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Cícero denuncia Catilina - Afresco que representa o senado romano reunido na Cúria- Hostília-Palazzo Madama,Roma
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A questão principal
que envolve todas as confusões sobre servidores públicos é a seguinte: quem são
os servidores? Juiz é servidor ou funcionário público? Ou nada disso... Então o
que é?
Esta é uma questão
que é mais que um detalhe meramente técnico. É devido a essa confusão que muito
servidores são diariamente ofendidos, chamados de mentirosos, enxovalhados pela
população e principalmente pela mídia. Professores, enfermeiros e auxiliares de
enfermagem, técnicos judiciários e outros −̶
todos que estão na linha de frente prestando serviços diretos ou
indiretos à comunidade são “vítimas” dessa guerra de contrainformação,
obrigados a ouvir disparates os mais diversos, não só em seus postos de
serviço, mas até na família. Outra parte da população imagina que “funcionário
público” diz respeito aos políticos e às altas esferas governamentais. Impera
uma confusão que não é casual.
E por quê? Vejamos.
Férias de sessenta
dias, auxílio moradia, gordas aposentadorias, jornada de trabalho semanal de
três dias, entre outras "regalias" são atribuídas aos servidores, ou
melhor, no entendimento do senso comum aos "funcionários
públicos". Mas o que se entende por
funcionário público no imaginário popular? Essa é mais uma questão.
Tentei demonstrar em
meu artigo anterior que esse termo "funcionário público" é vazio,
destituído de significado na lei, a não ser na seção criminal; enfim, um termo
equivocado e anacrônico, mas que serve para a mídia e os inimigos dos serviços
públicos colocarem num mesmo conjunto todos os que trabalham para e recebem do
governo. Em outras palavras, entram "todos no mesmo saco": juízes,
promotores, agentes de trânsito, professores... Essa desorientação toda faz
parte de um jogo de linguagem onde o que se quer na prática como resultado é
legitimar o discurso da redução (senão o fim) dos serviços públicos.
Recordando: não
existe o termo "funcionário público" na Lei 8.112/90, a lei que
disciplina todos os servidores públicos. Juiz e promotor estão contemplados
nesta lei? Não. Os magistrados (juízes e desembargadores) bem como promotores e
procuradores estão considerados nas chamadas Leis Orgânicas. As Leis orgânicas
tratam estas figuras como "membros". Portanto, juízes são membros do
Poder Judiciário e promotores são membros do Ministério Público.
Primeira pergunta
respondida: juiz não é servidor, nem funcionário público. Juiz, bem como
promotor e assemelhados são “membros”, assim como os ministros do STF são
membros −̶ são o próprio corpo da
instituição.
O termo “membro”
não é fortuito: membro, de fato, é uma parte do corpo. Está se tratando aqui de
alguém que não é funcionário do Poder, mas o próprio poder. Consequentemente
muito menos é servidor.
É intuitivo
imaginar que estes membros exerçam poder de autoridade [1]. Mas de que tipo? Não há legislação específica, a
não ser dada pela processual penal e pelas várias jurisprudências, sobre o
conceito de autoridade [2]. E não há que se considerar simplesmente como o
poder atribuído a alguém para o exercício de uma função, pois qualquer servidor
exerce uma. A Constituição menciona inúmeras vezes o termo, sem defini-lo.
Façamos então um exercício de sociologia jurídica e digamos então que a
autoridade política é exercida por ocupantes de cargo de poder político e
autoridade policial é exercida por delegados e agentes policiais [3].
Mas para ser bem
simples, claro e didático: autoridade é a que manda; e obedece quem tem juízo,
isto é, o servidor comum.
Os membros,
portanto sendo membros de poderes, possuem poder o suficiente para garantir
suas "prerrogativas", todas previstas em lei. Nada é feito contra
legem (contrário à lei). Está tudo na lei. Não se trata de desvios, mas de
uma aberração que é decorrência do poder que é atribuído e exercido por estas
pessoas. Do ponto de vista jurídico não são “regalias”: são prerrogativas!
