...a poesia é mais
filosófica e mais elevada do que a história, pois a poesia se ocupa mais do
universal, ao passo que a história se restringe ao particular... (Aristóteles, Poética, 1451b5)
Série turca que foi apresentada em forma de novela, tais como as nossas − quando nos bons tempos, em que se empregavam escritores novelistas de alto nível, como Dias Gomes.
Um bom argumento a favor da questão, que apresento já de pronto, é o de poder entrar em contato com uma dramaturgia e
uma cultura bem diferente da nossa. E por dramaturgia entendo aqui no
sentido amplo: a arte de representar − aquilo que Aristóteles denominava imitação
da ação (Poética - 1448). Em
outras palavras: o modo de representar dos atores, a expressão de seus rostos,
a linguagem corporal e a simbologia dos gestos; a direção da ação; o roteiro da
ação; a gravidade do drama, se realista, se romântico, se outra coisa.
Ressurrection é romântico, assim como a maior parte da
dramaturgia contemporânea ocidental. Ao menos para aquelas produções mais
comerciais, encenadas no formato de
narrativa mais clássico e onde a figura do heroi se destaca.
Esta série (Dirilis Ertugrul, no original turco) não foge muito às regras comerciais, mas é possível perceber algumas (boas) diferenças − e para isso é preciso paciência para assistir aos primeiros capítulos e avançar nas cinco temporadas, de mais ou menos cem capítulos cada. Como eu já disse, trata-se de uma novela feita para a TV. Há cenas de muito choro, muito sofrimento, muito drama mesmo; um alívio: não chega nem perto dos dramalhões mexicanos. E há momentos de muita ação, lutas bem coreografadas, tensão e suspense bem ao gosto Hollywood. Mas com toques de uma outra dramaturgia, bem menos canastrona que as norte-americanas.
Também como as
séries ocidentais, há aqui um forte conteúdo ideológico. E é menos pelo motivo
religioso que o político: uma certa ênfase
nacionalista com afirmação de valores culturais,
sociais e religiosos.
Os turcos aqui lutam por espaço, condicionados em uma geografia marcada por migrações constantes, seja pela busca de novos pastos, seja pelo crescimento demográfico. Nessa dinâmica, há o enfrentamento dos Cruzados (especialmente os Templários) de um lado e dos mongóis de outro, um a leste outro a oeste.
Ressurrection é uma produção
que se encaixa bem no projeto político de Erdogan, de edificação nacional, com apelo
religioso[1].
Mas há nuances. A
religião, embora uma constante, é apresentada de modo moderado, desfazendo visivelmente
alguns estereótipos criados e imaginados por nós, não muçulmanos. Presente também
a ciência, mais desenvolvida aqui neste mundo islâmico que no Ocidente Medieval
Cristão. Um bom momento dos episódios são as aparições de Ibn Arabi, sábio filósofo da Andaluzia, cuja obra ainda não está
totalmente estudada e elucidada, segundo a Wikipédia [2]. A conferir.
A série, enfim, é uma
ficção, uma bela suposição dos fatos que poderiam ter acontecido naqueles tempos (ao
menos onde nossas fontes alcançam). No final da bela abertura de apresentação da série há esta advertência: "histórias e personagens desta obra foram inspirados em nossa história". Quem é historiador ou domina o mínimo de história sabe ou precisa saber que as fontes, escritas ou arqueólogicas, sobre esses séculos XII e XIII são mínimas. E as existentes são, muitas vezes, duvidosas, com acréscimos ou supressões. Não há como saber ao certo seus detalhes.
Mesmo as aparições de ibn Arabi na história são uma incógnita. O que é certo para nós é que os turcos viviam em tribos, eram nômades e disputavam o espaço entre si; realizavam um comércio com o mundo muçulmano tanto quanto com o cristão e estabeleceram muitos entrepostos comerciais, garantidos por associações de tribos; combateram os Cruzados, a oeste, quanto os Mongóis, a leste; combatendo estas frentes, unificaram-se sob Osman, filho de Ertugrul ("Arturo" é o som que parece ouvirmos), garantiram a ocupação de seus territórios e avançaram, durante séculos, rumo ao Império Bizantino, fazendo-o cair sob Mohamed, o então sultão no século XV. Se Osman é mais importante que Ertugrul, não se pode duvidar que este preparou o terreno para a unidade dos turcos, sendo assim um grande líder guerreiro.
A vantagem de
uma série assim tão longa é a de perceber a complexidade do processo. Toda
construção de uma identidade é uma elaboração lenta, admite um toque
artificioso, e necessita de um discurso preciso e eficiente em torno da
legitimidade da união. A montagem da série em forma de novela permite-nos a
imagem desse quadro.
Mas vale a advertência deste humilde historiador: a história é mais modesta que sua crônica, mas muito mais complexa que seu resumo.
Por tudo isso vale
a pena assistir à série. Até o fim. E capítulo por capítulo.
Notas.
[1] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-44599658
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Ibn_Arabi
Site confiáveis sobre história islâmica e islamismo:
https://historiaislamica.com/pt/quem%20foi%20ertugrul/
https://iqaraislam.com/o-califado-fatimida
https://iqaraislam.com/licoes-ertugrul
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