O Morcego
Uma vez fomos morar um pouco mais para o interior, Vargem Grande Paulista, que naquele
tempo ainda era bem pequena, e acho que não mudou muito. Minha filha,
Catharina, devia ter uns dois anos, acredito. A casa era de tijolo, com reboco.
O piso era também de tijolo, assentado e bem unido. Não havia forro. Fazia um
frio tremendo à noite. Um dia chego da faculdade e após colocar a Catha para
dormir em seu quarto, entro no meu, para fazer o mesmo. A esposa não havia
chegado ainda. Leitura antes de dormir. Luz acesa. Sinto algo roçar no meu
cabelo. De novo. E eis que o morcego se apresenta, "voando" por sobre
minha cabeça. Bem, o resto encontrei aí nesse poema de Augusto dos Anjos. Deparei-me
com ele de novo recentemente e lembrei do tal morcego, que se instalou nos
interstícios do teto sem forro. A propósito apelidei-o de Lincoln. Talvez em homenagem a aquele
presidente americano.
O morcego
Meia
noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu
Deus! E este morcego! E, agora, vêde:
Na
bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me
a goela ígneo e escaldante molho.
"Vou
mandar levantar outra parede..."
—
Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E
olho o tecto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente
sobre a minha rede!
Pego
de um pau. Esforços faço. Chego
A
tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que
ventre produziu tão feio parto?!
A
Consciência Humana é este morcego!
Por
mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente
em nosso quarto!
Augusto
dos Anjos
Fonte: Eu e outras
poesias. Augusto dos Anjos. L&PM Pocket, p. 16
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