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quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Servidores - Parte III: a Estrutura do Estado

I
Há muitas formas de o Estado se estruturar política e juridicamente, no capitalismo, funcionando e garantindo o status quo −̶   isto é, o poder dos grandes grupos e complexos econômico-financeiros. Já que foi mencionado, vale distinguir: um complexo econômico é a soma de todas as instituições, órgãos, empresas e pessoas que giram em torno de um interesse econômico específico. Um grupo econômico interage a partir de um complexo. Nessa minha descrição de mundo podem existir tantos complexos quanto possíveis dentro de um determinado sistema econômico −̶   no caso, o capitalismo −̶   e tantos quantos possíveis dentro dos limites de um Estado. Os grupos, internos a esses complexos, também podem variar. Vai depender da especificidade de cada sistema dentro de cada Estado. Nosso caso Brasil encontraremos, via de regra, poucos grupos dentro de cada complexo: de um capitalismo cuja tendência é fortemente monopolista é o que se espera.

Essa conceituação permite transcender a da teoria marxista −̶   não sem ela −̶   em alguns pontos: os complexos econômicos podem não buscar necessariamente o lucro capitalista pela forma mercadoria, mas sim manter ou aumentar o afluxo de dinheiro, ajudando assim a permanência do complexo. Um complexo econômico pode então se apresentar bastante amalgamado com um setor específico da indústria, o que representaria um elo entre estrutura-superestrutura. É o que ocorre, por exemplo, no complexo industrial-militar dos EUA. Aqui temos uma instituição militar, muito fortalecida pelas constantes guerras, unida como unha e carne ao setor industrial bélico. Dentro desse complexo há inúmeros grupos −̶   um exemplo que podemos mencionar é o dos mercenários, exércitos  mantidos por empresas privadas. BlackWater era uma delas.

Então podemos ir para além daquela metáfora marxiana de estrutura-superestrutura. Trata-se de uma metáfora útil, mas insuficiente, do meu ponto de vista, e sua força está justamente na simplicidade. É sincrônica. Proponho não exatamente uma metáfora, mas um modelo, que pode dar conta de alguns aspectos relacionados à dinâmica. É um modelo diacrônico, digamos.

 

II

Antes, voltando à questão da juridicidade da estrutura do Estado: uma dada Constituição política, subscrita por um corpo de leis, assegura de certo modo, mais ou menos efetiva e eficazmente, o status quo.

Que não se cometa, nesse raciocínio, indevidas inversões: o corpo jurídico e o sistema econômico não são estruturas cambiantes, não produzem trocas de modo a uma fazer influenciar e mudar a outra. Não. É o sistema econômico que condiciona o jurídico, assim como condiciona, de certa forma, a estrutura política. Esta, bem como a estrutura jurídica, podem promover alterações nas relações sociais, mas dificilmente (acredito que de nenhum modo) alteram a ordem econômica. Uma lei antitruste impede a concorrência desleal, mas não muda nem anula o jogo; leis antimonopólios, antitruste, e outras, são legislações que refletem a força dos capitalistas em jogo. Do mesmo modo as desregulamentações assim funcionam: são mudanças para a manutenção do jogo, com ou mais peças no tabuleiro.

 

III

Como poderíamos representar um tal sistema? Como dissemos, é conhecida a metáfora estrutura-infraestrutura cujo emprego é muito comum no meio marxista. Proponho uma imagem mais complexa −̶   não necessariamente mais correta, dado que também é metáfora, mas creio mais flexível, mais dinâmica, mais sincrônica. 

E socorro-me dos sólidos de Platão para construir a imagem. Para quem não conhece os sólidos de Platão, figuras da geometria que se caracterizam por serem poliedros regulares, formados por faces (polígonos) regulares e congruentes e onde todos os números de arestas encontram-se em todos os vértices. Como na figura 1:

 

Fig. 1: poliedros regulares.

 

Sem querer fazer demonstrações, pois não é nossa área, os sólidos platônicos são assim chamados justamente porque Platão [1], o filósofo, associou-os aos elementos naturais: terra é associada com o hexaedro (cubo), ar com o octaedro, água com o icosaedro e fogo com o tetraedro. Um quinto elemento, também denominado platônico, foi introduzido por Aristóteles, seria o elemento  éter, mas não permaneceu relacionado a um quinto sólido de Platão. Essa associação foi feita posteriormente e costuma-se afirmar que o dodecaedro é o elemento "cosmos". Podemos representá-los didaticamente na figura 2, assim como os outros:

 

Fig. 2: representação didática dos sólidos platônicos.

