Essa conceituação permite transcender a da teoria
marxista −̶ não sem ela −̶ em alguns pontos: os complexos econômicos
podem não buscar necessariamente o lucro capitalista pela forma mercadoria, mas
sim manter ou aumentar o afluxo de dinheiro, ajudando assim a permanência do
complexo. Um complexo econômico pode então se apresentar bastante amalgamado
com um setor específico da indústria, o que representaria um elo entre
estrutura-superestrutura. É o que ocorre, por exemplo, no complexo
industrial-militar dos EUA. Aqui temos uma instituição militar, muito
fortalecida pelas constantes guerras, unida como unha e carne ao setor
industrial bélico. Dentro desse complexo há inúmeros grupos −̶ um exemplo que podemos mencionar é o dos
mercenários, exércitos mantidos por
empresas privadas. BlackWater era uma delas.
Então podemos ir para além daquela metáfora
marxiana de estrutura-superestrutura. Trata-se de uma metáfora útil, mas
insuficiente, do meu ponto de vista, e sua força está justamente na
simplicidade. É sincrônica. Proponho não exatamente uma metáfora, mas um
modelo, que pode dar conta de alguns aspectos relacionados à dinâmica. É um
modelo diacrônico, digamos.
II
Antes, voltando à questão da juridicidade
da estrutura do Estado: uma dada Constituição política, subscrita por um corpo
de leis, assegura de certo modo, mais ou menos efetiva e eficazmente, o status
quo.
Que não se cometa, nesse raciocínio,
indevidas inversões: o corpo jurídico e o sistema econômico não são estruturas
cambiantes, não produzem trocas de modo a uma fazer influenciar e mudar a
outra. Não. É o sistema econômico que condiciona o jurídico, assim como
condiciona, de certa forma, a estrutura política. Esta, bem como a estrutura
jurídica, podem promover alterações nas relações sociais, mas dificilmente
(acredito que de nenhum modo) alteram a ordem econômica. Uma lei antitruste
impede a concorrência desleal, mas não muda nem anula o jogo; leis
antimonopólios, antitruste, e outras, são legislações que refletem a força dos
capitalistas em jogo. Do mesmo modo as desregulamentações assim funcionam: são
mudanças para a manutenção do jogo, com ou mais peças no tabuleiro.
III
Como poderíamos representar um tal sistema?
Como dissemos, é conhecida a metáfora estrutura-infraestrutura cujo emprego é
muito comum no meio marxista. Proponho uma imagem mais complexa −̶ não necessariamente mais correta, dado que
também é metáfora, mas creio mais flexível, mais dinâmica, mais sincrônica.
E socorro-me dos sólidos de Platão para
construir a imagem. Para quem não conhece os sólidos de Platão, figuras da
geometria que se caracterizam por serem poliedros regulares, formados por faces
(polígonos) regulares e congruentes e onde todos os números de arestas
encontram-se em todos os vértices. Como na figura 1:
Fig. 1: poliedros regulares.
Sem querer fazer demonstrações, pois não é
nossa área, os sólidos platônicos são assim chamados justamente porque Platão
[1], o filósofo, associou-os aos elementos naturais: terra é associada com o
hexaedro (cubo), ar com o octaedro, água com o icosaedro e fogo com o
tetraedro. Um quinto elemento, também denominado platônico, foi introduzido por
Aristóteles, seria o elemento éter, mas
não permaneceu relacionado a um quinto sólido de Platão. Essa associação foi
feita posteriormente e costuma-se afirmar que o dodecaedro é o elemento
"cosmos". Podemos representá-los didaticamente na figura 2, assim
como os outros:
Fig. 2: representação didática dos sólidos
platônicos.
Grosso modo, o universo para Platão é
formado a partir dos elementos nesta ordem: fogo, água, terra e ar. Estes
elementos são justificados por suas formas e antes de se combinarem e se
distinguirem o universo era disforme, isto é, sem forma.
