PIKETTY, Thomas. O CAPITAL, no século XXI. Trad. de
Monica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro, Intrínseca, 2014.
Terminei de ler a Introdução deste. Geralmente gosto de
recomendar livros os quais li por inteiro. No entanto, como ele participou
recentemente do programa Roda Viva e agita, não só o meio acadêmico, mas o
mundo todo com suas ideias, decide escrever algo.
A princípio, aos
mais desavisados, o autor parece não dizer algo diferente do que já está sendo
dito por aí desde a Crise de 2008: é preciso distribuir riqueza via taxação dos mais
ricos. Portanto, imposto progressivo, mais pesado para as grandes fortunas.
Nenhuma novidade, mas o livro é inovador em pelo menos dois aspectos:
Primeiro: justifica
o por quê da taxação progressiva. Segundo o próprio autor, a solução para
qualquer problema tem que apresentar seus benefícios.
Segundo: revela toda
uma base de dados e estatísticas em retrospecto - portanto, apresenta-nos todas
as fontes que informam e demonstram a desigualdade num quadro amplo.
A obra como
um todo é inovadora porque ela trabalha e articula com as Ciências Sociais e a
História - algo que não é realizado pelos economistas desde a edição de O Capital
de Marx.
Por tudo isso, o
alvoroço em torno do assunto da obra. Ela parece-me muito sólida ao reunir todas essas
qualidades acima, a despeito de eu ter lido apenas a Introdução.
Posso dizer algo mais. Trata-se de uma introdução no estilo mais clássico das
ciências sociais - nela, não só o plano da obra está apresentado, mas também suas
linhas gerais de compreensão, seus conceitos e... o final da história, isto é, as conclusões.
Faltava-nos um
economista assim, que citasse Mark Twain e Zola no meio do texto. Faz tempo que
não leio um autor dessa plêiade, entre os economistas, claro. Dos que posso
citar, nem Krugman, nem Stiglitz e nem mesmo Celso Furtado, cuja obra aprecio
enormemente.
Roda Viva.
Assisti ao programa
na íntegra, pela internet. Fiz anotações que não serão possíveis de reproduzir
todas aqui. Mas alguns pontos são muito interessantes de serem mencionados.
Então vou postar apenas algumas das questões que entendi pertinentes e importantes. Portanto, selecionei
os melhores momentos do programa, numa linguagem o mais próxima possível da
oral (perdoem os erros...).
Antes, a primeira
coisa que gostaria de destacar é o nível dos debatedores. A impressão que eu tive até me
envergonha um pouco: o entrevistado voando alto, só observando aqueles seres pequeninos
lá embaixo, tentando se fazer entender numa linguagem rançosa, ultrapassada e
inaudível aos ouvidos mais apurados.
O destaque negativo
fica para o único economista, de fato, na mesa de entrevistadores: André Lara
Rezende. Declina de plano que não concorda com o livro, ao menos
em dois pontos, e nem com a tese de Piketty. Demonstrou arrogância ao fazer
asserções sob a forma de verdades, tal como a tese da "fronteira
tecnológica" - como alguém que pretende atribuir ignorância a aquele que
está sendo inquirido. Mas Piketty deu respostas elegantes e refutou com dados
concretos os axiomas colocados pelo interlocutor.
Apresentador:
-Augusto Nunes
Entrevistadores
e respectivos acrônimos:
-André Lara Resende,
economista, um dos criadores do Plano Real (A.L.R.);
-José Paulo Kupfer -
colunista de economia do jornal O Estado de São Paulo e articulista do Jornal O
Globo. (J.P.K.);
-Ricardo Ferraz -
repórter do Jornal da Cultura - (R.F.);
-Robson Borges -
editor de cultura do Jornal Valor Econômico (R.B.);
-Vinícius Torres
Freire - colunista de economia do Jornal Folha de São Paulo (V.T.F.).
Entrevistado:
-Thomas Piketty
(T.P.)
Bloco
1
Primeira questão -
André Lara Rezende, resumidamente: "a riqueza/crescimento atual vêm das
inovações [ele aceita a tese de Andrew Solomon, de que ultrapassamos o nível
físico de investimento de capital e estamos no nível tecnológico, sendo que é que permite o crescimento], portanto, vem do capital humano. Por que se
preocupar com os 1% mais ricos?"
Resposta de Piketty.
