LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Globo, 2007 (1918).
Urupês, 1918. Primeira obra de Lobato, mas na
verdade, uma reunião de contos e artigos
já escritos desde 1914, quando já enviava cartas para uma seção do Jornal O Estado
de São Paulo. Os contos, publicados numa revista −̶ Revista
do Brasil, 1916 −̶ seriam reunidos, juntos aos
artigos, no livro Urupês. Obra que venderia bem, a considerar os números
de época, especialmente após uma menção à figura do caboclo por Rui Barbosa
numa de suas palestras.
Uma leitura atenta do conto "Urupês"
não escapa à consideração de um juízo no mínimo preconceituoso de Lobato. Não é
possível, no contexto da descrição, identificar uma intenção puramente
ficcional. Mesmo porque "Urupês" foi enviado como carta ao jornal O
Estado, em seguida de "Velha praga". Nesta, atenta para o problema
das queimadas; naquela, atribui a culpa ao caboclo. Embora possua uma aparência
de um conceito sociológico, devido aos traços acentuados da figura do caboclo,
na verdade trata-se de um prejuízo, pois a descrição é feita sem nenhuma
reconstrução, qualquer que seja ela. E, como dissemos, o caráter ficcional é
irrelevante, posto que também não há nenhuma construção. O conto é exposição
viva da observação direta do autor, quase nada mais. Se houver qualquer dúvida
quanto a isso, que se leia atentamente, repito. Mas o próprio Lobato nos diz:
"Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na
realidade!"
(p.170)
E por aí vai. Muito bem escrito, observe-se.
Assim como todos os outros contos. Mas neste em especial é possível identificar
algumas ideologias de época, ainda fortemente vigentes, tal como a da
degeneração das raças. Jeca é um caboclo, mestiço de branco com índio, segundo
tal pensamento. E da "mistura de raças" teria se sucedido essa figura
que Lobato tanto execra. E o pior: o sangue branco teria origem também impura.
Vejamos este trecho:
"Dia virá em que os veremos [os caboclos],
murchos de prosápia [orgulho], confessar o verdadeiro avô:
−̶ 'Um dos
quatrocentos de Gedeão trazidos por Tomé de Souza num barco daqueles tempos,
nosso mui nobre e fecundo "Mayflower".' (p.169)
Gedeão é uma figura bíblica, um dos juízes de
Israel que teria libertado seu povo da invasão estrangeira, à frente de
trezentos seguidores (Juízes, cap. 7 da Bíblia). Lobato faz coincidir, embora
mencione quatrocentos, uma e outra coisa, simbólica e real −̶ os que
aqui desembarcaram, muitos em degredo, eram descendentes de judeus, agora
denominados "cristãos novos". É essa assimilação que sustenta também
a mítica dos trezentos ("trezentos deputados bandidos", etc) e a
mítica de que aqui se desenvolveu uma colônia de bandidos, já que de
"degredado" para "ladrão" é um deslocamento muito fácil. "Nosso
mui nobre e fecundo" é uma expressão de plena ironia cínica.
Obedecendo à "lei do mínimo esforço" o
caboclo, segundo Lobato, é refratário ao progresso:
"Seus remotos avós [os tais quatrocentos de Gedeão] não gozaram
maiores comodidades. Seus netos não meterão quarta perna ao banco. Para quê?
Vive-se bem sem isso."
(p.171)
Para Lobato o caboclo é tão preguiço que constrói
um banquinho com apenas três pernas, a fim de evitar maiores esforços. E
reforça logo em seguida:
"Da terra só quer a mandioca, o milho e a cana. A primeira, por
ser um pão já amassado pela natureza. Basta arrancar uma raiz e deitá-la nas
brasas. Não impõe colheita, nem exige celeiro. O plantio se faz com um palmo de
rama fincada em qualquer chão. Não pede cuidados. Não a ataca a formiga. A
mandioca é sem-vergonha." (p.172)
O caboclo, diz Lobato, é tão degenerado que seria
digno de um estudo de Silvio Romero. Bem conhecemos este: defensor do
evolucionismo à Spencer, sua obra é praticamente toda calcada nessa filosofia
[1].
Por fim, o livro Urupês, diferentemente do
conto, nos impõe outras observações. E outras contradições emergem, inclusive
contra o próprio conto homônimo. Mas esta, bem como a evolução intelectual de
Monteiro Lobato, é outra história. O que importa reter aqui é que este conto
"Urupês" é representativo de um novo marco no debate intelectual em
torno da mestiçagem. Debate que se perfilaria por todo o século XX, quiçá ainda
entre nós.
Notas.
[1]SCHWARCZ,
Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras,
1993. Cap. 1.
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