GOYA, Francisco de. Saturno [Chronos] devorando um filho, 1819-1823, 1,43 m x 81 cm. |
"A dívida pública torna-se uma das mais enérgicas alavancas da acumulação primitiva. Tal como o toque de uma varinha mágica, ela dota o dinheiro improdutivo de força criadora e o transforma, desse modo, em capital, sem que tenha necessidade para tanto de se expor ao esforço e perigo inseparáveis da aplicação industrial e mesmo usurária. Os credores do Estado, na realidade, não dão nada, pois a soma emprestada é convertida em títulos da dívida, facilmente transferíveis, que continuam a funcionar em suas mãos como se fossem a mesma quantidade de dinheiro sonante. (...) a dívida do Estado fez prosperar as sociedades por ações, o comércio com títulos negociáveis de toda espécie, a agiotagem em uma palavra: o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia." (MARX, O Capital, Livro I, cap. XXIV, "A assim chamada Acumulação Primitiva", Nova Cultural, v.2, 1985, p. 288).
Este pequeno trecho do livro I de O Capital, de Marx,
à parte considerações mais atualizadas sobre a venda de títulos públicos,
demonstra bem, em poucas linhas, a dinâmica do capital especulativo. Marx
posiciona tais capitais como fazendo parte e criador de um sistema
internacional de crédito que oculta uma fonte importante de acumulação
primitiva, pois permitiu ao mesmo tempo que os emprestadores ganhassem
dinheiro, também aos Estados de realizar empréstimos a outros Estados. Um
mecanismo que começou em Veneza e Gênova, passando por Holanda e Inglaterra, terminando
nos EUA. E assim Marx conclui:
"Como a dívida do Estado
se respalda nas receitas do Estado, que precisam cobrir os juros e demais
pagamentos anuais, o moderno sistema tributário tornou-se um complemento
necessário do sistema de empréstimos nacionais". (idem, p. 289)
Vejamos a consideração de outro autor, depois, é claro, de
uma extensa exposição sobre Capital, Renda e Distribuição:
"...o que é certo, e
muito vergonhoso, é que o capital nacional é extremamente mal repartido: a
riqueza privada se apoia sobre a pobreza pública, e, sobretudo, por
consequência há uma despesa muito maior em juros da dívida do que o que
investimos, por exemplo, no nosso ensino superior." (PIKETTY, Thomas.
O Capital no século XXI. Trad. Monica B. de Bolle. RJ: Intrínseca, 2014, p.
551)
Piketty, em seu livro, alerta sobre o crescimento
desmesurado do capital que, sem investimento produtivo, volta-se para a
acumulação via dívida pública, seja comprando títulos ou ativos públicos,
gerando uma situação em que, mediante impostos extremamente baixos sobre o
capital, a desigualdade e a pobreza só fazem aumentar. Nesse contexto, os
super-ricos (ou o 1%) adquirem uma centralidade e poder sem igual na história
ou melhor, talvez igual à Belle Époque, contexto que o autor analisa muito
bem. É preciso, primeiro, transparência econômica, controle democrático do
capital, efetividade no conhecimento contábil, aplicação de política fiscal
uniforme entre os Estados...
Enfim, é preciso que o Estado seja efetivo, racional,
planejador... [isso eu que estou dizendo].
Há outras considerações sobre esta obra. Por exemplo, o tempo
de maior crescimento do capitalismo (Europa e EUA) foram os "anos
gloriosos" — pós Segunda Guerra até anos 1970, em que o Estado Social
esteve fortemente presente. O crescimento decai e a crise avança na virada anos
1970-80, do neoliberalismo atuante, onde o capital se concentrou mais e a renda
também, só aumentando a partir da virada do milênio. Voltamos aos níveis da extrema desigualdade
da Belle Époque, que só se "resolveu" (destruiu capital e
desconcentrou renda, de alguma forma) após a Primeira Guerra Mundial, ou seja,
por meio do que ele chama de "choque", incluindo-se as grandes crises
do capitalismo, como a dos anos 1930. A taxa de remuneração do capital privado
(r) torna-se, nessa situação (século XXI), muito maior que o crescimento da
renda e da produção (g). "O capital se reproduz sozinho, mais rápido do
que cresce a produção. O passado devora o futuro" (p. 555 —
grifo meu)
A melhor solução, não considerando e ao mesmo tempo para
escapar aos choques, é instituir um imposto progressivo anual (e internacional)
sobre o capital:
"Com ele, é possível
evitar a espiral desigualadora sem fim e ao mesmo tempo preservar as forças da
concorrência e os incentivos para que ovas acumulações primitivas se produzam
sem cessar." (p.556)
E enfim:
"O Estado-nação permanece
sendo a escala pertinente para modernizar profundamente várias políticas
sociais e fiscais, e também, em certa medida, para desenvolver novas formas de
governança partilhada..." (p.557).
Conclui isso não sem antes, à página 554, afirmar que para
uma tal governança (e mudança, de fato) é necessário que os trabalhadores participem
efetivamente das decisões das empresas, por meio de seus conselhos. Alguém
falou em "socialismo"? Não Piketty... mas tirem suas conclusões.
Comentário final.
O que eu posso acrescentar é que, pelas mais de seiscentas
páginas de tipografia miúda, o autor faz uma exposição mais que completa da
relação capital/renda, passando para a estrutura da desigualdade, com ampla
margem de dados em tabelas, muito bem contemplados com gráficos, empregados
extensivamente, sendo redundante dizer. Uma obra fundamental, que fiz questão
de acrescentar ao comentário valioso de Marx, em O Capital. Eu poderia
ter iniciado essa resenha com as importantes definições que Piketty realiza no
começo dessa importante obra, como renda, capital, produção, crescimento.
Preferi o começo por via lateral e in media res, como nas grandes
crônicas poéticas. O meio explica o início e o fim. É isso.
Se não tomarmos as rédeas de nosso tempo, o passado devorará o futuro.
(Clydes)