"...a natureza não se submete a nenhuma medida ou forma precisa..."
(J.-J. Rousseau, Carta ao Senhor de Voltaire)
Transbordamento de rios com inundação de cidades, rompimento
de barragens, acidentes com embarcações, turistas perdidos em caminhadas, deslizamentos.
Catástrofes, acidentes ou crônica de uma tragédia anunciada?
Em apenas uma semana uma série de “tragédias” atinge o Brasil,
em várias regiões dos estados, no começo de Janeiro de 2023.
Quando se deu o terremoto de Lisboa em 1775, a cidade ficou
bem destruída; muitos entenderam como um castigo dos céus, ainda mais porque
ocorreu justamente no Dia de Todos os Santos (1 novembro). Mas o filósofo J. J.
Rousseau questionou isso, afirmando que, ao fim e justificadamente, aquelas
pessoas não poderiam estar ali. [1]
Podemos transpor essa reflexão para os dias atuais, seguindo
o grande filósofo. O que as pessoas estão fazendo naqueles espaços onde ocorrem
estas “tragédias”? Evidente que não temos liberdade total para escolher onde
morar, onde passear e principalmente onde trabalhar. Essa liberdade é muito
relativa em nosso cenário de mundo capitalista. Mas não se trata de condenar as
opções e escolhas individuais, pois as ocupações, ao fim, são coletivas e
resultado de orientações econômicas e políticas públicas. Ou da falta delas.
Abrir um hotel resort numa área de preservação ambiental -- onde não se
deveria fazê-lo -- envolve capital e interferência de órgãos
públicos. A mesma lógica vale para todas as outras atividades econômicas, mesmo
quando clandestinas, pois a ausência do estado é muitas vezes um ato comissivo,
e não passivo -- como podemos constatar pelas atividades da mineração. A falta
de planejamento, fiscalização e regulação são condutas correlatas e que levam, geralmente,
depois do ato lesivo ao meio natural, a regularizações e ajustamentos que só
beneficiam os infratores. Se assim já nos conduzíamos, o que vale ressaltar é
que nos últimos cinco anos, ao menos, isso se multiplicou e explodiu.
Some-se a isso tudo ao desmatamento tanto da floresta
amazônica quanto do cerrado. Na verdade fica difícil identificar fenômenos
originários, eminentemente naturais, dado que interrelacionados de forma
complexa. As chuvas estão aumentadas em determinadas regiões devido ao
desmatamento de outras vizinhas? Chove demais e as barragens não suportam
porque foram mal dimensionadas ou porque houve superexploração da área
mineradora? Turistas morrem porque são desobedientes ou porque a indústria de
diversões “ecológicas” não pode diminuir seu faturamento, constituindo-se em
atividade predatória do meio? Pessoas
ficam desabrigadas porque escolhem mal o lugar para morar ou porque falta
planejamento urbano e racionalidade na ocupação do espaço?
A mídia vende a ideia de que as tragédias desse tipo são de
ordem simplesmente natural, uma fatalidade. Ou então põe a culpa na Mudança
Climática (já se tornou um sintagma de grande utilidade midiática), com o seu
principal inimigo: a queima de combustível fóssil e consequente emissão de
gases de efeito estufa.
Erro de interpretação ou má fé. Ou ambos, já que a mídia se
alimenta dessa contaminação entre um efeito e outro, atribuindo a causa a um
único fator.
Enquanto não for compreendida a ação antrópica sobre o meio,
os únicos que sofrerão serão os menos favorecidos (e mais desavisados) da
população. Grandes empresas já contemplam esse risco em seus negócios, não
apenas do ponto de vista econômico, mas também em termos de imagem. Tudo
calculado. No entanto, entre a população atingida, dificilmente alguém é
devidamente indenizado após esses "trágicos acidentes naturais".
Pequenas empresas, especialmente as turísticas, fecham suas portas, os donos
desaparecem, vão explorar outras áreas com outra personalidade jurídica. O
poder público toma medidas paliativas, dificilmente as corretivas. O governo
federal geralmente ajuda com aporte de dinheiro, que engrossa o caixa estadual,
de imediato. A partir daí dependerá da vontade do governador de Estado. A
demora dos moradores em receber ajuda é uma prática constante e antiga [2].
Se a administração pública abre mão de suas funções, os que
mais sofrem com esses revezes serão justamente aqueles que mais ajudam a
financiar a mesma administração, que deveria ser preventa e reorganizar o
espaço de modo a que estas pessoas não sobrevivam em determinas áreas. Pelo
contrário, aproveitam a oportunidade para aplicar políticas duras e
desfavoráveis à população. Esse tipo de trato está bem descrito na obra de
Naomi Klein, “Não basta dizer não” – na política do choque. [3]
A administração pública, sob o ponto de vista da organização
do ecúmeno (onde os homens podem habitar) é uma questão política e de estado. Então
quando catástrofes incorrem em grandes tragédias, é para a política que deveríamos
voltar nossa atenção... E onde está o chefe de estado nessas horas? Tirando
férias ou visitando as vítimas? Oferecendo ajuda federal aos estados? E o
governo do Estado? Tomará medidas preventivas para o próximo evento -- que é
perfeitamente previsível?
P.S.
Nos primeiros dias de Fevereiro de 2023 ocorre um terremoto
de grandes proporções na Turquia, numa região em que já se sabia da ocorrência
desse fenômeno. É de se observar duas coisas: as construções continuaram a
crescer; o tipo de construção era inapropriado para um lugar desses. [4]
Neste mesmo ano, em novembro, ocorre a “tragédia de Gramado”
[5], peça com roteiro já conhecido, mas mesmo assim encenado.
[1] ROUSSEAU, J.J. "Carta de J.-J. Rousseau ao
Senhor de Voltaire (1756)". in: Carta a Christophe de Beaumont. E
outros escritos sobre a religião e a moral. São Paulo: Estação Liberdade, 2005.
pp. 121 a 137
[3] KLEIN, Naomi. Não basta dizer não. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2017.
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