FURTADO,
Celso. O Capitalismo Global. São Paulo, Ed. Paz e Terra, 1998
Celso Furtado e o capitalismo global.
Terminei de ler [em julho] o pequeno e ótimo livro do professor Celso
Furtado, escrito no final dos anos 90. O conteúdo do texto extrapola em muito o
que porventura expressa o título, pois C.F. faz uma verdadeira síntese de toda
sua obra, suas influências, seu percurso profissional, sua preocupação com a
economia brasileira e o respectivo desenvolvimento econômico. Por isso, recomendo fortemente a todos a sua leitura.
Sua preocupação mais recente, o capitalismo global – as
forças e os efeitos da globalização incluídos – liga-se às suas antigas
preocupações, isto é, o desenvolvimento econômico brasileiro, de uma forma
bastante estreita. Na medida em que as forças da globalização impõem a sua
vontade ao mundo — gerando desigualdade e, por conseguinte, pobreza — é preciso
contrapor outras forças a elas, a fim de dirimir ou ao menos minorar o prejuízo
que causa a globalização à população humana.
Preocupação com o humano. Apesar de economista, C.F. faz
questão de destacar o homem dentro do sistema, não o homem em função do
sistema. Por isso, diz “nunca pude
compreender a existência de um problema estritamente econômico” (destaque
na orelha do livro). Toda solução econômica tem que objetivar a liberação da
força criadora do homem e o seu bem-estar – mas não de apenas uma parcela da
humanidade, mas de toda ela. Por isso mesmo C.F. vai se voltar para o
entendimento das necessidades dos mais pobres, das camadas mais desfavorecidas
da população. Sua teoria do desenvolvimento econômico é toda orientada para
este sentido. De uma forma mais geral, suas teses apontavam para a necessidade
de um desenvolvimento industrial autônomo, que garantisse uma crescente
homogeneização social. Não se entenda que com isso se quisesse chegar a uma
igualdade total – talvez impossível e nem mesmo desejável - mas que pelo menos
alcançasse os níveis dos países desenvolvidos, em uma tendência igualitária de
consumo e dentro de padrões culturais próprios. Para isso, são requeridas
políticas públicas, com a devida ação do Estado.
Era Celso Furtado um nacionalista? De certa forma sim, uma
vez que faz uma defesa da preservação de uma identidade cultural nacional. O
que seria essa identidade? A originalidade de C.F. reside justamente aí. Não há
fórmula para uma identidade, nem ela deve ser imposta de cima para baixo, seja
por parte das classes altas, seja por parte do Estado. Deve ela emergir de
dentro das próprias forças econômicas autônomas – e portanto, modernas. O que
tivemos desde sempre, afirma o professor, é as forças econômicas sempre vieram
de fora, impondo-se e modernizando o país. Portanto, sempre fomos um país
modernizado, não moderno. Sua teoria do desenvolvimento visava justamente
romper com esse mecanismo, principal elemento do atraso e do subdesenvolvimento
de nossas plagas. O modo como o país se inseriu no comércio internacional,
desde sempre e a partir da colonização, é que imprimiu esse movimento. Sua
observação e estudo sobre a Crise de 29 é que o fez pensar que tudo podia ser
diferente. Nesse período o país se volta para dentro, desenvolve um mercado
interno — essa é uma das chaves para a sustentação de um desenvolvimento
industrial próprio e relativamente autônomo. Evidente que nenhum país pode se
fechar, tentando ser completamente independente, mas possuir uma relativa
autonomia faz com que a inserção no comércio internacional seja mais favorável,
dentro do que se convencionou chamar de “vantagens comparativas” das trocas.
O livro se divide em oito capítulos curtos. A seguir um
sumário de cada um deles.
1 – A LONGA MARCHA DA
UTOPIA
C.F. descreve sua trajetória profissional, especialmente na
CEPAL, onde conhece Raul Prebish. Naquele tempo, logo após a guerra,
predominava a idéia de que os países periféricos deveriam se integrar à
economia mundial por meio das “vantagens comparativas”; cada um com a sua a
oferecer. Ora, num país de economia agrária o que se tem a oferecer é um
produto primário. Assim, a inserção no mercado internacional pode ser
inicialmente vantajosa, mas com o tempo, com a degradação dos meios de troca,
esse modelo revela-se precário e desvantajoso.
Com o incentivo e a influência do pensamento de Raul Prebish,
C.F. começa a pregar a ação do Estado no sentido de desenvolver a
industrialização por meio da expansão do mercado interno. Política que foi
eficaz dos anos 1930 aos anos 1970.
A ideia subjacente na tese de C.F. é que o capitalismo não
se desenvolveu e não se expandiu antes que a massa salarial fosse valorizada e
se expandisse também. Uma valorização crescente do capital leva à crise e ao
colapso se o poder de compra não pode acompanhar a oferta.
