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quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Capitalismo Global


FURTADO, Celso. O Capitalismo Global. São Paulo, Ed. Paz e Terra, 1998
Celso Furtado e o capitalismo global.

Terminei de ler [em julho] o pequeno e ótimo livro do professor Celso Furtado, escrito no final dos anos 90. O conteúdo do texto extrapola em muito o que porventura expressa o título, pois C.F. faz uma verdadeira síntese de toda sua obra, suas influências, seu percurso profissional, sua preocupação com a economia brasileira e o respectivo desenvolvimento econômico. Por isso, recomendo fortemente a todos a sua leitura.
Sua preocupação mais recente, o capitalismo global – as forças e os efeitos da globalização incluídos – liga-se às suas antigas preocupações, isto é, o desenvolvimento econômico brasileiro, de uma forma bastante estreita. Na medida em que as forças da globalização impõem a sua vontade ao mundo — gerando desigualdade e, por conseguinte, pobreza — é preciso contrapor outras forças a elas, a fim de dirimir ou ao menos minorar o prejuízo que causa a globalização à população humana.
Preocupação com o humano. Apesar de economista, C.F. faz questão de destacar o homem dentro do sistema, não o homem em função do sistema. Por isso, diz “nunca pude compreender a existência de um problema estritamente econômico” (destaque na orelha do livro). Toda solução econômica tem que objetivar a liberação da força criadora do homem e o seu bem-estar – mas não de apenas uma parcela da humanidade, mas de toda ela. Por isso mesmo C.F. vai se voltar para o entendimento das necessidades dos mais pobres, das camadas mais desfavorecidas da população. Sua teoria do desenvolvimento econômico é toda orientada para este sentido. De uma forma mais geral, suas teses apontavam para a necessidade de um desenvolvimento industrial autônomo, que garantisse uma crescente homogeneização social. Não se entenda que com isso se quisesse chegar a uma igualdade total – talvez impossível e nem mesmo desejável - mas que pelo menos alcançasse os níveis dos países desenvolvidos, em uma tendência igualitária de consumo e dentro de padrões culturais próprios. Para isso, são requeridas políticas públicas, com a devida ação do Estado.
Era Celso Furtado um nacionalista? De certa forma sim, uma vez que faz uma defesa da preservação de uma identidade cultural nacional. O que seria essa identidade? A originalidade de C.F. reside justamente aí. Não há fórmula para uma identidade, nem ela deve ser imposta de cima para baixo, seja por parte das classes altas, seja por parte do Estado. Deve ela emergir de dentro das próprias forças econômicas autônomas – e portanto, modernas. O que tivemos desde sempre, afirma o professor, é as forças econômicas sempre vieram de fora, impondo-se e modernizando o país. Portanto, sempre fomos um país modernizado, não moderno. Sua teoria do desenvolvimento visava justamente romper com esse mecanismo, principal elemento do atraso e do subdesenvolvimento de nossas plagas. O modo como o país se inseriu no comércio internacional, desde sempre e a partir da colonização, é que imprimiu esse movimento. Sua observação e estudo sobre a Crise de 29 é que o fez pensar que tudo podia ser diferente. Nesse período o país se volta para dentro, desenvolve um mercado interno — essa é uma das chaves para a sustentação de um desenvolvimento industrial próprio e relativamente autônomo. Evidente que nenhum país pode se fechar, tentando ser completamente independente, mas possuir uma relativa autonomia faz com que a inserção no comércio internacional seja mais favorável, dentro do que se convencionou chamar de “vantagens comparativas” das trocas.
O livro se divide em oito capítulos curtos. A seguir um sumário de cada um deles.

1 – A LONGA MARCHA DA UTOPIA
C.F. descreve sua trajetória profissional, especialmente na CEPAL, onde conhece Raul Prebish. Naquele tempo, logo após a guerra, predominava a idéia de que os países periféricos deveriam se integrar à economia mundial por meio das “vantagens comparativas”; cada um com a sua a oferecer. Ora, num país de economia agrária o que se tem a oferecer é um produto primário. Assim, a inserção no mercado internacional pode ser inicialmente vantajosa, mas com o tempo, com a degradação dos meios de troca, esse modelo revela-se precário e desvantajoso.
Com o incentivo e a influência do pensamento de Raul Prebish, C.F. começa a pregar a ação do Estado no sentido de desenvolver a industrialização por meio da expansão do mercado interno. Política que foi eficaz dos anos 1930 aos anos 1970.
A ideia subjacente na tese de C.F. é que o capitalismo não se desenvolveu e não se expandiu antes que a massa salarial fosse valorizada e se expandisse também. Uma valorização crescente do capital leva à crise e ao colapso se o poder de compra não pode acompanhar a oferta.
Portanto, os problemas a serem enfrentados no Brasil foram - e são - de ordem política, pois a industrialização e a formação do mercado interno deram-se por meio de uma política econômica que se refletia no enfrentamento das elites agrárias, cujas políticas econômicas tendiam a valorizar o câmbio em detrimento de outras, tendendo a excluir também políticas de ordem marcadamente sociais.