No entanto, as tais
"regalias", tão propaladas pela imprensa e que são atribuídas a todos
os servidores não existem. Ou melhor, elas existem para os membros. E como
dissemos, todas previstas na legislação. Mas a grande imprensa, bem como a mídia
em geral, quer sempre confundir uma
coisa com a outra. Por quê?
Ora, resumindamente
antecipo o porque:
-Fica mais fácil
atacar os serviços públicos e dizer que "tudo é uma enorme gastança”;
-A exigência sobre
os serviços públicos aumenta em contraste com “gastança” dos “funcionários
públicos”, que são confundidos com “gente do governo”;
-O servidor público
que está de verdade na linha de frente face ao público vira um alvo fácil de
ressentimentos e propaganda negativa, de desprestígio;
Segunda questão
respondida. Servidores são desprestigiados diariamente pela imprensa
“tradicional” porque são identificados com a figura construída do “funcionário
público” ineficiente, gastador, indolente, “marajá”.
Na vida real, em
termos práticos, é o servidor público (não os membros) que se constitui
verdadeiramente como "funcionário público", funcionário de verdade,
que trabalha por salário — seus recebimentos fazem parte do gasto direto com
pessoal, gastos com a “administração”. Os membros, como são membros de poderes,
são parte da estrutura do Estado −̶
por isso eles recebem “proventos” e não salário (ou remuneração, nos
termos linguagem própria). A estrutura do Estado é a sua constituição — não são os imóveis, nem os móveis — mas sua organização política −̶ organização na qual se constitui com e entre os membros de poderes. Última questão
respondida.
Reforma Administrativa
Vamos ver os ataques
diretos, materiais, aos direitos dos servidores. Vamos analisar “Reforma
Administrativa” que se pretende aprovada pelo Parlamento.
A PEC 32/2020, num
de seus dispositivos, exclui os membros de poderes da tal Reforma. Isso quer
dizer que juízes, promotores e assemelhados não serão contemplados na mudança
da lei. Em outras palavras, escapam da Reforma e continuarão com os mesmos
"privilégios" de sempre — incluindo seus altos salários, diárias e
demais benefícios, que verdadeiramente pesam no orçamento do Estado. Este é o
preço de se manter a estrutura estatal
funcionando. Não tem a ver com serviços, embora se considerem −̶ do ponto de vista desses agentes −̶ como fornecedores de um "elevado e relevante serviço à sociedade". Mas repito: é
ao Estado que prestam esse serviço — que é mais um compromisso político com a
organização estatal que um serviço público, necessariamente. Não se trata de um
serviço público prestado diretamente à população, em seu benefício. No
exercício do poder estatal, pelo contrário, agem contra a população −̶ o Direito brasileiro em sua efetiva
positividade é patrimonialista, negador de direitos. Como estes poderes integram a organização
constitucional não poderiam estar incluídos na Reforma, pois isso exigiria uma
emenda constitucional muito mais difícil de ser aprovada −̶ já com relação aos servidores, a mudança fica
mais fácil, dada a desmobilização neste setor.
A CF de 1988 prevê
autonomia administrativa e financeira dos órgãos judiciários e Ministério
Público (Art. 99), sendo que seu orçamento, de acordo com essa previsão, deve
ser elaborado pelos próprios tribunais — a ser aprovado no âmbito da lei de
diretrizes orçamentárias. O que devemos atentar é para o detalhe de que este
orçamento é para despesas primárias, isto é, obrigatórias. Despesas com pessoal
são obrigatórias. Nelas também são incluídas as diárias dos membros, uma
espécie de remuneração para quando acumulam funções, para quando se deslocam de
sua sede ou para plantões; essa remuneração é que permite dobrar os proventos,
atingindo o teto constitucional. Até 2019 era possível haver repasses do
orçamento aos tribunais para "cobrir o rombo" com as despesas. Este
ano temos o "teto de gastos", que não sabemos como irá impactar essas
despesas, mas até o momento os pedidos de aporte extra estão ainda previstos.
