Literatura e Gramática.
CAMPOS, Carmen Lucia da Silva & SILVA, Nilson Joaquim (orgs.). Lições de Gramática para quem gosta de
Literatura. São Paulo, Panda Books, 2007.
Há muitos que gostam
de literatura. De gramática, nem tantos. Talvez gostar, gostar mesmo, só os
professores...Porém este livro trata dos dois assuntos, associando-os, de um
modo divertido e sob uma perspectiva bem irônica. São textos e crônicas dos
melhores de nossa língua, antigos e modernos, desde um Machado de Assis e um
Artur Azevedo, passando por Raquel de Queiroz, até Moacyr Scliar e Marcelo
Duarte (aquele do "Loucos por Futebol" e o "Guia dos
Curiosos"). Fecha-se o circuito com Paulo Leminski, num texto fantástico.
E os temas são os
mais variados: os estrangeirismos, analisados por Machado de Assis (!) e Rachel
de Queiroz; o internetês, visto por Rosana Hermann; o uso do plural, por Ivan
Jaf; os neologismos, estudado por Walcyr Carrasco; os vícios de linguagem, tal
como o gerundismo - saborosamente descrito por Ruy Castro; o uso do pleonasmo,
explorado por Marcelo Duarte; termos difíceis de explicar...às crianças, por
Lourenço Diaféria; a língua falada e a língua escrita, por Luis Fernando
Verissimo; a pontuação, por Moacyr Scliar; Ignácio de Loyola Brandão explica o
significado de duas novas palavras: "poblema" e "pobrema" e
outros.
Destaque para duas
crônicas. Uma de Artur Azevedo, "Plebiscito". Outra de Paulo
Leminsky, "Meu professor de análise sintática". Na primeira, temos
uma história sobre o uso "envergonhado" do dicionário - considerado
popularmente pelos brasileiros como o "pai dos burros" - expõe de
modo sutil nosso comportamento diante desse grosso compêndio da língua
portuguesa. O segundo, de Leminski, trata de um impulso que talvez já tenhamos
tido: quem não quis "matar" seu professor de gramática durante as
lições de análise sintática?
Recomendo fortemente
a leitura deste pequeno livro de 100 páginas, com textos ótimos, inclusive para
uso em sala de aula.
Abaixo,
o curto texto de Leminski - que além de tudo, exprime fortemente o concretismo:
MEU PROFESSOR DE ANÁLISE SINTÁTICA
Meu
professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente.
Um
pleonasmo, o principal predicado da sua vida,
regular
como um paradigma da 1ª conjugação.
Entre
uma oração subordinada e um adjunto adverbial,
ele
não tinha dúvidas: sempre achava um jeito
assindético
de nos torturar com um aposto.
Casou
com uma regência.
Foi
infeliz.
Era
possessivo como um pronome.
E
ela era bitransitiva.
Tentou
ir para os EUA.
Não
deu.
Acharam
um artigo indefinido em sua bagagem.
A
interjeição do bigode declinava partículas expletivas,
conectivos
e agentes da passiva, o tempo todo.
Um
dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.
O
texto de Artur Azevedo (jornalista no Império):
PLEBISCITO
A cena passa-se em
1890.
A família está toda
reunida na sala de jantar.
O senhor Rodrigues
palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um
abade.
Dona Bernardina, sua
esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.
Os pequenos são
dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele,
encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas
diárias.
Silêncio
De repente, o menino
levanta a cabeça e pergunta:
— Papai, que é
plebiscito?
O senhor Rodrigues
fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
O pequeno
insiste:
— Papai?
Pausa:
— Papai?
Dona Bernardina
intervém:
— Ó seu Rodrigues,
Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.
O senhor Rodrigues
não tem remédio senão abrir os olhos.
— Que é? que desejam
vocês?
— Eu queria que
papai me dissesse o que é plebiscito.
— Ora essa, rapaz!
Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?
— Se soubesse, não
perguntava.
O senhor Rodrigues
volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:
— Ó senhora, o
pequeno não sabe o que é plebiscito!
— Não admira que ele
não saiba, porque eu também não sei.
— Que me diz?! Pois
a senhora não sabe o que é plebiscito?
— Nem eu, nem você;
aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
— Ninguém, alto lá!
Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
— A sua cara não me
engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A
gente está esperando! Diga!...
— A senhora o que
quer é enfezar-me!
Mas, homem de Deus, para que você não há de
confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já
outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário.
Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!
— Proletário —
acudiu o senhor Rodrigues — é o cidadão pobre que vive do trabalho mal
remunerado.
— Sim, agora sabe
porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito
sem se arredar dessa cadeira!
— Que gostinho tem a
senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!
— Oh! ridículo é
você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não sei, Manduca, não sei o
que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho.
O senhor Rodrigues
ergue-se de um ímpeto e brada:
— Mas se eu sei!
— Pois se sabe,
diga!
— Não digo para me
não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a
força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!
E o senhor
Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu
quarto, batendo violentamente a porta.
No quarto havia o
que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de
laranja e um dicionário...
A menina toma a
palavra:
— Coitado de papai!
Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
— Não fosse tolo —
observa dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é
plebiscito!
— Pois sim — acode
Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela
discussão — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.
— Sim! Sim! façam as
pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! Duas pessoas que
se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito!
Dona Bernardina dá
um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:
— Seu Rodrigues,
venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.
O negociante
esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente.
Ele entra, atravessa
a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.
— É
boa! — brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio — é muito boa! Eu! eu
ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...
A mulher e os filhos
aproximam-se dele.
O homem continua num
tom profundamente dogmático:
— Plebiscito...
E olha para todos os
lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
— Plebiscito é uma
lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.
— Ah! — suspiram
todos, aliviados.
— Uma lei romana,
percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...