2 – O NOVO CAPITALISMO
Aqui C.F. descreve o novo capitalismo (global), mais internacionalizado e mais independente dos controles diretos estatais, mas ao mesmo tempo com uma interdependência crescente entre os sistemas econômicos.
 “Quanto mais as empresas se globalizam, quanto mais escapam da ação reguladora do Estado, mais tendem a se apoiar nos mercados externos para crescer.” (p.29)
Tudo isso requer uma nova prática política: a imaginação criativa dos homens de governo, para fazer frente à complexa arquitetura econômica a que chegamos.
Comentário. De fato, C.F. tinha razão: o deslocamento de unidades inteiras de produção de um país para outro faz com os esforços sejam concentrados naquele país que recebe o “encargo” da produção. No entanto, cria-se uma dinâmica que não se dá mais em termos unilaterais, mas recíprocos.

3 – GLOBALIZAÇÃO E IDENTIDADE NACIONAL
O avanço da globalização impôs um dinâmico sistema internacional, ainda dominado pelas grandes empresas, mas agora sem o efetivo controle e regulação dos Estados. Voltamos à uma época anterior do capital em que sua difusão pelo mundo não contava com grandes regulações, apesar do apoio estatal.
O Brasil, ao aumentar seu esforço de integração a essa nova economia (ajuste externo) talvez tenha perdido o seu dinamismo de desenvolvimento, que até então se calcava na expansão do mercado interno, ao menos até meados dos anos 1990.
Para C.F. o grande desafio brasileiro é aumentar sua capacidade de autofinanciamento; cabe então recuperar a eficácia dos instrumentos de comando macroeconômico, pela ação política do Estado.  

4 – A SUPERAÇÃO DO SUBDESENVOLVIMENTO
Faz aqui uma exposição das várias formas possíveis (e empreendidas pelos países) de superação do desenvolvimento:
a)coletivização dos meios de produção; b)prioridade à satisfação das necessidades básicas da população; c)ganho de autonomia externa.
Em qualquer dessas formas é preciso haver vontade política para sua implementação. O objetivo tático tem sido sempre ganhar autonomia na ordenação dos objetivos econômicos, a fim de reduzir as desigualdades e promover o desenvolvimento. Aqui, a desigualdade é o principal obstáculo ao pleno desenvolvimento industrial. Por outro lado, esse desenvolvimento tem que se traduzir num enriquecimento da cultura e suas múltiplas formas. Isso exige “...forte vontade política, apoiada em amplo consenso social.” (p.54).

5 – REVISITANDO MEUS PRIMEIROS ENSAIOS TEÓRICOS
C.F. analisa a sua trajetória de suas idéias, especialmente a teoria do subdesenvolvimento. Suas reflexões levaram à conclusão que o subdesenvolvimento se deve a fatores culturais – o elevado padrão de consumo das classes dominantes, superior a nossas forças produtivas e manutenção da desigualdade justificada pela falta de interesse em produzir aqui esses produtos; além disso, essa classe, por conta do alto consumo, não acumula: só gasta [acrescente-se o fato de que muitos preferem investir parte do seu dinheiro em bens imóveis, imobilizando o capital].
A observação da ocorrência da Crise de 29 permitiu, segundo C.F., chegar a essas conclusões. De fato, uma vez que o país parou de importar tais produtos (devido à crise de produção e do sistema de comércio internacional) e passou gradativamente a produzir alguns deles aqui, o país obteve alto crescimento econômico. O que reflete um viés cultural: não havia interesse de produzir aqui o que era facilmente importado pelas elites e classes dominantes. Portanto, é preciso mudar o padrão de consumo geral por meio de políticas sociais – políticas públicas que procurem incluir a população excluída do grande consumo.
“...faz-se necessário modificar os padrões de consumo no quadro de uma ampla política social, e ao mesmo tempo elevar substancialmente a poupança,  comprimindo o consumo dos grupos de elevadas rendas.” (p.60)