Enfim, por quê é importante ressaltar todas
estas diferenças? Primeiro porque o gasto com os membros (agentes políticos) é
realmente muito alto. O pagamento com diárias, deslocamentos, automóveis,
cerimoniais, verbas de representação, além de outros gastos administrativos que
poderiam ser racionalizados, é alto. Por exemplo, dificilmente um desembargador
ou procurador de justiça abre mão do "veículo de representação"; os
gastos com a segurança dos membros evidenciam também serem elevados. Todo esse
gasto geral impacta o orçamento, de fato. Mas a pressão para diminuir as
despesas recai sobre quem e sobre o que? Justamente sobre aqueles que não têm
poder, os que trabalham diretamente com a população, os que não recebem auxílio-moradia
e muitas vezes nem o auxílio-creche: os servidores públicos de verdade e sobre os
respectivos serviços públicos prestados diretamente à população. Então o cenário
que temos é o uma pressão enorme, sempre, para reduzir o número de servidores,
seus salários e benefícios. Por outro lado, pelo lado dos agentes políticos, a
pressão torna-se apenas simbólica: são imaginados pela população como sendo
servidores ou “funcionários públicos” — mas não são, pelo que demonstramos. A
redução de despesa termina sempre incidindo sobre a quantidade e qualidade dos
serviços públicos prestados e não sobre estrutura político-estatal. Isso leva a
um círculo vicioso onde os serviços públicos são cada vez mais precarizados em
nome do ajuste fiscal e da moralidade, provocando descontentamento popular e gerando
uma percepção cada vez mais negativa da oferta deles.
Se não houver
esclarecimento e educação sobre o funcionamento da administração pública e o da
estrutura político-estatal, esse debate sobre a moralidade do "gasto
público" jamais terá fim — a confusão reinará sempre contra a população
−̶ a mais carente, obviamente, que
depende do serviço público como parte integrante de seus rendimentos.
NOTAS
[1]
O termo “autoridade” vem do latim auctoritas,
que na Roma antiga designava o poder que transcende (o próprio poder terreno,
subjugando-o); o poder de auctoritas
era arrogado por quem direito previsto na lei; na era imperial é transferido
vitaliciamente para a figura do Imperador, que agora legalmente detém todos os
poderes −̶ imperium.
Se levarmos a sério a origem e a permanência do significado, podemos deduzir
que a autoridade política detém um certo poder de imperium, que transcende de algum modo as funções públicas que
exerce. Segundo o filósofo Giorgio Agambem, o poder de auctoritas, resumidamente falando, era detido no Senado e invocado
para suspender o Direito. Auctor é
aquele que aumenta, aperfeiçoa, acresce ao ato e era exercido pelo pater −̶
aquele que autoriza. Quer
dizer, o poder de auctoritas está
para além da magistratura.
Fontes:
AGAMBEN,
Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo,
2004 (2003). Coleção Estado de sítio.
ALLAND,
Denis; RIALS, Stéphane. Dicionário de Cultura Jurídica. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2012. p.127
[2]https://jus.com.br/artigos/47144/o-conceito-de-autoridade-policial-na-legislacao-brasileira#:~:text=Na%20legisla%C3%A7%C3%A3o%20processual%20comum%2C%20ali%C3%A1s,%C3%A9%20o%20Juiz%20de%20Direito
[3]Mais
uma vez citamos aqui o ilustre jurista Hely Lopes Meirelles, acerca da
distinção entre poderes administrativos e poderes políticos:
“Para bem atender ao interesse público, a
Administração é dotada de poderes
administrativos −̶ distintos dos poderes políticos −̶ consentâneos e proporcionais aos encargos que
lhe são atribuídos. Tais poderes são verdadeiros instrumentos de trabalho,
adequados à realização de tarefas administrativas. Daí o serem considerados
poderes instrumentais, diversamente dos poderes políticos, que são estruturais
e orgânicos, porque compõem a estrutura do Estado e integram a organização
constitucional.” (MEIRELLES, Hely Lopes, Direito
Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2002, p.112)