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quinta-feira, 21 de agosto de 2025

DÍVIDA PÚBLICA. UMA (PEQUENA) LIÇÃO, DE MARX A PIKETTY.


Desenho de um cachorro

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 GOYA, Francisco de. Saturno [Chronos] devorando um filho, 1819-1823, 1,43 m x 81 cm.


















 



 

"A dívida pública torna-se uma das mais enérgicas alavancas da acumulação primitiva. Tal como o toque de uma varinha mágica, ela dota o dinheiro improdutivo de força criadora e o transforma, desse modo, em capital, sem que tenha necessidade para tanto de se expor ao esforço e perigo inseparáveis da aplicação industrial e mesmo usurária. Os credores do Estado, na realidade, não dão nada, pois a soma emprestada é convertida em títulos da dívida, facilmente transferíveis, que continuam a funcionar em suas mãos como se fossem a mesma quantidade de dinheiro sonante. (...) a dívida do Estado fez prosperar as sociedades por ações, o comércio com títulos negociáveis de toda espécie, a agiotagem em uma palavra: o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia." (MARX, O Capital, Livro I, cap. XXIV, "A assim chamada Acumulação Primitiva", Nova Cultural, v.2, 1985, p. 288).

 

Este pequeno trecho do livro I de O Capital, de Marx, à parte considerações mais atualizadas sobre a venda de títulos públicos, demonstra bem, em poucas linhas, a dinâmica do capital especulativo. Marx posiciona tais capitais como fazendo parte e criador de um sistema internacional de crédito que oculta uma fonte importante de acumulação primitiva, pois permitiu ao mesmo tempo que os emprestadores ganhassem dinheiro, também aos Estados de realizar empréstimos a outros Estados. Um mecanismo que começou em Veneza e Gênova, passando por Holanda e Inglaterra, terminando nos EUA.  E assim Marx conclui:

 

"Como a dívida do Estado se respalda nas receitas do Estado, que precisam cobrir os juros e demais pagamentos anuais, o moderno sistema tributário tornou-se um complemento necessário do sistema de empréstimos nacionais". (idem, p. 289)

 

Vejamos a consideração de outro autor, depois, é claro, de uma extensa exposição sobre Capital, Renda e Distribuição:

 

"...o que é certo, e muito vergonhoso, é que o capital nacional é extremamente mal repartido: a riqueza privada se apoia sobre a pobreza pública, e, sobretudo, por consequência há uma despesa muito maior em juros da dívida do que o que investimos, por exemplo, no nosso ensino superior." (PIKETTY, Thomas. O Capital no século XXI. Trad. Monica B. de Bolle. RJ: Intrínseca, 2014, p. 551)

 

Piketty, em seu livro, alerta sobre o crescimento desmesurado do capital que, sem investimento produtivo, volta-se para a acumulação via dívida pública, seja comprando títulos ou ativos públicos, gerando uma situação em que, mediante impostos extremamente baixos sobre o capital, a desigualdade e a pobreza só fazem aumentar. Nesse contexto, os super-ricos (ou o 1%) adquirem uma centralidade e poder sem igual na história ou melhor, talvez igual à Belle Époque, contexto que o autor analisa muito bem. É preciso, primeiro, transparência econômica, controle democrático do capital, efetividade no conhecimento contábil, aplicação de política fiscal uniforme entre os Estados...

Enfim, é preciso que o Estado seja efetivo, racional, planejador... [isso eu que estou dizendo].

Há outras considerações sobre esta obra. Por exemplo, o tempo de maior crescimento do capitalismo (Europa e EUA) foram os "anos gloriosos" — pós Segunda Guerra até anos 1970, em que o Estado Social esteve fortemente presente. O crescimento decai e a crise avança na virada anos 1970-80, do neoliberalismo atuante, onde o capital se concentrou mais e a renda também, só aumentando a partir da virada do milênio.  Voltamos aos níveis da extrema desigualdade da Belle Époque, que só se "resolveu" (destruiu capital e desconcentrou renda, de alguma forma) após a Primeira Guerra Mundial, ou seja, por meio do que ele chama de "choque", incluindo-se as grandes crises do capitalismo, como a dos anos 1930. A taxa de remuneração do capital privado (r) torna-se, nessa situação (século XXI), muito maior que o crescimento da renda e da produção (g). "O capital se reproduz sozinho, mais rápido do que cresce a produção. O passado devora o futuro" (p. 555 — grifo meu)

A melhor solução, não considerando e ao mesmo tempo para escapar aos choques, é instituir um imposto progressivo anual (e internacional) sobre o capital:

 

"Com ele, é possível evitar a espiral desigualadora sem fim e ao mesmo tempo preservar as forças da concorrência e os incentivos para que ovas acumulações primitivas se produzam sem cessar." (p.556)

 

E enfim:

"O Estado-nação permanece sendo a escala pertinente para modernizar profundamente várias políticas sociais e fiscais, e também, em certa medida, para desenvolver novas formas de governança partilhada..." (p.557).

 

Conclui isso não sem antes, à página 554, afirmar que para uma tal governança (e mudança, de fato) é necessário que os trabalhadores participem efetivamente das decisões das empresas, por meio de seus conselhos. Alguém falou em "socialismo"? Não Piketty... mas tirem suas conclusões.

 

Comentário final.

O que eu posso acrescentar é que, pelas mais de seiscentas páginas de tipografia miúda, o autor faz uma exposição mais que completa da relação capital/renda, passando para a estrutura da desigualdade, com ampla margem de dados em tabelas, muito bem contemplados com gráficos, empregados extensivamente, sendo redundante dizer. Uma obra fundamental, que fiz questão de acrescentar ao comentário valioso de Marx, em O Capital. Eu poderia ter iniciado essa resenha com as importantes definições que Piketty realiza no começo dessa importante obra, como renda, capital, produção, crescimento. Preferi o começo por via lateral e in media res, como nas grandes crônicas poéticas. O meio explica o início e o fim. É isso.

 

Se não tomarmos as rédeas de nosso tempo, o passado devorará o futuro.

 (Clydes)