"Na Belle Époque, tanto quanto agora, houve inovação, tão ou mais que
hoje; isso não se modificou e o problema não é a desigualdade em si, mas a
extrema desigualdade. Portanto, não é a inovação que permite os ricos serem
mais ricos - o nível de desigualdade é muito alto e não seria preciso tanto
assim para obter crescimento econômico. Tudo é uma questão de proporção. A
desigualdade só diminuiu [na história] quando houve grandes choques políticos
[interferência do Estado]. Não precisamos desse tipo de crescimento, tal qual
no século XIX ou na Belle Époque. Para
crescer precisamos de mobilidade - investimento em conhecimento e educação
podem proporcionar
essa mobilidade.
A questão (2ª) que Robson Borges colocou foi
interessante, pela sua reflexão. "Por que há relação da distribuição de
riqueza com ameaça das instituições democráticas? Qual impacto?"
T.P.: "Por
causa da aplicação do dinheiro privado nas instituições políticas democráticas,
especialmente nos EUA... Dinheiro que distorce o funcionamento delas e que
podia ser controlado por leis e outros mecanismos."
Questão (4ª) de
Vinícius Torres Freire (Folha de São Paulo). "De onde virão as forças
(democráticas) para conter o aumento da desigualdade? Nos EUA há um
conservadorismo..."
T.P.:"Mas foi
nos EUA que vieram respostas interessantes, em especial com relação à taxação
progressiva; a história pode nos surpreender às vezes mais rapidamente do que
esperamos ou imaginamos."
Bloco2
Questão (2ª) - André
Lara Rezende: "...uma vez na que estamos na fronteira do progresso
tecnológico, precisamos de investimento tecnológico e não "capital
físico"; precisamos hoje de inventividade e capital humano. Então há
alguma funcionalidade nessas fortunas, que melhoraram a vida de todos.. . Taxar
os muito ricos não aumenta a arrecadação [!] - não estaríamos então diante de
uma situação mais de inveja, que qualquer outra coisa?
T.P.: "Romênia
e Bulgária têm uma arrecadação de 20% [do PIB], enquanto Dinamarca e Suécia têm
50%. Nem por isso os dois primeiros são mais eficientes... Vejamos o Brasil,
que está numa posição intermediária - isso não quer dizer muito. O que determina
afinal é como você organiza o sistema de taxação, se ele é transparente,
aplicado eficientemente... [etc.]. Em outras palavras, como ele retorna para o
país, como se organiza os gastos públicos...
[interrupção de
A.L.R.] "Sim claro, mas não é melhor o governo usar o dinheiro que
arrecada para financiar um bom ensino, por exemplo?
[Réplica de T.P.,
com gesto de concordância] "Sim - a questão não é a taxação em si, mas
como ela é empregada; se pode ajudar a prover uma boa educação e bons serviços
públicos, ótimo - mas é bom que se tenha um sistema fiscal bom e eficiente e
bom para oferecer estes serviços - é importante que o sistema fiscal seja justo
e transparente; é importante que a classe média e os pobres não paguem mais que
os ricos, senão o consenso fiscal corre risco [ Tony Judt fala em risco moral -
descrédito]. É importante para as pessoas que começam a vida com riqueza
familiar limitada, que dependem só do trabalho; o sistema brasileiro é
regressivo de muitas maneiras.
Comentário. André Lara Resende, um economista,
falando na linguagem dos afetos ("inveja"), em vez de empregar a
análise da racionalidade do agente econômico? Interessante. Então o mundo está
"invejoso" dos muito ricos, cujo único "pecado" é o consumo
conspícuo? Como ficou anão o economista nacional diante do francês...
Questão (4ª) de
Vinícius Torres Freire. É preciso uma nova crítica da economia política?
Pretende escrever uma?
T.P.:
"Contribuo com este livro para que haja uma abordagem mais social e
histórica para os problemas econômicos; os economistas passam muito tempo
fazendo modelos matemáticos e esquecem
de olhar para a evolução histórica e empírica de renda e salários; tenta
fazer o oposto [aos modelos matemáticos] - coleto os dados e vejo quais são os
modelos simples e teóricos ou mecanismos que tentam demonstrar isso, explicar
isso [renda e salários]. O sucesso do livro é porque muita gente não quer
apenas as opiniões dos economistas sobre questões econômicas - os economistas
então fingem ter uma ciência tão complicada que os outros não a entendem. Acho
isso uma piada [sic]. Pessoas normais não devem deixar questões econômicas para
os economistas, tal como renda, riqueza, capital, desigualdade e impostos. Tudo
isso é importante para todos os cidadãos, e não deixando para um pequeno grupo.