Euclides, no século III a.C., estabeleceu
as formas matemáticas desses sólidos em seu Os elementos. É no Livro
XIII desta obra que se oferece uma descrição completa deles, de onde podem ser
construídos.
Os sólidos possuem simetrias e isometrias e
talvez sejam qualidades porque foram considerados sólidos
"perfeitos".
Temos uma simetria quando uma face é exatamente
igual à outra face do sólido, ou seja, podemos dividi-la em partes de tal modo
que estas partes, quando sobrepostas, coincidem exatamente. Podemos imaginar um eixo passando por um
ponto da figura e ela possuirá simetria rotacional quando poder girar perfeitamente
por este eixo. Os nossos sólidos aqui considerados possuem esta propriedade [2]
e cada um deles possui um tanto número de rotações possíveis.
Temos uma isometria quando estes sólidos,
ao girar, possuem sempre a mesma forma. Em outras palavras e sendo bastante
simplificador, pois há toda uma teoria matemática por trás disso aqui, é que
temos uma simetria no espaço.
Essas propriedade geométrica permitem
circunscrever sólidos dentro de sólidos, que podem rotacionar um dentro do
outro, porque um pode ser construído dentro do outro.
Na figura acima, podemos construir um octaedro
inscrito no cubo. Como abaixo representada:
Fig. 5 - Octaedro inscrito no cubo.
E é aqui que vai sendo construída, passo a passo, a minha metáfora, sugerindo essa primeira construção e relacionando os sólidos, sincronicamente, às instituições. Mas vamos dar mais um passo nestas construções, abstraindo, como estamos fazendo, a demonstração matemática. O cubo poderá, assim, ser inscrito no icosaedro e no dodecaedro. A figura abaixo é formado pelo cubo inscrito no dodecaedro.
Por sua vez, o icosaedro pode ser inscrito,
permitindo-se uma série de rotações, no dodecaedro. A minha imagem final fica assim: o octaedro
inscrito no cubo, inscrito no icosaedro, inscrito no dodecaedro. Mas lembrando
que há propriedades duais um relação ao outro; cubo e octaedro são duais porque
um pode estar inscrito no outro. Dodecaedro e icosaedro são duais, pode se
construir um dentro do outro.
Vamos imaginar um mundo assim: dodecaedro
contendo um icosaedro contendo um cubo contendo um octaedro contendo um
tetraedro. Universo, água, terra, ar e fogo. O movimento do mais externo
implica o movimento do mais interno, mas conformado à sua própria isometria.
Minha analogia é a seguinte (termos
ideais): o dodecaedro representa o sistema financeiro; o icosaedro o sistema
econômico; o octaedro os poderes; o cubo o mundo produtivo, o mundo do trabalho
e o tetraedro o indivíduo. Ou os indivíduos no seu conjunto, mas relacionados,
entrelaçados ao cubo, que representa não apenas o mundo do trabalho, mas sua
heteronomia, ou seja, as relações de produção entre os indivíduos sociais.
Essa montagem obedeceu ao número crescente
de faces ou de vértices, conforme o critério de escolha que sustentei para cada
caso.
Talvez já tenha dado a perceber a metáfora
aqui por trás da alegoria. O sistema financeiro faz girar o restante, inclusive
o sistema econômico, o icosaedro, no qual representei aqui pensando em termos
de sistema -- o sistema capitalista produtivo e o próprio mercado, isto é, o
mundo das trocas, mas num plano maior, não o das pequenas trocas. Este aqui
pode se dar no cubo. Já vou explicar. Mas é importante entender a sequência.
Dentro deste estaria o tetraedro.
