HABERMAS, Jürgen. Fé e Saber. Trad. Fernando Costa Mattos. Iª.ed — São Paulo: Editora Unesp, 2013 (Berlim, 2001).
Logo após o 11 de Setembro de 2001, com a derrubada das Torres Gêmeas, Habermas se propôs a repensar as questões que envolvem o sagrado, pois não basta simplesmente condenar aquela ação como "bárbara", a despeito de criminosa. É preciso compreender o fenômeno como sempre Habermas e a Teoria Crítica tentaram fazer. É preciso compreender a motivação dos que levaram a fazer aquilo, a empreender um tal projeto que se constituiu num acontecimento que fez tremer as bases da modernidade. Ou seja: para que isso não possa ocorrer novamente não basta rejeitar e ou ignorar, como faz o discurso político secularizado e racionalizado, as bases do sagrado que fundamentam a religiosidade. E é preciso compreender, portanto, as bases do fundamentalismo. E é preciso, além de tudo, compreender as razões do outro, uma atitude que envolve a tolerância. Por isso, a resposta política ao 11 de Setembro, isto é, a "Guerra ao Terror" é equivocada, pois não empreende nenhum esforço de compreensão ou de tolerância. Pelo contrário, permite apenas aumentar a escalada de violência. Daí a sua asserção [grifo meu]:
"A 'guerra
contra o terror' não é uma guerra, e no terrorismo também se expressa um choque
desastrosamente silencioso de dois mundos que precisariam desenvolver uma
linguagem comum, para além da violência muda dos terroristas e dos mísseis.
Em vista de uma globalização imposta por meio de mercados sem limites, muitos
de nós têm a esperança de um retorno político sob outra forma — não a forma
hobbesiana original de um Estado de segurança globalizado, ou seja, com
dimensões de polícia... mas a de um poder mundial de configuração
civilizadora." (p.4)
É preciso ir além
da secularização pura e simples, e do fundamentalismo, extremamente
conservador. É preciso, na percepção compreensiva de Habermas um papel
civilizador não nos moldes anteriores dos do Ocidente, mas um modelo que leve
em conta um "terceiro partido", entre ciência e religião, um modelo
pautado no que ele chama de "senso comum democratamente esclarecido".
Por um lado as
religiões devem renunciar à imposição violenta de sua fé. Isso equivale também,
sob nosso ponto de vista, a abandonar ou ao menos tentar discutir assuntos
importantes e que estão na pauta do conservadorismo.
Por outro lado,
nossa sociedade que estabeleceu uma secularização também de forma violenta, ou
seja, a violentar a "autocompreensão pessoal", não pode vir a ser um
bom modelo de sociedade.
O que Habermas quer
dizer que essas duas faces da nossa civilização ocidental atuam de forma a
desprezar uma à outra dessas duas faces, sem mediações.
"A crença
cientificista em uma ciência que possa um dia não apenas complementar, mas
substituir a autocompreensão pessoa por uma descrição objetivante, não é
ciência, é má filosofia." (p.13).
O Estado democrático
e liberal, secularizado, legitimou-se nas bases de uma tradição religiosa que
há muito profanou-se, isto é, secularizou-se, buscando uma universalização que
desprezou e até mesmo excluiu os argumentos religiosos. A resultante não
poderia ser outra: um dos polos, isto é, a própria religião, apega-se aos seus
pontos mais ortodoxos e conservadores. Portanto:
"...o
estabelecimento de uma fronteira controversa deve ser compreendido como uma
tarefa cooperativa em que se exija dos dois lado aceitar também a perspectiva
do outro." (p.16)
E para isso, é
importante aquela proposta do senso comum democratamente esclarecido:
"O senso comum
democraticamente esclarecido não é algo singular [isolado], mas algo que
descreve a constituição mental de uma esfera pública com muitas vozes.
As maiorias seculares não devem chegar a conclusões ... antes de dar ouvidos à
objeção dos oponentes que se sentem lesados em suas convicções religiosas; elas
devem considerar essa objeção como uma espécie de voto suspensivo e verificar o
que podem aprender com isso." (p.16)
Isso está nas bases
do que Kant empreendeu, no que diz respeito à autonomia do ser.
Linguagens
seculares, diz Habermas, que puramente eliminam aquilo em que se acreditava,
causam perturbação (p.18). É essa "perturbação" que vai se
cristalizar nos fundamentalismos.
Comentário.
Habermas ocupa-se
de uma sociedade secularizada onde a religião não é central, ao menos como
proposta de um Estado liberal e democrático. Trata-se da sociedade europeia. E daquele
tempo, início dos anos 2000, onde a integração e a tolerância estavam em
pauta. Valeria para hoje? Talvez lá,
sim. E para a nossa sociedade ocidental "latina"? E mesmo para a
"anglo-saxônica"? Não é certo que nestas últimas a religião —
especialmente como fundamentalismo — tomou, nos últimos anos, uma centralidade
preocupante? Haja vista os negacionismos atuais. Negacionismos estes aos quais
a própria sociedade da Europa não escapa. Então teríamos uma situação reversa:
o secularismo não é dominante, ao menos não na compreensão da cultura
intermediária. E invade cada vez mais a razão de Estado, como vimos na
culminância da epidemia Covid-19. Estabelecer uma linguagem que permitisse
acesso a uma e outra esfera, como propõe H., seria o ideal. Mas perguntamos:
como? É preciso criar tal linguagem e talvez fosse o agir comunicativo que devesse mudar da forma como o estamos —
se estamos — realizando. O diálogo entre surdos-mudos continua sem essas
pontes. Mas Habermas está certo que devemos e precisamos encontrar esse
"senso comum democraticamente esclarecido". E talvez seja essa mesma
a principal tarefa do agir comunicativo, embora esse próprio agir não possa se
originar, em minha opinião, apenas de simples diálogo, sem perceber e levar em
conta os interesses conflitantes das sociedades em questão — não só em seu
interior, mas nas relações que elas estabelecem entre os Estados. Habermas ainda confia bastante em uma
sociedade iluminada pela "razão esclarecida" assentada em bases
democráticas. Mas talvez seja o caso, também, de expandir em muito, em todos os
cenários sociais, a materialidade desse exercício democrático, tanto em suas
acepções formais quanto reais: tolerância, respeito, mas também acesso à riqueza
e prestígio social.
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