MORAVIA, Alberto. A Ciociara. Trad. José Antonio Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (1957).
Ao ler este romance, não há como não lembrar dos
filmes de neorrealismo italiano, de Roberto Rossellini e de Vitorio De Sica. Esta
obra em particular é um relato da Segunda Guerra por meio de uma pequeno
burguesa, ex-camponesa, mulher que possui uma loja na periferia pobre de Roma,
cidade prestes a ser ocupada pelos aliados e por eles bombardeada; mas ainda
sob o domínio alemão. Ela foge de Roma, com a filha, para o campo, onde
supostamente poderia encontrar paz e alimento. Mas as coisas não andam conforme
ela planeja. A guerra também alcança o meio rural, causando fome, destruição,
violência, perda dos valores tanto morais quanto materiais. Ela leva consigo um
tanto de dinheiro que pensava ser útil na fuga para o interior. No entanto,
percebe que isso foi pouco, insuficiente e às vezes inútil. Assiste a uma
degradação humana, onde os humanos se tornam insensíveis, amorais e
oportunistas. Um grande drama envolverá sua filha, Rosetta, a qual tenta
proteger a todo custo.
Há um filme de mesmo nome do título original, La Ciociara, lançado aqui com o nome de Duas Mulheres, de Vittorio De Sica. São obras diferentes. Leia o livro. Além daquele eu sugiro outros filmes do neorrealismo italiano, como Roma, cidade aberta, de Rossellini.Ciociara é uma região periférica de Roma, e o termo acaba carregando esse significado, aludindo e simbolizando lugares afastados e empobrecidos de Roma. Portanto, La Ciociara seria algo como "A periférica".
Personagens principais: Cesira, a mãe e
Rosetta, a filha. Michele, um intelectual que elas conhecem no campo. Com este
é que elas vão obter revelações que mudam suas formas de pensar. Uma epifania
sobre a guerra e os homens.
Sinopse 1ª Parte (sem spoiler):
Cesira é uma ex-camponesa que se mudou para
Roma após casar-se, vendo-se obrigada a tomar conta de uma pequena loja após a
morte do marido e ao mesmo tempo tendo de cuidar da educação da filha. Após a
invasão e ocupação nazista, Cesira e Rosetta saem de Roma para se refugiar no
interior. O trem que as conduzia não pode prosseguir o seu destino devido aos
bombardeios que atingiram a estrada; fazem o resto do percurso a pé. As duas mulheres se refugiam então em um
pequeno vilarejo de Santa Eufemia, com a esperança de retornar tão logo Roma
fosse libertada pelos aliados. Nesse lugar Cesira entra em contato com outros
refugiados e conhece Michele, um jovem intelectual pacifista que provocará
mudanças no seu modo de ver a vida e o mundo.
Sinopse 2ª Parte (com spoiller):
Com a chegada dos aliados,
todos regressam para suas cidades, inclusive Cesira e Rosetta. Durante a
viagem de retorno, muito difícil, as duas mulheres se refugiam em uma igreja
abandonada e são violentadas por um grupo de soldados marroquinos, uma tropa
auxiliar dos... aliados. As privações e opressões passadas no meio rural, bem
como toda essa violência física e moral, alterarão a visão sobre a guerra e
sobre a existência humana que as duas mulheres tinham até o momento.
Comentário.
Há muita dor, violência e desumanidade na
guerra. Duas mulheres, periféricas, saem de um estreito mundo pequeno burguês e
perdem a inocência de forma violenta e começam a ver o mundo de outra forma. Esta
pode ser uma história de desencantamento do mundo, mas também de consciência de
que ele é habitado por gente de toda espécie, boa e má. Se há quem que se
aproveite desses momentos sórdidos, também há quem queira ajudar e cooperar. E
tentar fazer renascer um novo mundo, se não de todo bom, mas melhor. É o papel
de Michele neste romance. Daí a comparação, ao final dele, com Lázaro, aquele
que ressuscita. Ressuscita a esperança, a esperança não de esperar, mas de
esperançar. Atuar neste mundo com mais amor, mas sem inocência, sem
ingenuidade. É preciso fazer frente, combater o mal. O mal avança só quando o
bem recua (Santo Agostinho, Confissões).