O tetraedro bem representa os poderes:
executivo, legislativo, judiciário, imprensa e militares. Sim, os militares,
não apenas entre nós brasileiros, representa sempre um poder. Dentro deste o
cubo. O cubo pode representar o mundo físico da produção e mesmo o mundo das
pequenas trocas -- naquilo que Inacy Sachs definiu como a "produção de não
comercializáveis" [4]. Mas representei aqui o mundo do trabalho direto, o
esforço físico, a labuta. Daqui saem tanto as coisas para o mundo das grandes
trocas como das pequenas trocas. Note-se que esse universo está engendrado pelo
tetraedro.
E não é por acaso. Os poderes aqui
representados pelo tetraedro condicionam esse mundo da produção direta, em seu
movimento próprio. Por sua vez, dentro desse cubo está o tetraedro -- o
indivíduo. Este, condicionado pelo movimento do poliedro que o engendra.
Podemos representar assim, uma estrutura
tridimensional, hierarquizada, matematicamente justificada em seu movimento, de
fora para dentro: dodecaedro, icosaedro, octaedro, cubo, tetraedro. E
reiterando que a hierarquia foi estabelecida em termos de número de vértices,
já que cada ponto do vértice pode representar um foco de poder, qualquer que
seja, político, econômico-financeiro, ideológico.
Percebam que eu mencionei todos poliedros
com seus duais:
Fig. 7 - poliedros e seus duais.
E os inscrevi um dentro do outro, de forma hierárquica de acordo com seus vértices. O tetraedro é o último e seu dual é ele mesmo, de modo que a projeção de um vértice toca na face do inscrito. Assim:
Fig. 8 - Projecção (Fonte da imagem: http://www.matematicasvisuales.com/html/geometria/platonicos/dualidad.html)
IV
As "esferas" do mundo financeiro
e econômico capitalista adquiriram uma tal complexidade e imbricação que o dual
dodecaedro-icosaedro podem ser representados como formando um compósito. Tal
como o podemos identificar na figura abaixo:
Portanto, com esse arranjo dos duais e
estabelecendo uma determinada hierarquia, construí uma metáfora para nosso
mundo do capital. Não é um modelo de análise, não é uma metodologia. É uma
alternativa à metáfora do edifício estrutura-superestrutura. E nos ajuda a compreender um movimento, a
força impulsionadora de cada estrutura. Apresenta-se uma questão: como quebrar
ou travar esse movimento? E mais: Como invertê-lo? É possível destruí-lo de
dentro para fora? Seria possível mudar a natureza das relações? Talvez tudo
dependa dos vértices. E quais os principais? Talvez contidos naquele que tenha
menos vértices: o tetraedro, cujo dual é ele mesmo. Talvez sua desalienação
seja a grande e real saída, a resposta para estas questões. Mas isto é uma
questão para outro artigo.
V
Considerações finais.
O que importa dizer, afinal, é que nós,
servidores, estamos dentro do "cubo". Estamos assim em nosso
"quadrado"... Não somos um dos poderes, tais como os
"membros", "agentes políticos"; podem ser chamados de
quaisquer coisas, mas não servidores. Os agentes políticos, que se confundem
entre nós com o próprio órgão, o próprio poder, estão no Tetraedro. É o
Tetraedro que condiciona o movimento do cubo, onde nós estamos.
Geograficamente, ocupamos o mesmo espaço que tais agentes. Mas geometricamente
a matemática do poder é outra. Eles estão numa outra dimensão geométrica,
obedecendo a um movimento próprio. Eles são o Estado.
Mas isso tudo é uma metáfora. Procurei
sofisticar bem para dar conta da complexidade das coisas a que estamos
submetidos. Evidentemente que o esclarecimento do público em geral se dá na
esfera da linguagem, mais pedagógica, mais didática. É preciso sobretudo
esclarecer que os serviços, o bem público, está oferecido pelas nossas mãos.
É isso.
[1] Platão, Timeu.
[2]Wellington Ribeiro dos Santos, p.24 e
seguintes
[3]figuras retirada de SANTOS, p.27, 42
[4]Sachs, Inacy. Desenvolvimento:
includente, sustentável, sustentado. RJ, Garamond, 2004. pg. 45-6
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