Portanto, os problemas a serem enfrentados no Brasil foram -
e são - de ordem política, pois a industrialização e a formação do mercado
interno deram-se por meio de uma política econômica que se refletia no
enfrentamento das elites agrárias, cujas políticas econômicas tendiam a
valorizar o câmbio em detrimento de outras, tendendo a excluir também políticas
de ordem marcadamente sociais.
2 – O NOVO
CAPITALISMO
Aqui C.F. descreve o novo capitalismo (global), mais
internacionalizado e mais independente dos controles diretos estatais, mas ao
mesmo tempo com uma interdependência crescente entre os sistemas econômicos.
“Quanto mais as empresas se globalizam, quanto
mais escapam da ação reguladora do Estado, mais tendem a se apoiar nos mercados
externos para crescer.” (p.29)
Tudo isso requer uma nova prática política: a imaginação
criativa dos homens de governo, para fazer frente à complexa arquitetura
econômica a que chegamos.
Comentário. De fato, C.F. tinha razão: o deslocamento de
unidades inteiras de produção de um país para outro faz com os esforços sejam
concentrados naquele país que recebe o “encargo” da produção. No entanto,
cria-se uma dinâmica que não se dá mais em termos unilaterais, mas recíprocos.
3 – GLOBALIZAÇÃO E
IDENTIDADE NACIONAL
O avanço da globalização impôs um dinâmico sistema internacional,
ainda dominado pelas grandes empresas, mas agora sem o efetivo controle e
regulação dos Estados. Voltamos à uma época anterior do capital em que sua
difusão pelo mundo não contava com grandes regulações, apesar do apoio estatal.
O Brasil, ao aumentar seu esforço de integração a essa nova
economia (ajuste externo) talvez tenha perdido o seu dinamismo de
desenvolvimento, que até então se calcava na expansão do mercado interno, ao
menos até meados dos anos 1990.
Para C.F. o grande desafio brasileiro é aumentar sua
capacidade de autofinanciamento; cabe então recuperar a eficácia dos
instrumentos de comando macroeconômico, pela ação política do Estado.
4 – A SUPERAÇÃO DO
SUBDESENVOLVIMENTO
Faz aqui uma exposição das várias formas possíveis (e empreendidas
pelos países) de superação do desenvolvimento:
a)coletivização dos meios de produção; b)prioridade à
satisfação das necessidades básicas da população; c)ganho de autonomia externa.
Em qualquer dessas formas é preciso haver vontade política
para sua implementação. O objetivo tático tem sido sempre ganhar autonomia na ordenação dos objetivos
econômicos, a fim de reduzir as desigualdades e promover o desenvolvimento.
Aqui, a desigualdade é o principal obstáculo ao pleno desenvolvimento
industrial. Por outro lado, esse desenvolvimento tem que se traduzir num
enriquecimento da cultura e suas múltiplas formas. Isso exige “...forte vontade política, apoiada em amplo
consenso social.” (p.54).
5 – REVISITANDO MEUS
PRIMEIROS ENSAIOS TEÓRICOS
C.F. analisa a sua trajetória de suas idéias, especialmente
a teoria do subdesenvolvimento. Suas reflexões levaram à conclusão que o
subdesenvolvimento se deve a fatores culturais – o elevado padrão de consumo
das classes dominantes, superior a nossas forças produtivas e manutenção da
desigualdade justificada pela falta de interesse em produzir aqui esses
produtos; além disso, essa classe, por conta do alto consumo, não acumula: só
gasta [acrescente-se o fato de que muitos preferem investir parte do seu
dinheiro em bens imóveis, imobilizando o capital].
A observação da ocorrência da Crise de 29 permitiu, segundo
C.F., chegar a essas conclusões. De fato, uma vez que o país parou de importar
tais produtos (devido à crise de produção e do sistema de comércio
internacional) e passou gradativamente a produzir alguns deles aqui, o país
obteve alto crescimento econômico. O que reflete um viés cultural: não havia
interesse de produzir aqui o que era facilmente importado pelas elites e
classes dominantes. Portanto, é preciso mudar o padrão de consumo geral por
meio de políticas sociais – políticas públicas que procurem incluir a população
excluída do grande consumo.
“...faz-se necessário modificar os padrões de consumo no quadro de uma
ampla política social, e ao mesmo tempo elevar substancialmente a
poupança, comprimindo o consumo dos
grupos de elevadas rendas.” (p.60)
6 – OS NOVOS DESAFIOS
Em termos gerais, nos países “mais avançados” a produção e o
consumo se casam bem, isto é, “...o progresso técnico penetra sem tardança nas
formas de produção, ao mesmo tempo que os padrões de consumo se modernizam...”