Passagens do livro:
[não basta instruir - é preciso bom uso]
Quis
descrever esse nosso primeiro serão com os Morrone (assim se chamava a família)
porque, uma vez descrito o primeiro, ficam descritos todos os que seguiram,
rigorosamente iguais, e também porque naquele dia comi de manhã com os
refugiados e à noite com os camponeses, ficando assim em condições de notar as
diferenças entre ambos. Digo a verdade: os refugiados eram mais ricos, pelo
menos alguns; com eles comia-se melhor; sabiam ler e escrever; não calçavam
tamancos, e as mulheres andavam vestidas como as da cidade. No entanto, desde
esse primeiro dia, e depois cada vez mais, preferi sempre os camponeses aos
refugiados. Esta preferência devia-se não só ao fato de eu ter sido camponesa
antes de ser comerciante, mas sobretudo à estranha sensação que experimentava
junto dos refugiados, em especial se os comparava aos camponeses: era gente a
quem a instrução só servira para os tornar piores. Um pouco como acontece com
certos rapazes turbulentos que, mal entram na escola e aprendem a escrever, a
primeira coisa que fazem é cobrir as paredes com palavrões. Enfim, em minha
opinião, não basta instruir, é preciso sobretudo ensinar a fazer bom uso da
instrução. (p. 77)
[escassez da guerra]
Quem
nunca se encontrou em condições semelhantes, com dinheiro que praticamente não
valia nada, estranho entre estranhos, no cimo duma montanha, e não sabe o que
quer dizer a falta de comida em tempo de guerra, não poderá compreender a
alegria com que acolhemos Tommasino. São coisas que é difícil explicar:
normalmente, quem vive na cidade, onde há armazéns cheios de tudo, não acumula
provisões em casa, pois sabe que em qualquer altura que precise vai às lojas e
encontra-as bem fornecidas. Assim, convence-se de que comprar nas lojas o que
lhe faz falta é uma coisa absolutamente natural, tal como as estações do ano, a
chuva e o sol, a noite e o dia. Ilusão! As coisas podem faltar de repente, como
faltaram de fato naquele ano, e então todos os milhões do mundo não chegam para
comprar um pedaço de pão, e sem pão morre-se de fome. (p. 86)
[ignorância do bem e do mal]
Os
aviadores que jogavam as bombas não sabiam nada de nós nem dos nossos
monumentos; a ignorância tornava-os tranquilos e sem piedade, e a ignorância,
acrescentou Michele, é talvez a causa de todas as nossas dores e das dos
outros, porque a malvadez não é senão uma forma de ignorância, e quem sabe não
pode verdadeiramente fazer mal. (p. 155)
[senso de justiça]
Queria
perguntar-lhe como explicava que aquele nazi tão feroz, que sentia prazer em
queimar gente com o lança-chamas, fosse capaz ao mesmo tempo de se impressionar
com a injustiça que reinava na Itália. Michele dissera-nos sempre que só
sentiam a injustiça as pessoas de bem, os melhores, os únicos que ele não
desprezava. E eis que aparecia aquele tenente, ainda por cima filósofo, que
sentia e censurava a injustiça e simultaneamente tinha prazer em queimar gente.
Seria possível? Então, no fim de contas, a justiça não era uma coisa boa? Mas
não tive coragem de lhe comunicar as minhas reflexões, pois via-o abatido e
triste. Assim deixamos o vale e chegamos a Santa Eufêmia, onde já escurecera.
(p. 170)
[Instintos sombrios]
Em
suma, como já disse, a guerra não quer dizer só matar, mas também roubar; e
aquele que em tempo de paz não mataria, nem roubaria por nenhum ouro do mundo,
em tempo de guerra encontra no fundo do coração o instinto de roubar e de matar
que há em todos os homens; mas encontra-o porquê o encorajam a encontrá-lo,
dizendo-lhe a todo o momento que aquele instinto é bom e deve ser atendido,
doutor modo não será um verdadeiro soldado. Então ele pensa: “Estamos em
guerra... tornarei a ser aquilo que na realidade sou quando voltar a paz... por
agora, deixo-me ir ao sabor da corrente... “Infelizmente, ninguém que tenha
matado e roubado, ainda que seja na guerra, pode esperar vir a ser alguma vez o
que era antes, pelo menos em minha opinião”. (p. 181)
[normalização da guerra]
Isto
serve para dizer que nos habituamos a tudo e a guerra pode tornar-se um hábito,
e aquilo que nos modifica não são os fatos extraordinários que acontecem uma só
vez, mas sim esse hábito, essa longa aceitação das coisas contra as quais
deixamos de nos revoltar. (p. 190)
(...)
Ah!
A beleza pode ser apreciada com a barriga cheia; mas, com a barriga vazia,
todos os pensamentos vão dar ao mesmo, e a beleza parece um engano ou, pior,
uma troça. (p.190)
[ressurreição]
A
dor... Voltou-me ao pensamento Michele, que não estava ali conosco nesse
momento tão suspirado do regresso e nunca mais estaria junto de nós, lembrei-me
daquela noite em que nos leu em voz alta, na cabana de Santa Eufêmia, a
passagem do Evangelho sobre Lázaro, zangando-se porque os camponeses não tinham
compreendido nada e gritando que estávamos todos mortos à espera da
ressurreição, como Lázaro. Então, essas palavras de Michele tinham-me deixado
na dúvida; agora, sim, compreendia que Michele tinha razão e que durante algum
tempo também Rosetta e eu estivéramos mortas, mortas para a piedade que se deve
aos outros e a nós próprios. Mas a dor viera salvar-nos no último momento; e
assim, de certa maneira, a história de Lázaro aplicava-se também a nós: graças
à dor conseguíramos por fim sair da guerra que nos encerrava no seu túmulo de
indiferença. (p.286)
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