 

Grosso modo, o universo para Platão é formado a partir dos elementos nesta ordem: fogo, água, terra e ar. Estes elementos são justificados por suas formas e antes de se combinarem e se distinguirem o universo era disforme, isto é, sem forma.

Euclides, no século III a.C., estabeleceu as formas matemáticas desses sólidos em seu Os elementos. É no Livro XIII desta obra que se oferece uma descrição completa deles, de onde podem ser construídos.

Os sólidos possuem simetrias e isometrias e talvez sejam qualidades porque foram considerados sólidos "perfeitos".

Temos uma simetria quando uma face é exatamente igual à outra face do sólido, ou seja, podemos dividi-la em partes de tal modo que estas partes, quando sobrepostas, coincidem exatamente.  Podemos imaginar um eixo passando por um ponto da figura e ela possuirá simetria rotacional quando poder girar perfeitamente por este eixo. Os nossos sólidos aqui considerados possuem esta propriedade [2] e cada um deles possui um tanto número de rotações possíveis.

Temos uma isometria quando estes sólidos, ao girar, possuem sempre a mesma forma. Em outras palavras e sendo bastante simplificador, pois há toda uma teoria matemática por trás disso aqui, é que temos uma simetria no espaço.

Essas propriedade geométrica permitem circunscrever sólidos dentro de sólidos, que podem rotacionar um dentro do outro, porque um pode ser construído dentro do outro.

 

 

Fig. 3 - Construção do octaedro


 

Na figura acima, podemos construir um octaedro inscrito no cubo. Como abaixo representada:

 


 









Fig. 5 -  Octaedro inscrito no cubo.




Mas também o contrário é verdadeiro, pois como as figuras são duais entre si, então podemos ter o cubo inscrito no octaetro. Como na figura abaixo:

 

Fig. 4 - Cubo inscrito no octaedro

 

E é aqui que vai sendo construída, passo a passo, a minha metáfora, sugerindo essa primeira construção e relacionando os sólidos, sincronicamente, às instituições. Mas vamos dar mais um passo nestas construções, abstraindo, como estamos fazendo, a demonstração matemática. O cubo poderá, assim, ser inscrito no icosaedro e no dodecaedro. A figura abaixo é formado pelo cubo inscrito no dodecaedro.

 

 

 

Fig. 5 - Cubo inscrito no icosaedro e dodecaedro


 

Por sua vez, o icosaedro pode ser inscrito, permitindo-se uma série de rotações, no dodecaedro. A minha imagem final fica assim: o octaedro inscrito no cubo, inscrito no icosaedro, inscrito no dodecaedro. Mas lembrando que há propriedades duais um relação ao outro; cubo e octaedro são duais porque um pode estar inscrito no outro. Dodecaedro e icosaedro são duais, pode se construir um dentro do outro.

Vamos imaginar um mundo assim: dodecaedro contendo um icosaedro contendo um cubo contendo um octaedro contendo um tetraedro. Universo, água, terra, ar e fogo. O movimento do mais externo implica o movimento do mais interno, mas conformado à sua própria isometria.

Minha analogia é a seguinte (termos ideais): o dodecaedro representa o sistema financeiro; o icosaedro o sistema econômico; o octaedro os poderes; o cubo o mundo produtivo, o mundo do trabalho e o tetraedro o indivíduo. Ou os indivíduos no seu conjunto, mas relacionados, entrelaçados ao cubo, que representa não apenas o mundo do trabalho, mas sua heteronomia, ou seja, as relações de produção entre os indivíduos sociais.

Essa montagem obedeceu ao número crescente de faces ou de vértices, conforme o critério de escolha que sustentei para cada caso.

Talvez já tenha dado a perceber a metáfora aqui por trás da alegoria. O sistema financeiro faz girar o restante, inclusive o sistema econômico, o icosaedro, no qual representei aqui pensando em termos de sistema -- o sistema capitalista produtivo e o próprio mercado, isto é, o mundo das trocas, mas num plano maior, não o das pequenas trocas. Este aqui pode se dar no cubo. Já vou explicar. Mas é importante entender a sequência. Dentro deste estaria o tetraedro.

