O Homem Elefante.
David Lynch, 1980.
A resenha abaixo não dá revelação sobre o final da obra.
O filme de David
Lynch é uma obra de arte, tanto em texto, imagem, como em reconstituição
histórica. Pode se afirmar que o século XIX está bem retratado ali: o barulho
do bairro industrial (periferia), na mistura de todos os ruídos, inclusive
música; a sujeira; o carvão e energia; chaminés fumarentas e paisagem escura,
enegrecida pela fuligem; a vida burguesa representada pelo médico; a
preocupação excessiva com a ciência. Esta última, podemos certamente
considerar, a idiossincrasia mais acentuada daquele obscuro século XIX.
Por meio de uma
narrativa simples, mas de alta densidade, com imagética de forte carga
simbólica, D. Lynch nos apresenta o "Homem Elefante", que no percurso
de sua saga de anti-herói, por meio de uma antiapresentação, se dá a conhecer
por John Merrick, um "Ser Humano".
Dificilmente eu
conseguiria explorar aqui todos os detalhes simbólicos do filme, pois isso
seria trabalho para um artigo grande. No entanto, há um em particular que
denota o forte moralismo vigente - ainda - no século XIX. Ao entrar no circo,
na parte de "Freaks" - as aberrações, o médico - Dr. Treves, passa
por uma placa onde está escrito: "Fruto do pecado original". Ao lado,
um feto ou um bebê com deformidades num pote com líquido de conservação. Pecado
original, nestes termos, foi o homem ter conhecido o sexo com a mulher, tendo
como resultado um "monstrinho".
Sim, claro, é uma interpretação restrita e moralista das escrituras, mas
bem ao gosto do moralismo do XIX, bem ao gosto da era vitoriana, do mundo
conhecido como "civilizado" e onde a sexualidade é muitíssimo vigiada
e circunscrita.
Uma outra
simbologia: com a máquina. Na sala de cirurgia um homem sendo operado porque
ocorreu um acidente com uma máquina na indústria. Dr. Treves diz mais ou menos
assim, com relação às máquinas: "...não
podemos confiar nelas...". De fato, uma outra mazela do XIX, mas
que no século XX se tornaria algo banalizada, apesar de mais trágico: acidentes
com máquinas, resultando sempre, é claro, em prejuízo para a vida. A vantagem
dos homens no XIX, com relação ao XX, é que lá ainda havia uma séria
desconfiança na máquina. O século XX enterrou essa desconfiança - ao menos
ideologicamente, ainda que não totalmente no senso prático - deixando de lado
qualquer questionamento sobre a utilidade da máquina e da técnica. Preocupação
destacada no texto dessa semana, de Peixoto Júnior, sobre a questão do
homem-ciborgue, uma espécie de novo monstro hodierno.
Enfim, o que temos,
é John Merrick, o "homem elefante", nascido com uma enorme
deformidade por todo o corpo, que é "apresentado",
"mostrado" como atração de um circo, mantido por um indiferente
proprietário, que o vê apenas como um negócio. Nenhum sentimento em que haja
algum afeto.
Uma vez descoberto
pelo médico, Dr. Treves, John é arrancado dali e levado a um hospital, para
tratamento de suas enfermidades. Há um sentimento de compaixão do médico para
com John, inicialmente. O médico chega a comover-se tanto que se põe a chorar.
No entanto,
uma vez que este é tratado como um "achado" pelo médico,
"mostrado" novamente - agora a uma nova platéia, de homens da ciência
- a relação parece deslocar-se para o interesse profissional. A exibição do
"homem-elefante" para a platéia de cientistas: mudou algo para a
platéia de circo? apenas um braço e o órgão genital, "normais".
Parece haver aqui uma inversão: no circo, a curiosidade era pela deformidade;
na platéia de cientistas, pela normalidade.
Ocorre que
praticamente todos se interessam por John como um espetáculo: a alta sociedade,
os artistas, a própria multidão - representada pelo vigia do hospital e seus
"clientes".
Uma vez que
demonstrou ter inteligência e discernimento sobre as coisas, John desperta cada
vez mais interesse. A medida que vai se "civilizando", isto é,
adotando as convenções sociais mais "normais" nos relacionamentos com
os outros, vai sendo cada vez mais aceito, vai se integrando. Ganha admiração
até mesmo da rainha Vitória, que agora o vê como um digno cidadão inglês. É
comparado a Romeu (de Romeu e Julieta, de Shakespeare) pela atriz Kendal, numa
espécie de atração platônica por John. E apesar de suas deformidades,
"demonstra" grande habilidade manual, ao fazer uma réplica em papel
da catedral que observa da janela. A associação com o animal, o elefante, não
se dá apenas pela aparência das deformidades - também no que diz respeito à
memória: John possui uma boa memória, memória de elefante, demonstrada pela
recitação de partes da Bíblia e naquele momento com a atriz, quando decora uma
fala de Romeu na peça e a declama. Por isso, para a atriz, John se tornou o "Romeu".
A parte do
espetáculo continua - o "homem elefante" ainda é
"mostrado", como advertiu a enfermeira-chefe ao Dr. Treves, numa
determinada passagem. Interessante sua descrição a respeito do sentimento por
John: cuidava dele, portanto, também se importava com ele - mas à sua maneira.
Daí o médico refletir sobre tudo que ocorreu. Por isso mesmo, posteriormente, o
médico vai refletir e fazer uma autocrítica. Evidente, não podemos entrar nos
pensamentos da personagem, mas podemos até admitir que havia algo de monstro no
médico, tal como Mr. Hyde em Dr. Jekyll, fazendo uma citação não muito honrosa.
Podemos arriscar a
dizer que John passa a ser mais aceito por duas coisas: primeiro, quando sua
forma vai sendo assimilada pelos outros - o diferente, o que causa estranheza,
passa a ser melhor compreendido quando se descobre a origem das deformidades, da
feiura; segundo, quando demonstra uma "normalidade" interior, uma
ontologia própria ao ser humano - lê, aprecia teatro, é "cavalheiro e
refinado"; uma série de coisas que já estavam contidas nele, mas não
"demonstradas". Podemos pensar também naquela inversão de que fala
José Gil, no texto de Peixoto Junior, o "interior abortado" do
monstro, mas mostrando que ali há uma alma. E realmente John mostra a sua,
expressada por ele mesmo, quase ao final do filme, quando retorna para a
Inglaterra: cercado por curiosos que o confundem com um criminoso, acossado,
ele grita: "eu sou um ser humano".
Nada mais que justa tal reivindicação naquele intolerante século XIX.
O monstro havia
mesmo de ser mostrado, a todas as platéias, para que toda sua condição fosse e
pudesse ser interpretada em toda sua multiplicidade, codificada em toda sua
singularidade, ressignificada, para que, ao fim, o monstruoso fosse apenas uma
forma, uma externalidade, e explodisse dali de dentro o humano para as
inteligências exteriores. Acredito que essa tenha sido a mensagem mais forte do
filme. Talvez outras, como a de mostrar as pequenas monstruosidades que podemos
cometer - cada um à sua moda, mostrando seu próprio monstro interior.
Fonte histórica: BRESCIANI, Maria Stella M. Londres e Paris no século
XIX: O espetáculo da pobreza. São
Paulo, Brasiliense, 1994 (1982);
Fonte citada: GIL, José. Monstros. Lisboa, Relógio D'Água Editores, 2006.
Fonte citada: GIL, José. Monstros. Lisboa, Relógio D'Água Editores, 2006.
Nenhum comentário:
Postar um comentário