6 – OS NOVOS DESAFIOS
Em termos gerais, nos países “mais avançados” a produção e o consumo se casam bem, isto é, “...o progresso técnico penetra sem tardança nas formas de produção, ao mesmo tempo que os padrões de consumo se modernizam...” (p.62); nos países “menos avançados” o consumo não encontra correspondência na produção, isto é, “...em regiões marginalizadas essa penetração se circunscreve inicialmente aos padrões de consumo, limitando seus efeitos à modernização do estilo de vida de segmentos da população.” (idem).
Podemos depreender assim que Celso Furtado entende que nos países modernos o progresso técnico é um fator de inovação e provocação de consumo, enquanto que nos países modernizados a rota se inverte: apenas com a adoção de um estilo de consumo – o consumo de determinados bens - é que a produção sofrerá modificação, apropriando-se de técnicas e inovações. Por isso é que C.F.  insiste no incentivo à criatividade ao nosso modo, sem insistir tanto nos estilos de vida puramente importados.
“O principal objetivo da ação social deixaria de ser a reprodução dos padrões de consumo das minorias abastadas para ser a satisfação das necessidades fundamentais do conjunto da população e a educação como desenvolvimento das potencialidades humanas nos planos ético, estético e da ação solidária.” (p. 65)

Além disso, é preciso rever, no plano mais geral e mundial, algumas  das orientações e objetivos humanos, impondo-nos novos desafios:
“A criatividade humana, hoje orientada de forma obsessiva para a inovação técnica a serviço da acumulação econômica e do poder militar, seria reorientada para a busca do bem estar coletivo...” (p.65)

7 – dimensão cultural do Desenvolvimento
C.f. propõe-nos combater a “lógica dos instrumentos”, por meio da qual a dimensão tecnológica se sobrepõe à cultural. Trata-se de uma revisão de fins e meios, onde a dimensão cultural da política social deve prevalecer sobre as demais.
É um entendimento muito particular e interessante do que seria a cultura, para C.F. (partes negritadas minhas):
“A cultura deve ser observada, simultaneamente, como um processo acumulativo e como um sistema, vale dizer, algo que tem uma coerência e cuja totalidade não se explica cabalmente pelo significado das partes, graças a efeitos de sinergia.” (p.71)
A orientação que imprimimos à nossa economia pode submeter-nos a pressões destruidoras; é o que se observa quando a acumulação de bens culturais é comandada do exterior – como exemplo, “certas formas de urbanização podem conduzir à destruição de um importante patrimônio cultural.” (p. 71)
Essa força externa pode provocar rupturas que não são as rupturas criativas, revolucionárias; por isso, é preciso manter uma continuidade criativa, que não quebrem nossos sistemas de valores pela prevalência única da lógica da acumulação.

8 – RISCO DE INGOVERNABILIDADE
Neste último capítulo C.F. destaca que as forças sociais são importantes contrapontos às forças econômicas. Tal como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, que questionam a divisão patrimonial das terras.
Destaca também o papel integrador do Estado brasileiro, que conseguiu unidade territorial e lingüística, mas também soube se colocar frente ao desafio da industrialização. Cabe agora modificar a fundo o perfil da distribuição da renda – difícil nestes tempos de globalização, mas que se coloca agora como outro desafio. Ao mesmo tempo, promover uma política fiscal que assegure a taxa de poupança. Estrategicamente coloca-se como objetivo o crescimento do mercado interno – o que significa privilegiar os interesses da população, como um todo. Não se trata de um fechamento da economia, diz C.F., mas de uma inserção no mercado internacional em outras bases. Trata-se também de entender o crescimento econômico de outro modo:
“...um índice que pretenda medir o bem estar médio da população terá que ser utilizado com muita precaução.” (p.81)
O crescimento econômico tem que ser traduzido em termos de crescimento pessoal e humano para toda a população. É preciso estar atento aos números impostos pelos grupos de dominação que sustentam a atual estratégia globalizante – por serem inadequados à nossa realidade, promovem seu ocultamento.  

Em resumo, com este livro Celso Furtado identifica como agem as forças da globalização;  embora não seja muito descritivo, aponta para as linhas gerais de uma nova dominação – força modernizadora, reforçada por meio dos novos instrumentos e técnicas da comunicação mundial. Propõe um novo desafio: orientar a nossa industrialização visando a uma verdadeira estrutura moderna – autônoma, privilegiando o mercado interno e de modo que não cause rupturas destruidoras à nossa cultura, entendida num sentido amplo – como processo e como sistema; na qual os valores a que faz referência são próprios, não adotados de fora. Para isso deve contribuir um processo criativo também endógeno, num ritmo de continuidade inovadora, mas coerente com nossa identidade. Esse é um meio de nos contrapormos às forças geradoras de desigualdade da globalização.

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