O tetraedro bem representa os poderes: executivo, legislativo, judiciário, imprensa e militares. Sim, os militares, não apenas entre nós brasileiros, representa sempre um poder. Dentro deste o cubo. O cubo pode representar o mundo físico da produção e mesmo o mundo das pequenas trocas -- naquilo que Inacy Sachs definiu como a "produção de não comercializáveis" [4]. Mas representei aqui o mundo do trabalho direto, o esforço físico, a labuta. Daqui saem tanto as coisas para o mundo das grandes trocas como das pequenas trocas. Note-se que esse universo está engendrado pelo tetraedro.

E não é por acaso. Os poderes aqui representados pelo tetraedro condicionam esse mundo da produção direta, em seu movimento próprio. Por sua vez, dentro desse cubo está o tetraedro -- o indivíduo. Este, condicionado pelo movimento do poliedro que o engendra.

 

Podemos representar assim, uma estrutura tridimensional, hierarquizada, matematicamente justificada em seu movimento, de fora para dentro: dodecaedro, icosaedro, octaedro, cubo, tetraedro. E reiterando que a hierarquia foi estabelecida em termos de número de vértices, já que cada ponto do vértice pode representar um foco de poder, qualquer que seja, político, econômico-financeiro, ideológico.

 


Figs. 5 e 6 - Dodecaedro contendo icosaedro


 

Percebam que eu mencionei todos poliedros com seus duais:

 

Fig. 7 - poliedros e seus duais.

E os inscrevi um dentro do outro, de forma hierárquica de acordo com seus vértices. O tetraedro é o último e seu dual é ele mesmo, de modo que a projeção de um vértice toca na face do inscrito. Assim:

 


 Fig. 8 - Projecção (Fonte da imagem: http://www.matematicasvisuales.com/html/geometria/platonicos/dualidad.html)

 

 

IV

As "esferas" do mundo financeiro e econômico capitalista adquiriram uma tal complexidade e imbricação que o dual dodecaedro-icosaedro podem ser representados como formando um compósito. Tal como o podemos identificar na figura abaixo:

 

Fig. 9 - Complexidade: sistema financeiro e produtivo


 

 

Portanto, com esse arranjo dos duais e estabelecendo uma determinada hierarquia, construí uma metáfora para nosso mundo do capital. Não é um modelo de análise, não é uma metodologia. É uma alternativa à metáfora do edifício estrutura-superestrutura.  E nos ajuda a compreender um movimento, a força impulsionadora de cada estrutura. Apresenta-se uma questão: como quebrar ou travar esse movimento? E mais: Como invertê-lo? É possível destruí-lo de dentro para fora? Seria possível mudar a natureza das relações? Talvez tudo dependa dos vértices. E quais os principais? Talvez contidos naquele que tenha menos vértices: o tetraedro, cujo dual é ele mesmo. Talvez sua desalienação seja a grande e real saída, a resposta para estas questões. Mas isto é uma questão para outro artigo.

 

V

Considerações finais.

O que importa dizer, afinal, é que nós, servidores, estamos dentro do "cubo". Estamos assim em nosso "quadrado"... Não somos um dos poderes, tais como os "membros", "agentes políticos"; podem ser chamados de quaisquer coisas, mas não servidores. Os agentes políticos, que se confundem entre nós com o próprio órgão, o próprio poder, estão no Tetraedro. É o Tetraedro que condiciona o movimento do cubo, onde nós estamos. Geograficamente, ocupamos o mesmo espaço que tais agentes. Mas geometricamente a matemática do poder é outra. Eles estão numa outra dimensão geométrica, obedecendo a um movimento próprio. Eles são o Estado.

Mas isso tudo é uma metáfora. Procurei sofisticar bem para dar conta da complexidade das coisas a que estamos submetidos. Evidentemente que o esclarecimento do público em geral se dá na esfera da linguagem, mais pedagógica, mais didática. É preciso sobretudo esclarecer que os serviços, o bem público, está oferecido pelas nossas mãos.

É isso.

 

 

 

[1] Platão, Timeu.

[2]Wellington Ribeiro dos Santos, p.24 e seguintes

[3]figuras retirada de SANTOS, p.27, 42

[4]Sachs, Inacy. Desenvolvimento: includente, sustentável, sustentado. RJ, Garamond, 2004. pg. 45-6


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