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El Greco - Christ on the Cross Adored by Donors 1585-90 |
Em um dos capítulos de "O Processo",
romance de Kafka, mais exatamente o terceiro, K. (o personagem) volta ao
tribunal, uma semana depois da primeira, para uma nova audiência, embora não
tenha recebido a intimação, já que havia recebido apenas um telefonema de
alguém do próprio tribunal, afirmando que haveria audiências todos os domingos.
Ao invés do labiríntico caminho, como da outra vez, K. encontra um
modo mais direto (um atalho?) e chega à sala de audiência. Mas não há nada, não
há sessão -- foi informado pela mulher
que ali residia. K. entra e vê que a sala, de aspecto miserável, está mesmo
vazia. Vê alguns livros em cima da mesa e pede para dar uma olhada, presumindo
serem os códigos empregados para o procedimento da Justiça. Aquela
Justiça, que movia um processo contra
ele. A mulher não permite que K. compulse os livros, mas por fim admite, após alguma insistência. Finalmente, ao abrir
os livros constata que são obscenos, pornográficos mesmo. E diz: "São
estes, então, os livros de direito que estudam aqui! E são essas as pessoas que
devem me julgar!".
O capítulo é metafórico, como todo o livro. Cabe
interpretar a metáfora. K. descobre, por acaso, a face obscena do sistema que o
julga: o das pessoas. São elas, com seus afetos, que vão enfim julgar sua
causa. A imparcialidade e a impessoalidade é algo inexistente ou inatingível,
partindo desse pressuposto. Os princípios enunciados pelo Direito tornam-se
vazios. Somos julgados por gente que nos despreza e cujo ódio -- disfarçado de neutralidade, de impessoalidade
-- nos é dirigido impiedosamente e desferido como um golpe de faca. Não por
acaso, penso eu, os agentes da Justiça vestem-se de negro em suas sessões — é
preciso disfarçar os afetos.
No real vivido encontramos o correspondente aos
"livros obscenos" com que K. se depara: o mar de informações
(verdadeiras ou falsas) espalhadas pelas redes sociais, pela mídia, pela
imprensa, por revistas, que alimentam o rol de conteúdos os quais alimentam os
agentes do poder. É por meio desse caldo
que podemos "descobrir" quais afetos as pessoas guardam consigo e
quais os mobiliza contra os outros. Geralmente os piores, como podemos
constatar nos últimos tempos.
Quanto à Justiça -- nela os nossos julgadores --
basta um boa leitura, atenta, de sentenças extraídas do processos
(especialmente dos criminais, disponíveis em qualquer vara), para que se
revele o rosto obsceno do Judiciário: as mais duras penas inflingidas contra as
pessoas comuns, pobres em geral — e que
nos leva a concluir também sobre sua parcialidade e pessoalidade, enfim, mal
(ou bem...) disfarçadas sob o manto negro das audiências.
Fontes:
KAFKA, F. O Processo. Cap. 3, de qualquer
edição.