Comentário. Será que V.T.F. não se deu conta de
que o livro é uma crítica da economia
política? E o faz isso já logo no começo, quando aborda os modelos de Malthus,
Ricardo e Marx?
A seguir uma réplica
de V.T.F., perguntando se faria um estudo para o Brasil - e a questão colocada
por R. Ferraz em relação ao coeficiente de Gini, cujos índices não apontam
diminuição da desigualdade.
Resposta de T.P.
(resumidamente): "Ao considerar a desigualdade depende de qual dado se
leva em conta - se o fiscal, se a riqueza, o IR... estamos colaborando com a
UNB para colocar o Brasil na base de dados [WTID) - precisamos de mais
informações para comparar com outros países.
A.L.R. : "Gini
não melhorou por causa do coeficiente dos 1% mais ricos".
T.P. : "Prefiro
usar dados mais intuitivos que o coeficiente de Gini; a renda no Brasil é muito
desigual e isso têm importância macroeconômica..."
A.L.R. : "O
Brasil é muito desigual, ninguém discute, mas o problema é como corrigir
isso."
[T.P. vai responder
no próximo bloco]
Bloco
3
[continua a questão
da pergunta do bloco anterior]
T.P.: "O Brasil
se tornou um país muito desigual antes do governo atual, não sabemos ao certo
quando começou, então precisamos de mais dados; a transparência pode ser um
meio de aumentar a confiança no governo.
Questão (2ª) de
Ricardo Ferraz, questiona se o Bolsa Família foi um programa eficiente.
T.P. : "É um
bom programa de transferência de renda e permitiu - contribuiu para a redução da pobreza.
Precisamos combinar mais políticas desse tipo com um programa de taxação
progressiva, não só isso apenas."
Questão (3ª) A
seguir, Kupfer, acena com o "fantasma" da inflação. "Hoje o
desemprego no mundo é um grande problema. Aqui o da inflação. Como
solucionar?"
T.P.: "Acho que
pedimos muito aos nossos Bancos Centrais e esquecemos que existem outros
concorrentes: orçamentários, fiscais, etc. Na Europa precisamos de uma união
fiscal mais eficiente e não apenas respostas do Banco Central.
Kupfer: "Como
crescer e sair da inflação (...)"
V.T.F.:
"...então a solução 'fácil' é o Banco Central?"
T.P.: "...ao
fim, o que devemos fazer é uma reforma fiscal, mas realmente o BC é a solução
mais rápida (dando inclusive dinheiro aos capitalistas para que a economia não
entre em colapso).
Bloco
4.
Questão (1ª) -
Kupfer: "Como sair dessa situação?"
[Resumidamente]
Piketty fala sobre a situação dos países como o Japão, com crescimento baixo;
diz que não é possível apontar solução eficaz para todos [como um todo] - mas é
certo que precisamos investir mais nas gerações mais jovens para que haja
retorno no futuro.
A.L.R. : "O
enriquecimento dos criadores [de inovação] é pequeno..."
T.P.: "A
globalização é um fenômeno interessante, mas precisamos de instituições mais
democráticas e mais fortes."
A.L.R.: "os
'estabilizadores naturais' existem; não seria melhor apenas taxar o consumo
conspícuo?"
[mais algumas
questões se acrescentam - houve uma insinuação com relação ao comunismo e ao
marxismo por parte de um dos entrevistadores]
T.P.: "Eu nasci
em 1971 e quando o ''muro caiu' eu tinha 18 anos; então, eu não vivo na Guerra
Fria e não tenho nostalgia daquele tempo. Acredito no mercado, na propriedade
privada, no capitalismo - mas precisamos de instituições democráticas fortes.
Em resumo, tudo é uma questão de proporção: é preciso remunerar tanto um
executivo, um gestor - ou o próprio capital, para que tenhamos empregos e
crescimento? Se Bill Gates soubesse que ganharia 'apenas' 1bi na vida, o
Windows teria sido criado da mesma forma provavelmente.
Portanto, o
mecanismo de taxação, juntamente com outros de redução da desigualdade, é
importante para a boa estabilidade das instituições democráticas - dado que as
desigualdades [de oportunidades também] dão origem a instabilidades sociais e
políticas, além de poderem ameaçar o próprio crescimento econômica e a
eficiência.
[fim]
Comentário,
brevemente.
