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quinta-feira, 7 de março de 2024

As incertezas do tempo, do lugar e do sujeito, em "O deserto dos tártaros", de Buzzati.

BUZZATI, Dino. O deserto dos tártaros. Trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. 6ªed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017 (1940) 

O Jovem tenente Giovanni Drogo sai da academia militar e recebe sua primeira missão em um forte — o Forte Bastiani, numa fronteira localizada num deserto. Como militar, espera que essa seja uma grande tarefa, abrilhantando sua carreira. Em um forte,  geralmente em posição de fronteiras, aguarda-se, defensivamente, que ocorra alguma grande invasão e aconteça o que todo militar espera: a guerra. Ocorre que Giovanni se decepciona com o enorme marasmo da posição e o sensível abandono da edificação. Tenta se desligar dali, não consegue — uma vez sem poder optar, outra por sua própria vontade. Mas aos poucos vai se acostumando tanto ao lugar quanto à espera — dos invasores, que nunca chega. 

Comentário. [com spoiler]
Um local incerto, um tempo que nunca chega. É muito interessante como Buzzati conseguiu, neste romance, ilustrar como o sujeito pode preencher um vazio de tempo e de lugar, primeiro com uma fantasia e segundo com uma acomodação. O primeiro, a alimentar o segundo. Espera-se. Espera-se algo que nunca acontece — mas isso é só constatado no final da vida, ou melhor, da narrativa do personagem principal, Giovanni Drogo. A saúde se deteriora, provavelmente devido às condições insalubres do forte. O tempo passa e a realização de um acontecimento não chega a tempo, no tempo de vida útil do sujeito, Giovanni. Este morre sem ver a ação e sua posição no mundo termina por incerta — não pertenceu a lugar nenhum. Sua vida foi um deserto, como o próprio, que tantas vezes mirava. Quando a guerra chega está fraco e doente. Terá que ser transferido para algum hospital na cidade. Mas não chega nem nesta. Morre no caminho. 
Mas enfim, a guerra chega mesmo? As passagens não dão margem a certeza. Mesmo quando Drogo consegue sair da cama, ir ao pátio e observar pela luneta, não vê muito: vê o próprio exército em atividade, ao longe. O forte recebeu reforços, não quer dizer que haverá guerra, mas isso é suficiente para agitar as moléculas da ação no local. Drogo sente uma tontura quando usa a luneta e tem que voltar para a cama. Dali sai do forte e caminha para a morte. A narrativa do romance, onde o narrador onisciente  — falsamente onisciente, diga-se, devido à imposição de incertezas — se confunde com o personagem, ou seja, um narrador que exibe a introspecção do protagonista. E o personagem é todo incerteza.

Drogo ambicionava glória e reconhecimento, por isso viveu  e aceitou a vida ascética do forte, esperando que um dia pudesse mostrar suas habilidades, sua coragem. No final da vida, aguardando a morte, dentro de um quarto, espera pelo anoitecer, que possa ainda ter a imagem da lua diante de seus olhos. Neste momento final também cheio de incertezas, há uma esperança — mas a esperança aqui também é arrematada pela espera, a espera de uma morte rejuvenescedora, num outro mundo, embora carregando aquele corpo frágil. Mas ainda assim, a dúvida: não teria sido aquela esperança final tudo uma ilusão? A noite cai e Drogo consegue ao menos observar algumas estrelas... e sorri. 

Antonio Cândido fez uma resenha crítica, longa e interessante, sobre este romance, em O discurso e a cidade. Num dos artigos, a abordagem incide sobre o tempo, "Quatro esperas", onde a espera é analisada em quatro momentos de obras diferentes -- numa delas, a que aqui nos ocupa, é na fortaleza. A fortaleza onde Giovanni Drogo vai se instalar e permanecer. Vale a pena a reprodução de algumas conclusões (destaque meu): 


"O começo diz abertamente que Giovanni Drogo não tinha estima por si mesmo. Ora, o fim consiste na aquisição dessa autoestima que lhe faltava. Durante a vida inteira ele esperou o momento que permitiria uma espécie de revelação do seu ser, de maneira que os outros pudessem reconhecer o seu valor, o que o levaria reconhecê-lo ele próprio. Mas aqui surge a contradição suprema, pois esse momento acaba sendo o da morte. Portanto, é ela que define o seu ser e lhe dá a oportunidade de encontrar justificativa para a própria vida. De algum modo, uma afirmação por meio da suprema negação.

Assim, o romance do desencanto deságua na morte, que aparece como sentido real da vida e alegoria da existência possível de cada um. Como na de todos nós, ela esteve sempre na filigrana da narrativa. Primeiro, sob a forma de alvo ideal, sonhada na escala grandiosa. Depois, como realidade banal, nos casos de Lazzari e Angustina. Quando o tempo para, ela surge e o redime, justificando Drogo, que adquire então a ciência que não aprendera nos longos anos de esperança frustrada e que, se não tivermos medo do tom sentencioso, poderia ser formulada assim: o sentido da vida de cada um está na capacidade de resistir, de enfrentar o destino sem pensar no testemunho dos outros nem no cenário dos atos, mas no modo de ser; a morte desvenda a natureza do ser e justifica a vida.

Por isso O deserto dos tártaros é um romance desligado da história e da sociedade, sem lugar definido nem época certa. Nele não há dimensão política, não há organização social ou crônica de fatos. É um romance do ser fora do tempo e do espaço, sem qualquer intuito realista. Do ponto de vista ético é um livro aristocrático, onde a medida das coisas e o critério de valor é o indivíduo, capaz de se destacar como ente isolado, tirando o significado sobretudo de si mesmo, e por isso podendo realizar na solidão a sua mensagem mais alta. A morte coletiva e teatral dos sonhos militares, desejada como coroamento da vida, cede lugar à glória intransferível da morte solitária, sem testemunhas e sem ação em torno, significando apenas pela sua própria força. E nós lembramos Montaigne, quando diz que “a firmeza na morte é sem dúvida a ação mais notável da vida.” (CANDIDO, p. 160-1)



CANDIDO, Antonio. O Discurso e a Cidade. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2015 (texto original de 1990, publicado nos Cadernos Cebrap, Novos Estudos, nº26)

 






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