente diferenciadas, graças à transferência analógica de esquemas” (Bourdieu apud Loïc Wacquant, in:
RBSE 6(16): 5-11, Abril de 2007).

Em outras palavras e em termos práticos, Judas não conseguiu mais que reproduzir a miséria de sua pobreza, não conseguiu sair dela e por isso mesmo relegou todos os seus projetos não apenas para o último lugar das suas pretensões, mas para fora mesmo de sua vida. Há um momento que isso bem claro e por meio das próprias palavras de Judas:

"(...) Deve cada um seguir cegamente o caminho em que se acha, sem considerar seus dotes pessoais, ou deve, pelo contrário, pesar as aptidões, as preferências que possa ter, e mudar a direção de sua vida? Foi o que tentei fazer e fracassei. Mas não admito que o meu fracasso valha como prova de que estava errado, do mesmo modo como não admitiria que o sucesso justificasse o bem-fundado do meu ponto de vista. E é assim, entretanto, que, muitas vezes, julgamos os esforços, não pelo seu valor essencial, mas pelo  seu resultado acidental. Se me tivesse tornado um desses doutores vestidos de vermelho e preto que estamos vendo descer, ali, todos diriam: “Vejam como este homem agiu sabiamente, seguindo o pendor de sua natureza!” Mas, não tendo acabado melhor do que comecei, dizem: “Vejam como este homem agiu estupidamente, seguindo um capricho de sua imaginação!” No entanto, foi minha pobreza e não minha vontade que determinou a minha derrota." (p. 365)

Esse é um momento crucial do romance. Judas passava em Christminster, junto com a família, justamente no dia da Comemoração de uma formatura onde poderia (e deveria) estar. Assiste à solenidade de fora, sob forte chuva; neste dia passa a ficar cada vez mais doente. Foi o dia de sua humilhação e de sua sentença de excluído deste mundo.

A tese deste livro vai em contraposição à tese sartreana do projeto pessoal. Sartre dizia que o indivíduo deveria adotar um projeto de vida, apostar e trabalhar nele. O existencialismo aqui bate de frente com a dura rocha da segregação social. Judas até estabelece uma meta, bem clara: "Serei doutor antes de deixar este mundo" (p. 43). Lista de cabeça as leituras que já fez, bem avançadas para sua juventude (Homero, Tucídides, Hesíodo, os Santos Padres, o Novo Testamento em grego, etc.). No entanto, parece que apostar num projeto não significa poder trabalhar nele...E pelas razões que já enunciamos, Judas fracassa em seu intento.

Fala-se muito hoje em dia em talento e vocação. Inegável que o nosso anti-herói, Judas, possuía o maior talento para os estudos acadêmicos. No entanto, fracassou por que não tinha vocação? Não era determinado o suficiente?

O romance de Thomas Hardy foi editado em 1895. Estamos em pleno século XXI e não vislumbro romance mais atual para nossa época, inclusive nas questões que nos coloca.

Uma frase forte do pequeno Judas, o "Pequeno Pai Tempo":
"É melhor estar fora deste mundo do que dentro, não é?" (p.373).

Bem, qual será o Judas obscuro? O pai ou filho? A tradução do inglês "obscure" para o português admite também a tradução como "oculto", "escondido". O "Pequeno Pai Tempo" ficou oculto, escondido para Judas durante um bom tempo por Arabella, que o deixou sob os cuidados de Judas pai de forma que lhe foi muito conveniente, como que se livrando de um encargo. Não imaginava Judas que o pequeno só traria mais desgraças: suspeita-se, embora de forma não explícita no romance, que o pequeno teria enforcado os dois irmãos antes de enforcar a si mesmo.

A obra de Hardy é um libelo contra a segregação social e uma defesa da participação das classes mais humildes no mundo culto, do direito ao refinamento intelectual que geralmente é negado ou encobertado por falsas proposições de classe. Uma passagem interessante é representativa:

" - Todo homem tem uma pequena possibilidade, num sentido ou noutro - dizia ele. - Nunca fui bastante forte para o trabalho da pedra, principalmente o trabalho de colocá-la. Era um esforço grande demais para mim mover os blocos. E ficar nas correntes de ar, enquanto as janelas dos edifícios não estavam colocadas, ocasionou-me muitos resfriados. Creio, mesmo, que foi então que começou minha doença. Mas sinto que há uma coisa que poderia ter feito, se me tivessem dado oportunidade. Poderia acumular ideias e transmiti-las aos outros. Eu me pergunto se os fundadores pensaram em pessoas assim como eu, prestando unicamente para uma coisa assim especial...Ouvi dizer que, breve, maiores facilidades para estudantes como eu fui, sem recursos. Há projetos de tornar a universidade menos exclusiva e de estender sua influência. Não sei grande coisa a respeito. E é tarde demais, tarde demais para mim! Ah!...e para quantos outros antes de mim!" (p.450)

Acredito que é o que posso dizer a respeito do romance, em termos de seu conteúdo. Quanto à forma, podemos dizer que o estilo de Hardy é tão direto quanto duro, pontiagudo, um tanto pessimista, denunciador. O texto é rico em antíteses: o pesado (a pedra) e o leve (a pena - da escrita); o laico (Sue) e o religioso (Judas); a ingenuidade (dos sentimentos, como em Judas) e a malícia (das intenções, como em Arabella); o idealismo (dos projetos) e a matéria (da dura realidade); a força magnética das mulheres (física, como em Arabella; angelical e etérea, como em Sue); o "medievalismo" da vida em  Christminster em oposição às "luzes" imaginadas por Judas.