O apresentador não
tem elegância nenhuma; faz intervenções com arrogância e solicita respostas
mais rápidas, com acinte. Não, não é sempre. Já assisti a outros programas em
que ele se apresenta "mais suave". Neste programa minha sensação é de
que tentou ser "eficiente". Talvez em meio a jornalistas de economia
(na verdade colunistas) ele tenha se sentido melhor com essa postura.
A considerar apenas
o lado dos interlocutores, o programa poderia ser entendido como um fiasco.
Começa bem, com uma vinheta bonita. Na chamada, imagens de miséria e pobreza de
um lado, a apresentação do livro, de outro. Na evolução do programa, parece-me
que nenhum dos entrevistadores estava preocupado com o tema principal:
"renda e desigualdade". De fundo, revelaram sim preocupação com o
crescimento econômico e em demonstrar que o governo não é confiável e não
funciona, bem como os programas sociais não estão dando certo. Mas Piketty
compensou tudo. Repito, deu exemplo de humildade intelectual, esbanjou
desenvoltura com respostas breves, simples e esclarecedoras sobre temas que, na
verdade, são complexos. Em outros termos, eu diria que Piketty deu uma aula de como mostrar verdades, já que
a verdade é comunicativa, nas palavras de Habermas. Ao final, Piketty saiu-se
grande. Não por acaso ele é o atual diretor da Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais da França. Será que os entrevistados memorizaram bem isso?
Nosso representante
local dos economistas, André Lara Resende, deu bom exemplo sim, mas de
arrogância intelectual. Foi axiomático. Tentou travar o debate por meio de
vários aforismos. Esforçou-se em confranger o entrevistado pela inversão.
Apenas para relembrar, a título de prova do que estou falando, elenco os
seguintes temas, abordados como sentenças:
1-Adentramos a era
do capitalismo tecnológico, onde o que mais vale é o capital humano; essa tese
é a de Andrew Solomon;
2-Não precisamos nos
preocupar com os 1% mais ricos - afinal, são eles que estão trazendo melhorias
para o mundo;
3-Não precisamos de
taxação progressiva, pois existem "estabilizadores naturais" da
economia; mas o problema é o consumo
conspícuo - esse poderia ser taxado;
4-Querer taxar os
mais ricos sobrevém de um sentimento de inveja;
5-Os criadores
[inovadores, de tecnologia] não estão se enriquecendo como deviam...
Daria um livro, ao
menos um artigo para cada axioma proposto por Lara Resende, no intuito de
rebatê-los. Não vou fazer isso, mas posso arriscar fazê-lo em forma de
aforismos, para ser curto e breve, como proposto.
Assim, apresento a
minha refutação para cada item:
1 - Capital é
Capital. Distinguir entre "capital físico" e "capital
humano/tecnológico", apenas, para criação de riqueza, é uma falácia -
posto que ignora que o principal meio do capital é e sempre foi o dinheiro e em
segundo a propriedade (privada); propostas teóricas como a de Solomon querem se
desviar do assunto "dinheiro" e "riqueza";
2 - Se os 1% mais
ricos fossem assim tão altruístas, abririam mão de parte de suas fortunas e
fariam campanhas a favor da taxação progressiva; as "melhorias" que
esses economistas destacam são resultados marginais da busca do lucro - não são
necessariamente obra da bondade dos donos do capital;
3 - Se a taxação
sobre o consumo fosse a solução, então no Brasil nem precisaríamos da
declaração de imposto de renda, dado que a mercadoria aqui sofre vários
impostos; não seria, da mesma forma, uma
solução a de taxar o consumo conspícuo; e se houvesse realmente
"estabilizadores naturais", ninguém estaria, a essa altura, debatendo
sobre a desigualdade ou escrevendo livros sobre ela; então por que se fala
tanto no assunto? Ademais, se André Lara Resende acredita tanto assim nos tais
"estabilizadores automáticos", então por que participou da elaboração
do Plano Real?
4 - Para um
economista, falar de sentimento de inveja não faz sentido. Numa análise
estritamente econômica os agentes agem segundo a sua racionalidade - no caso,
se alguém ganha mais, o agente vai procurar se equiparar, buscar os meios para
ganhar mais. A demanda pela taxação é apenas um meio para os agentes;
5 - Ah sim, Bill
Gates está "desolado" com a pequena fortuna que amealhou; Steve Jobs
se esforçou muito para não morrer na pobreza...
Ora, sem mais comentários.
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