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sábado, 20 de agosto de 2022

La Ciociara, de Alberto Moravia. O bem e o mal na guerra.

MORAVIA, Alberto. A Ciociara. Trad. José Antonio Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (1957).

 

A Ciociara, Alberto Moravia - Janeiro de 2021

Ao ler este romance, não há como não lembrar dos filmes de neorrealismo italiano, de Roberto Rossellini e de Vitorio De Sica. Esta obra em particular é um relato da Segunda Guerra por meio de uma pequeno burguesa, ex-camponesa, mulher que possui uma loja na periferia pobre de Roma, cidade prestes a ser ocupada pelos aliados e por eles bombardeada; mas ainda sob o domínio alemão. Ela foge de Roma, com a filha, para o campo, onde supostamente poderia encontrar paz e alimento. Mas as coisas não andam conforme ela planeja. A guerra também alcança o meio rural, causando fome, destruição, violência, perda dos valores tanto morais quanto materiais. Ela leva consigo um tanto de dinheiro que pensava ser útil na fuga para o interior. No entanto, percebe que isso foi pouco, insuficiente e às vezes inútil. Assiste a uma degradação humana, onde os humanos se tornam insensíveis, amorais e oportunistas. Um grande drama envolverá sua filha, Rosetta, a qual tenta proteger a todo custo. 

Há um filme de mesmo nome do título original, La Ciociara, lançado aqui com o nome de Duas Mulheres, de Vittorio De Sica. São obras diferentes. Leia o livro. Além daquele eu sugiro outros filmes do neorrealismo italiano, como Roma, cidade aberta, de Rossellini.Ciociara é uma região periférica de Roma, e o termo acaba carregando esse significado, aludindo e simbolizando lugares afastados e empobrecidos de Roma. Portanto, La Ciociara seria algo como "A periférica".

Personagens principais: Cesira, a mãe e Rosetta, a filha. Michele, um intelectual que elas conhecem no campo. Com este é que elas vão obter revelações que mudam suas formas de pensar. Uma epifania sobre a guerra e os homens.

 

Sinopse 1ª Parte (sem spoiler):

Cesira é uma ex-camponesa que se mudou para Roma após casar-se, vendo-se obrigada a tomar conta de uma pequena loja após a morte do marido e ao mesmo tempo tendo de cuidar da educação da filha. Após a invasão e ocupação nazista, Cesira e Rosetta saem de Roma para se refugiar no interior. O trem que as conduzia não pode prosseguir o seu destino devido aos bombardeios que atingiram a estrada; fazem o resto do percurso a pé.  As duas mulheres se refugiam então em um pequeno vilarejo de Santa Eufemia, com a esperança de retornar tão logo Roma fosse libertada pelos aliados. Nesse lugar Cesira entra em contato com outros refugiados e conhece Michele, um jovem intelectual pacifista que provocará mudanças no seu modo de ver a vida e o mundo.

 

Sinopse 2ª Parte (com spoiller):

Com a chegada dos aliados, todos regressam para suas cidades, inclusive Cesira e Rosetta. Durante a viagem de retorno, muito difícil, as duas mulheres se refugiam em uma igreja abandonada e são violentadas por um grupo de soldados marroquinos, uma tropa auxiliar dos... aliados. As privações e opressões passadas no meio rural, bem como toda essa violência física e moral, alterarão a visão sobre a guerra e sobre a existência humana que as duas mulheres tinham até o momento.

 

 

Comentário.

Há muita dor, violência e desumanidade na guerra. Duas mulheres, periféricas, saem de um estreito mundo pequeno burguês e perdem a inocência de forma violenta e começam a ver o mundo de outra forma. Esta pode ser uma história de desencantamento do mundo, mas também de consciência de que ele é habitado por gente de toda espécie, boa e má. Se há quem que se aproveite desses momentos sórdidos, também há quem queira ajudar e cooperar. E tentar fazer renascer um novo mundo, se não de todo bom, mas melhor. É o papel de Michele neste romance. Daí a comparação, ao final dele, com Lázaro, aquele que ressuscita. Ressuscita a esperança, a esperança não de esperar, mas de esperançar. Atuar neste mundo com mais amor, mas sem inocência, sem ingenuidade. É preciso fazer frente, combater o mal. O mal avança só quando o bem recua (Santo Agostinho, Confissões).