Recomendo fortemente a todos a sua leitura. Uma curiosidade: muitas obras de Thomas Hardy foram adaptadas para o cinema, inclusive esta aqui analisada.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Mitologia Grega. Trad. Rejane Janowitzer. Porto Alegre, RS: L&PM, 2009.
GRIMAL, Pierre.


Li este livro no ano passado (2011), mas achei interessante apontá-lo aqui para os leitores em potencial, pois eu gostei da visão geral dele.
 
Trata-se de uma excelente síntese, com dimensão histórica e historiográfica, que aborda os ciclos míticos e faz ainda uma comparação com a ciência moderna.



O autor destaca, no fim do livro, a questão da individualidade de cada mito, criticando - um tanto an passant - os autores que buscaram uma generalização muito grande ou que procuraram vias de comparação.  A "sobrevida" dos mitos estaria ainda manifesta nas interpretações psicológicas (psicanalíticas) ao representar um traço ou uma posição definida ou estilizada de índoles.



Afirma o autor:

"Mesmo desprovidos de seu prestígio de verdade revelada, nem por isso os mitos deixam de formular um problema para o espírito." (p.110)



De fato, alguns autores, como André Malta, vão enfatizar a questão das origens da filosofia justamente  por meio dessa qualidade intrínseca que o mito no coloca que é o enigma.



Para cada ciclo, para cada época, o enigma transmuta-se, assim como o próprio mito, propondo um outro "problema", afirma Jean-Pierre Vernant, pois o mito não é estático. Sua qualidade dialética provém justamente da contraposição e do jogo de caracteres, resultando sempre uma outra qualidade e assim por diante. Portanto, é falso ver o mito como algo que não muda. Isso já não é Grimal falando, mas podemos entender que é algo subjacente nesta sua pequena obra.



Bibliografia para Malta e Vernant:

VERNANT, Jean-Pierre. MITO E RELIGIÃO NA ANTIGA GRÉCIA. São Paulo, wmfmartinsfontes, 2009

MALTA, André. "Mito, razão e enigma" in: Antigos e Modernos. Diálogos sobre a (escrita da) história. Francisco Murari Pires (org.). São Paulo, Alameda, 2009.





Sumário do livro "Mitologia Grega" de P. Grimal, para uma referência:



INTRODUÇÃO

O mito no pensamento dos gregos antigos...7



Capítulo I

Mitos e mitologia...13



Capítulo II

Os grandes mitos teogônicos...24



Capítulo III

O ciclo dos olímpicos...40


Capítulo IV

Os grandes ciclos heróicos...63



Capítulo V

A vida das lendas...95



Capítulo VI

Os mitos diante da ciência moderna...110

quarta-feira, 23 de maio de 2012


KUPER, Peter. Desista! e outras histórias de Franz Kafka. São Paulo, Conrad Ed. do Brasil, 2008.
A adaptação de Kafka feita por Kuper nos dá uma outra dimensão do autor tcheco: a visual, evidentemente, mas sem perder algo de essencial do autor, que é o estranhamento profundo e uma sensação de desolamento.  O estilo dos quadrinhos, misto de traços retos e curvos, em preto e branco, nos aproximam dessas impressões.
É claro que os quadrinhos são uma coisa e o texto mesmo de Kafka é outra. Podem ser lidos independentes um do outro, na minha opinião, mas ficar ciente que a leitura de um "não dispensa" a do outro - especialmente a do adaptado, Kafka. Mas a boa notícia é que os textos, à exceção de dois ("Um artista da fome" e "Um fratricídio"), são integrais. Esta informação consta da última página da HQ e não retira o que eu disse acima, pois lembrar que é uma tradução da tradução. Além disso, a imagem interfere no texto que se lê.
Destaque para a primeira história, "Uma pequena fábula" e também para "Um artista da fome", adaptação excelente para o genial conto de Kafka.

O sumário:
Uma pequena fábula
A Ponte
Desista!
Um artista da fome
Um fratricídio
O timoneiro
As árvores
 O pião
O abutre

Sugestão: estas pequenas histórias podem servir como base de reflexão para grupos que desejam discutir sobre assuntos filosóficos e ao mesmo tempo apreciar a arte de Kuper. Para quem quiser mais informações: http://entretenimento.uol.com.br/album/kafka_desista_album.htm