(p.62); nos países “menos avançados” o consumo não encontra correspondência na
produção, isto é, “...em regiões
marginalizadas essa penetração se circunscreve inicialmente aos padrões de
consumo, limitando seus efeitos à modernização do estilo de vida de segmentos
da população.” (idem).
Podemos depreender assim que Celso Furtado entende que nos
países modernos o progresso técnico é um fator de inovação e provocação de consumo,
enquanto que nos países modernizados a rota se inverte: apenas com a adoção de
um estilo de consumo – o consumo de determinados bens - é que a produção
sofrerá modificação, apropriando-se de técnicas e inovações. Por isso é que
C.F. insiste no incentivo à criatividade
ao nosso modo, sem insistir tanto nos estilos de vida puramente importados.
“O principal objetivo da ação social deixaria de ser a reprodução dos
padrões de consumo das minorias abastadas para ser a satisfação das
necessidades fundamentais do conjunto da população e a educação como
desenvolvimento das potencialidades humanas nos planos ético, estético e da
ação solidária.” (p. 65)
Além disso, é preciso rever, no plano mais geral e mundial,
algumas das orientações e objetivos
humanos, impondo-nos novos desafios:
“A criatividade humana, hoje
orientada de forma obsessiva para a inovação técnica a serviço da acumulação
econômica e do poder militar, seria reorientada para a busca do bem estar
coletivo...” (p.65)
7 – dimensão cultural do Desenvolvimento
C.f.
propõe-nos combater a “lógica dos instrumentos”, por meio da qual a dimensão
tecnológica se sobrepõe à cultural. Trata-se de uma revisão de fins e meios,
onde a dimensão cultural da política social deve prevalecer sobre as demais.
É um entendimento muito particular e interessante do que
seria a cultura, para C.F. (partes negritadas minhas):
“A cultura deve ser observada, simultaneamente, como um processo acumulativo e como um sistema, vale dizer, algo que tem uma
coerência e cuja totalidade não se explica cabalmente pelo significado das
partes, graças a efeitos de sinergia.” (p.71)
A orientação que imprimimos à nossa economia pode
submeter-nos a pressões destruidoras; é o que se observa quando a acumulação de
bens culturais é comandada do exterior – como exemplo, “certas formas de urbanização podem conduzir à destruição de um
importante patrimônio cultural.” (p. 71)
Essa força externa pode provocar rupturas que não são as
rupturas criativas, revolucionárias; por isso, é preciso manter uma continuidade
criativa, que não quebrem nossos sistemas de valores pela prevalência única da
lógica da acumulação.
8 – RISCO DE
INGOVERNABILIDADE
Neste último capítulo C.F. destaca que as forças sociais são
importantes contrapontos às forças econômicas. Tal como o Movimento dos
Trabalhadores Sem-Terra, que questionam a divisão patrimonial das terras.
Destaca também o papel integrador do Estado brasileiro, que
conseguiu unidade territorial e lingüística, mas também soube se colocar frente
ao desafio da industrialização. Cabe agora modificar a fundo o perfil da
distribuição da renda – difícil nestes tempos de globalização, mas que se
coloca agora como outro desafio. Ao mesmo tempo, promover uma política fiscal
que assegure a taxa de poupança. Estrategicamente coloca-se como objetivo o crescimento do mercado interno – o que
significa privilegiar os interesses da população, como um todo. Não se trata de
um fechamento da economia, diz C.F., mas de uma inserção no mercado
internacional em outras bases. Trata-se também de entender o crescimento
econômico de outro modo:
“...um índice que pretenda medir o bem estar médio da população terá
que ser utilizado com muita precaução.” (p.81)
O crescimento econômico tem que ser traduzido em termos de
crescimento pessoal e humano para toda a população. É preciso estar atento aos
números impostos pelos grupos de dominação que sustentam a atual estratégia
globalizante – por serem inadequados à nossa realidade, promovem seu
ocultamento.
Em resumo, com
este livro Celso Furtado identifica como agem as forças da globalização; embora não seja muito descritivo, aponta para
as linhas gerais de uma nova dominação – força modernizadora, reforçada por
meio dos novos instrumentos e técnicas da comunicação mundial. Propõe um novo
desafio: orientar a nossa industrialização visando a uma verdadeira estrutura
moderna – autônoma, privilegiando o mercado interno e de modo que não cause
rupturas destruidoras à nossa cultura, entendida num sentido amplo – como
processo e como sistema; na qual os valores a que faz referência são próprios,
não adotados de fora. Para isso deve contribuir um processo criativo também
endógeno, num ritmo de continuidade inovadora, mas coerente com nossa
identidade. Esse é um meio de nos contrapormos às forças geradoras de desigualdade
da globalização.
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