Passagens do livro:

 

[não basta instruir - é preciso bom uso]

Quis descrever esse nosso primeiro serão com os Morrone (assim se chamava a família) porque, uma vez descrito o primeiro, ficam descritos todos os que seguiram, rigorosamente iguais, e também porque naquele dia comi de manhã com os refugiados e à noite com os camponeses, ficando assim em condições de notar as diferenças entre ambos. Digo a verdade: os refugiados eram mais ricos, pelo menos alguns; com eles comia-se melhor; sabiam ler e escrever; não calçavam tamancos, e as mulheres andavam vestidas como as da cidade. No entanto, desde esse primeiro dia, e depois cada vez mais, preferi sempre os camponeses aos refugiados. Esta preferência devia-se não só ao fato de eu ter sido camponesa antes de ser comerciante, mas sobretudo à estranha sensação que experimentava junto dos refugiados, em especial se os comparava aos camponeses: era gente a quem a instrução só servira para os tornar piores. Um pouco como acontece com certos rapazes turbulentos que, mal entram na escola e aprendem a escrever, a primeira coisa que fazem é cobrir as paredes com palavrões. Enfim, em minha opinião, não basta instruir, é preciso sobretudo ensinar a fazer bom uso da instrução. (p. 77)

 

[escassez da guerra]

Quem nunca se encontrou em condições semelhantes, com dinheiro que praticamente não valia nada, estranho entre estranhos, no cimo duma montanha, e não sabe o que quer dizer a falta de comida em tempo de guerra, não poderá compreender a alegria com que acolhemos Tommasino. São coisas que é difícil explicar: normalmente, quem vive na cidade, onde há armazéns cheios de tudo, não acumula provisões em casa, pois sabe que em qualquer altura que precise vai às lojas e encontra-as bem fornecidas. Assim, convence-se de que comprar nas lojas o que lhe faz falta é uma coisa absolutamente natural, tal como as estações do ano, a chuva e o sol, a noite e o dia. Ilusão! As coisas podem faltar de repente, como faltaram de fato naquele ano, e então todos os milhões do mundo não chegam para comprar um pedaço de pão, e sem pão morre-se de fome. (p. 86)

 

[ignorância do bem e do mal]

Os aviadores que jogavam as bombas não sabiam nada de nós nem dos nossos monumentos; a ignorância tornava-os tranquilos e sem piedade, e a ignorância, acrescentou Michele, é talvez a causa de todas as nossas dores e das dos outros, porque a malvadez não é senão uma forma de ignorância, e quem sabe não pode verdadeiramente fazer mal. (p. 155)

 

[senso de justiça]

Queria perguntar-lhe como explicava que aquele nazi tão feroz, que sentia prazer em queimar gente com o lança-chamas, fosse capaz ao mesmo tempo de se impressionar com a injustiça que reinava na Itália. Michele dissera-nos sempre que só sentiam a injustiça as pessoas de bem, os melhores, os únicos que ele não desprezava. E eis que aparecia aquele tenente, ainda por cima filósofo, que sentia e censurava a injustiça e simultaneamente tinha prazer em queimar gente. Seria possível? Então, no fim de contas, a justiça não era uma coisa boa? Mas não tive coragem de lhe comunicar as minhas reflexões, pois via-o abatido e triste. Assim deixamos o vale e chegamos a Santa Eufêmia, onde já escurecera. (p. 170)

 

[Instintos sombrios]

Em suma, como já disse, a guerra não quer dizer só matar, mas também roubar; e aquele que em tempo de paz não mataria, nem roubaria por nenhum ouro do mundo, em tempo de guerra encontra no fundo do coração o instinto de roubar e de matar que há em todos os homens; mas encontra-o porquê o encorajam a encontrá-lo, dizendo-lhe a todo o momento que aquele instinto é bom e deve ser atendido, doutor modo não será um verdadeiro soldado. Então ele pensa: “Estamos em guerra... tornarei a ser aquilo que na realidade sou quando voltar a paz... por agora, deixo-me ir ao sabor da corrente... “Infelizmente, ninguém que tenha matado e roubado, ainda que seja na guerra, pode esperar vir a ser alguma vez o que era antes, pelo menos em minha opinião”. (p. 181)

 

[normalização da guerra]

Isto serve para dizer que nos habituamos a tudo e a guerra pode tornar-se um hábito, e aquilo que nos modifica não são os fatos extraordinários que acontecem uma só vez, mas sim esse hábito, essa longa aceitação das coisas contra as quais deixamos de nos revoltar. (p. 190)

 (...)

Ah! A beleza pode ser apreciada com a barriga cheia; mas, com a barriga vazia, todos os pensamentos vão dar ao mesmo, e a beleza parece um engano ou, pior, uma troça. (p.190)

 

[ressurreição]

A dor... Voltou-me ao pensamento Michele, que não estava ali conosco nesse momento tão suspirado do regresso e nunca mais estaria junto de nós, lembrei-me daquela noite em que nos leu em voz alta, na cabana de Santa Eufêmia, a passagem do Evangelho sobre Lázaro, zangando-se porque os camponeses não tinham compreendido nada e gritando que estávamos todos mortos à espera da ressurreição, como Lázaro. Então, essas palavras de Michele tinham-me deixado na dúvida; agora, sim, compreendia que Michele tinha razão e que durante algum tempo também Rosetta e eu estivéramos mortas, mortas para a piedade que se deve aos outros e a nós próprios. Mas a dor viera salvar-nos no último momento; e assim, de certa maneira, a história de Lázaro aplicava-se também a nós: graças à dor conseguíramos por fim sair da guerra que nos encerrava no seu túmulo de indiferença. (p.286)


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