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sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O Homem Elefante. David Lynch, 1980.
A resenha abaixo não dá revelação sobre o final da obra.

O filme de David Lynch é uma obra de arte, tanto em texto, imagem, como em reconstituição histórica. Pode se afirmar que o século XIX está bem retratado ali: o barulho do bairro industrial (periferia), na mistura de todos os ruídos, inclusive música; a sujeira; o carvão e energia; chaminés fumarentas e paisagem escura, enegrecida pela fuligem; a vida burguesa representada pelo médico; a preocupação excessiva com a ciência. Esta última, podemos certamente considerar, a idiossincrasia mais acentuada daquele obscuro século XIX.
Por meio de uma narrativa simples, mas de alta densidade, com imagética de forte carga simbólica, D. Lynch nos apresenta o "Homem Elefante", que no percurso de sua saga de anti-herói, por meio de uma antiapresentação, se dá a conhecer por John Merrick, um "Ser Humano".
Dificilmente eu conseguiria explorar aqui todos os detalhes simbólicos do filme, pois isso seria trabalho para um artigo grande. No entanto, há um em particular que denota o forte moralismo vigente - ainda - no século XIX. Ao entrar no circo, na parte de "Freaks" - as aberrações, o médico - Dr. Treves, passa por uma placa onde está escrito: "Fruto do pecado original". Ao lado, um feto ou um bebê com deformidades num pote com líquido de conservação. Pecado original, nestes termos, foi o homem ter conhecido o sexo com a mulher, tendo como resultado um "monstrinho".  Sim, claro, é uma interpretação restrita e moralista das escrituras, mas bem ao gosto do moralismo do XIX, bem ao gosto da era vitoriana, do mundo conhecido como "civilizado" e onde a sexualidade é muitíssimo vigiada e circunscrita.
Uma outra simbologia: com a máquina. Na sala de cirurgia um homem sendo operado porque ocorreu um acidente com uma máquina na indústria. Dr. Treves diz mais ou menos assim, com relação às máquinas: "...não podemos confiar nelas...". De fato, uma outra mazela do XIX, mas que no século XX se tornaria algo banalizada, apesar de mais trágico: acidentes com máquinas, resultando sempre, é claro, em prejuízo para a vida. A vantagem dos homens no XIX, com relação ao XX, é que lá ainda havia uma séria desconfiança na máquina. O século XX enterrou essa desconfiança - ao menos ideologicamente, ainda que não totalmente no senso prático - deixando de lado qualquer questionamento sobre a utilidade da máquina e da técnica. Preocupação destacada no texto dessa semana, de Peixoto Júnior, sobre a questão do homem-ciborgue, uma espécie de novo monstro hodierno.
Enfim, o que temos, é John Merrick, o "homem elefante", nascido com uma enorme deformidade por todo o corpo, que é "apresentado", "mostrado" como atração de um circo, mantido por um indiferente proprietário, que o vê apenas como um negócio. Nenhum sentimento em que haja algum afeto.
Uma vez descoberto pelo médico, Dr. Treves, John é arrancado dali e levado a um hospital, para tratamento de suas enfermidades. Há um sentimento de compaixão do médico para com John, inicialmente. O médico chega a comover-se tanto que se põe a chorar.
 No entanto,  uma vez que este é tratado como um "achado" pelo médico, "mostrado" novamente - agora a uma nova platéia, de homens da ciência - a relação parece deslocar-se para o interesse profissional. A exibição do "homem-elefante" para a platéia de cientistas: mudou algo para a platéia de circo? apenas um braço e o órgão genital, "normais". Parece haver aqui uma inversão: no circo, a curiosidade era pela deformidade; na platéia de cientistas, pela normalidade.
Ocorre que praticamente todos se interessam por John como um espetáculo: a alta sociedade, os artistas, a própria multidão - representada pelo vigia do hospital e seus "clientes".
Uma vez que demonstrou ter inteligência e discernimento sobre as coisas, John desperta cada vez mais interesse. A medida que vai se "civilizando", isto é, adotando as convenções sociais mais "normais" nos relacionamentos com os outros, vai sendo cada vez mais aceito, vai se integrando. Ganha admiração até mesmo da rainha Vitória, que agora o vê como um digno cidadão inglês. É comparado a Romeu (de Romeu e Julieta, de Shakespeare) pela atriz Kendal, numa espécie de atração platônica por John. E apesar de suas deformidades, "demonstra" grande habilidade manual, ao fazer uma réplica em papel da catedral que observa da janela. A associação com o animal, o elefante, não se dá apenas pela aparência das deformidades - também no que diz respeito à memória: John possui uma boa memória, memória de elefante, demonstrada pela recitação de partes da Bíblia e naquele momento com a atriz, quando decora uma fala de Romeu na peça e a declama. Por isso, para a atriz, John se tornou o "Romeu".
A parte do espetáculo continua - o "homem elefante" ainda é "mostrado", como advertiu a enfermeira-chefe ao Dr. Treves, numa determinada passagem. Interessante sua descrição a respeito do sentimento por John: cuidava dele, portanto, também se importava com ele - mas à sua maneira. Daí o médico refletir sobre tudo que ocorreu. Por isso mesmo, posteriormente, o médico vai refletir e fazer uma autocrítica. Evidente, não podemos entrar nos pensamentos da personagem, mas podemos até admitir que havia algo de monstro no médico, tal como Mr. Hyde em Dr. Jekyll, fazendo uma citação não muito honrosa.
Podemos arriscar a dizer que John passa a ser mais aceito por duas coisas: primeiro, quando sua forma vai sendo assimilada pelos outros - o diferente, o que causa estranheza, passa a ser melhor compreendido quando se descobre a origem das deformidades, da feiura; segundo, quando demonstra uma "normalidade" interior, uma ontologia própria ao ser humano - lê, aprecia teatro, é "cavalheiro e refinado"; uma série de coisas que já estavam contidas nele, mas não "demonstradas". Podemos pensar também naquela inversão de que fala José Gil, no texto de Peixoto Junior, o "interior abortado" do monstro, mas mostrando que ali há uma alma. E realmente John mostra a sua, expressada por ele mesmo, quase ao final do filme, quando retorna para a Inglaterra: cercado por curiosos que o confundem com um criminoso, acossado, ele grita: "eu sou um ser humano". Nada mais que justa tal reivindicação naquele intolerante século XIX.
O monstro havia mesmo de ser mostrado, a todas as platéias, para que toda sua condição fosse e pudesse ser interpretada em toda sua multiplicidade, codificada em toda sua singularidade, ressignificada, para que, ao fim, o monstruoso fosse apenas uma forma, uma externalidade, e explodisse dali de dentro o humano para as inteligências exteriores. Acredito que essa tenha sido a mensagem mais forte do filme. Talvez outras, como a de mostrar as pequenas monstruosidades que podemos cometer - cada um à sua moda, mostrando seu próprio monstro interior.

Fonte histórica: BRESCIANI, Maria Stella M. Londres e Paris no século XIX: O espetáculo da pobreza. São Paulo, Brasiliense, 1994 (1982);
Fonte citada: GIL, José. Monstros. Lisboa, Relógio D'Água Editores, 2006.

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